Comentário de Hebreus 12.1-29 e 13.1-25
O
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capítulo 12 de Hebreus continua com o
tom exortativo característico do autor. Neil R. Lightfoot observa que o capítulo
l1 Não está isolado dessa seção. Ele destaca que o autor
"combinando fervor e o discernimento
religiosos, trata-se de uma brilhante exortação colocada em meio a duas grandes
seções apelatórias (10.19-39 e cap. 12) com respeito ao empreendimento cristão.
Este capítulo então começa ou continua um desafio aos leitores para que
perseverem na fé até o fim”.1
“Portanto,
nós também, pois, que estamos rodeados de uma tão grande nuvem de testemunhas,
deixemos todo embaraço e o pecado que tão de perto nos rodeia e corramos, com
paciência, a carreira que nos está proposta" (v. 1). Tendo discorrido
sobre a odisseia dos heróis da fé, o autor introduz um elemento de conclusão de
sua longa dissertação sobre o valor da fé na vida do crente. Estamos cercados
de todos os lados pelo testemunho daqueles que ousaram acreditar nas promessas
de Deus e viver à altura delas. Ele exorta seus leitores a deixar todo
embaraço. A palavra grega usada aqui para “embaraço” é onkos, que significa
peso, massa, e só aparece aqui no Novo Testamento. Philip E. Hughes destaca que
esse termo é usado em relação a um atleta que se despirá para a ação, tanto
pela remoção do peso supérfluo — mediante rigoroso treinamento — como pela
remoção de todas as suas roupas.2 Muitas coisas à nossa volta não são pecados,
mas podem tomar-se um peso do qual precisamos nos livrar.
"olhando para Jesus, autor e
consumador da fé, o qual, pelo gozo que lhe estava proposto, suportou a cruz,
desprezando a afronta, e assentou-se à destra do trono de Deus" (v. 2). O autor encoraja seus
leitores a olharem para Jesus, e não para as circunstâncias ao redor. Ele é o
autor e consumador da nossa fé. O termo grego teleiotés, traduzido aqui como
consumador, tem o sentido de “aquilo que é conduzido até o fim”. A ideia é do
alvo que foi alcançado. O autor destaca que, a favor da igreja, Cristo trocou a
alegria pelo desprezo. Ele suportou a cruz. A palavra "cruz” traduz o
termo grego stauros, traduzido como cruz e madeiro.3 A palavra grega
kekathiken, traduzido "sentar”, está no perfeito. Esse tempo verbal mostra
uma ação feita no passado, mas cujos efeitos continuam no presente. Nesse
aspecto, o autor destaca que Cristo, tendo concluído a obra da redenção,
assentou-se à destra de Deus e ainda continua lá assentado (Ef 1.20). E mais:
no Reino espiritual, nós também estamos assentados com Ele acima de todo
principado, potestades, poder, domínios e qualquer nome que se possa referir
não só no presente século, mas também no vindouro (Ef 2.6).
"Considerai, pois, aquele
que suportou tais contradições dos pecadores contra si mesmo, para que não
enfraqueçais, desfalecendo em vossos ânimos" (v. 3). Os crentes hebreus estavam
desfalecendo. Deveriam, portanto, tomar como exemplo Jesus Cristo, que, mesmo
sendo inocente, suportou a afronta dos pecadores.
“Ainda não resististes até ao sangue,
combatendo contra o pecado" (v. 4). Jesus Cristo não apenas suportou o escárnio, o
desprezo e a oposição dos pecadores; muito mais do que isso: Ele derramou seu
sangue pela humanidade. Era verdade que os cristãos hebreus haviam passado por
certas provas e sofrimentos, mas não ao ponto de derramar sangue. Não havia,
portanto, razão para recuar. Donald Hegner destaca que
"como
indica o contexto, não a batalha do crente que evita o pecado (cf. o v. 1), mas
a luta para vencer a apostasia. Pode referir-se também ao pecado dos inimigos
de Deus que perseguem o povo do Senhor, tanto quanto pode relacionar-se ao
pecado potencial da apostasia que aflige os leitores. E contra a apostasia que
estes devem lutar”.4
“E
já vos esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho meu,
não desprezes a correção do Senhor e não desmaies quando, por ele, fores
repreendido" (v. 5). Citando Provérbios 3.11, o autor mostra que a
prova da fé cristã, longe de sinalizar um abandono de Deus, é uma clara
demonstração do seu amor. Aqui, o autor vê o sofrimento que vem como
consequência da oposição desse mundo hostil como algo positivo que vai acrescer
maturidade à vida do crente. É evidente que o autor não se refere aqui ao
sofrimento que foi provocado pelo próprio crente em virtude de seu pecado ou
desobediência, nem tampouco naquele que é claramente visto como uma ação de
Satanás. Aqui, tem-se em vista o sofrimento de quem vive de forma justa e
piedosa e, por causa disso, entra em rota de colisão com o mundo, a carne e o
diabo.
“Pois o Senhor corrige ao que
ama, e açoita a todo o que recebe por filho” (v. 6). Longe de apresentar Deus como um ser sádico,
que tem prazer em ver o sofrimento dos outros, o autor continua com sua citação
do Antigo Testamento, onde mostra que, muitas vezes, o sofrimento i xerce um
papel disciplinador na formação do caráter e identidade do crente. Se sofremos,
e Deus se faz presente nesse sofrimento, então o sofrimento é para nosso
próprio bem.
“É
para disciplina que sofreis; Deus vos trata como a filhos; pois qual é o filho
a quem o pai não corrija?” (v. 7). O apóstolo Paulo lembrou que, quando não
nos disciplinamos, Deus, então, exerce o seu papel de Pai quando nos disciplina
(1 Co 11.31,32). O autor mostra que, se alguma coisa extraordinária estivesse
acontecendo entre os hebreus, eles deveriam ver isso não de forma negativa, mas
como um agir de Deus para o bem deles. Nem sempre é fácil ver Deus na
adversidade. Como Gideão, dizemos: "O S e n h o r nos desamparou" (Jz
6.13).
“Mas, se estais sem disciplina,
da qual todos são feitos participantes, sois, então, bastardos e não
filhos" (v. 8).
O filho legítimo necessitava de disciplina e devia ser disciplinado para que
tivesse seu caráter bem formado. Todavia, no mundo antigo, o filho ilegítimo
não recebia tratamento igual. A palavra grega nothos, “ilegítimo”, não indica
apenas
“que o pai não
está suficientemente interessado neles para lhes infligir o castigo apropriado
a seus filhos legítimos, mas, também, deve ser entendida no sentido legal de
que um filho ilegítimo não desfruta dos direitos de herança e do direito de
participação no culto familiar".5
“Além
do que, tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os
reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para
vivermos?" (v. 9). Nesse versículo, a palavra “pais” traduz o grego
“paideutes”, de onde se origina a palavra “paideia” e a portuguesa pedagogia. A
lógica do autor é bastante simples e prática: se nossos pais terrenos possuem o
direito de educar-nos, às vezes tendo que corrigir comportamentos errados, da
mesma forma Deus não pode fazer o mesmo conosco? Se respeitamos nossos pais,
que nos disciplinam, e não os abandonamos de forma alguma, então por que vamos
desistir da fé quando alguma situação adversa surge na nossa caminhada
espiritual? O contraste é feito entre “pais segundo a carne”, que tem o sentido
de “pais terrenos”, com "Pai dos espíritos", que tem o sentido de
“Pai celeste” ou “Pai espiritual".
“Porque aqueles, na verdade, por um pouco de tempo, nos corrigiam como
bem lhes parecia; mas este, para nosso proveito, para sermos participantes da
sua santidade” (v.
10). Visando um bem maior, nossos pais nos corrigiam conforme melhor lhes
parecia. Às vezes, as suas intenções eram boas, mas a forma como faziam poderia
não ser adequada. Por outro lado, Deus, como nosso Pai, corrige-nos visando um
bem maior e da forma correta. O alvo da correção ou prova espiritual é a nossa
participação na santidade de Deus. Não podemos servir a Deus de qualquer forma,
visto ser Ele um Deus santo; precisamos nos manter separados daquilo que ofende
a sua santidade.
“E, na verdade, toda correção, ao presente, não parece ser de gozo,
senão de tristeza, mas, depois, produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados
por ela" (v.
11). Nenhuma criança (e adulto também) gosta de ser repreendido ou corrigido. A
repreensão mostra-se desconfortável principalmente no momento em que é feita.
Todavia, o autor mostra que o Pai celeste sabe que ela é necessária e, por
isso, corrige-nos segundo melhor lhe parece. Há muitas famílias e até mesmo
igrejas destroçadas por omissão e descaso na aplicação da disciplina bíblica.
Se praticarmos a disciplina, ou, como diz o autor, nela nos exercitarmos,
seremos cristãos bem formados espiritualmente.
"Portanto,
tomai a levantar as mãos cansadas e os joelhos desconjuntados” (v. 12).
Como faz com frequência, o autor fundamenta suas exortações com passagens da
Bíblia. Aqui, ele recorre a Isaías 35.3 da tradução dos LXX. Há muitas
semelhanças entre o que Isaías diz para o antigo Israel com aquilo que o autor vem
falando para seus leitores hebreus. A linguagem figurada mostra que é preciso
vencer o cansaço e a fadiga que surge na caminhada.
“E fazei veredas direitas para os
vossos pés, para que o que manqueja se não desvie inteiramente; antes, seja
sarado” (v. 13). A
metáfora é a de um atleta em plena corrida que poderia “desviar-se” da rota que
lhe foi traçada. O termo "desviar" usado pelo autor ocorre outras
quatro vezes no texto grego (ektrapé) e, em todas as vezes, são de uso paulino.
Duas dessas ocorrências paulinas mantêm o mesmo sentido que o autor demonstra
aqui. Em 1 Timóteo 1.6, é usado para referir-se àqueles que se haviam desviado
da sã doutrina para seguir as fábulas. Em 1 Timóteo 5.15, o apóstolo usa em
referência às viúvas que se haviam desviado seguindo a Satanás. O perigo de
perder o rumo existe, e é por isso que é preciso vigilância e cuidado.
“Segui
a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor"
(v. 14). O autor volta à santidade sobre a qual já se havia referido em Hebreus
12.10. O termo "santidade” traduz o grego hagiasmós, que, nesse contexto,
tem um sentido mais relacional do que cerimonial. Aqui, o autor usa
"santidade” para referir-se ao relacionamento do crente com Deus. Não se
trata de uma forma de prática legalista, mas, sim, da intimidade do cristão com
o Senhor.
“Tendo cuidado de que ninguém se prive
da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e
por ela muitos se contaminem" (v. 15). O autor mantém seu tom exortativo. Aqui, ele exige
cuidado e supervisão (gr. episkopeo) de seus ouvintes para não se privarem da
graça de Deus. Os expositores Wilfrid Haubeck e Heinrich Von Siebenthal
destacam que a expressão “hysteron apo charitos (privar da graça de Deus) tem o
sentido de "ficar para trás / não chegar ao destino (na competição) e,
assim, perder a graça”.6 O expositor George Wesley Buchanan observa que, aqui,
o autor tenha ainda em mente a metáfora da corrida atlética e adapta à corrida
c ristã. Buchanan destaca que o autor tem em mente alguma coisa que pode
conduzir à idolatria e à apostasia.7 Para Richard Taylor, essas palavras do
autor de Hebreus também realçam o aspecto metafórico por ele descrito, só que
em referência aos aspectos da vida cristã, e não propriamente às pessoas.
“Como as mãos são uma metáfora de serviço, e joelhos
são uma figura de atitude (quer corajosa ou ansiosa), assim os pés são uma
figura do caminhar cristão diário. Se este caminhar é cambaleante e tortuoso,
nossa fraqueza se tomará pior, e nossa influência sobre os outros será
prejudicada. Deus deseja a cura; mas nem as nossas próprias almas nem a nossa
influência serão curadas a não ser que estejamos dispostos a corrigir o que
está errado em nossas vidas. O arrependimento é o pré-requisito para a cura da
alma".8
"E ninguém seja devasso, ou
profano como Esaú, que por uma simples refeição vendeu o seu direito de
primogenitura” (v.
16). A palavra “devasso" usada aqui traduz o termo grego pomôs, da mesma
raiz de pornográfico, prostituição e imoralidade. No Antigo Testamento, é
bastante comum esse vocábulo ser usado em relação à idolatria como uma forma de
prostituição. Aqui, o contexto sugere o uso desse sentido, pois, ao vender o
seu direito de primogenitura, Esaú agiu com uma mentalidade materialista e
avarenta. Ele valorizou mais o seu desejo que as bênçãos espirituais. Paulo
afirma que a avareza é uma forma de idolatria (Cl 3.5). Por outro lado, o termo
“profano”, do grego bébelos, está relacionado à falta de religiosidade de Esaú,
que o fez perder a sua bênção.
“Porque
bem sabeis que, querendo ele ainda depois herdar a bênção, foi rejeitado,
porque não achou lugar de arrependimento, ainda que, com lágrimas o buscou” (v. 17). O autor usa o exemplo de Esaú
como uma metáfora de como devem ser tratadas as coisas espirituais.
Esaú serve para exemplificar que há casos em que o
arrependimento pode ser tardio.9 O expositor Richard Taylor comenta que “Esaú
pode ter alcançado arrependimento para a salvação eterna, mas não readquiriu
seu direito de primogenitura (...). Persistir em vender santidade, que é o
nosso direito de primogenitura, pelo prato de lentilhas que este mundo oferece
vai finalmente selar nossa condenação. Há esperança para o relapso, mas não há
esperança para o apóstata absoluto, e não haverá uma 'segunda chance’ após a
morte”10.
No
caso de Esaú, foi a bênção da primogenitura; no caso dos Hebreus, era a
promessa da salvação.
“Porque
não chegastes ao monte palpável, aceso em fogo, e à escuridão, e às trevas, e à
tempestade" (v. 18). Aqui, o autor usa os textos da Septuaginta de
Deuteronômio 4.11; 5.22-25 e Êxodo 19.12-19. Os eventos do Sinai, onde houve
manifestações físicas da presença divina, servem para mostrar como o povo da
Antiga Aliança comportou-se diante dessas manifestações. Adam Clarke destaca
que o propósito do escritor era "demonstrar que a dispensação da lei gera
terror; que era terrível e exclusiva; que pertencia somente ao povo
judeu".11 Por outro lado, Bruce vê aqui uma advertência dada pelo autor de
Hebreus àqueles que começaram, mas estavam voltando atrás. Aqueles que são fiéis
não devem temer nada.12
“E
ao sonido da trombeta, e à voz das palavras, a qual, os que a ouviram pediram
que se lhes não falasse mais” (v. 19). Êxodo 19 mostra a sequência de
eventos quando Deus revelou-se. A santidade de Deus é demonstrada aos
israelitas de uma forma imponente em Êxodo 20.18- 21. C. S. Keener destaca que,
naquela ocasião. Deus quis provocar no povo o temor a fim de que eles parassem
de pecar.13
"Porque não podiam suportar
o que se lhes mandava: Se até um animal tocar o monte, será apedrejado” (v. 20). Deus é tremendamente santo
e, aqui, os parâmetros sobre a sua santidade atingiam até os animais (Nm 17.3).
“E tão terrível era a visão, que Moisés
disse: Estou todo assombrado e tremendo” (v. 21). Diante da manifestação da
glória de Deus, até mesmo Moisés ficou assustado. No livro de Deuteronômio, ele
diz: "Porque temi por causa da ira e do furor com que o S e n h o r tanto
estava irado contra vós, para vos destruir; porém, ainda por esta vez, o S e n
h o r me ouviu" (Dt 9.19). Donald Guthrie destaca que:
"Não há nenhum registro específico no Antigo
Testamento de que Moisés tenha dito: Sinto-me aterrado e trêmulo na ocasião da
outorga da lei, mas a ocorrência da tremedeira não é difícil de se imaginar
nessas circunstâncias. A declaração mais próxima é Deuteronômio 9.19, que
registra que Moisés relembra o temor que sentira. Além disso, há referência ao
seu temor diante da sarça ardente (Êx 3.6), fato este que Estêvão nota em Atos
7.32. Este terror da parte de Moisés termina abruptamente o comentário do
escritor sobre a velha ordem. Seu interesse centraliza-se na nova ordem”.14
“Mas chegastes ao monte Sião, e à
cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de
anjos" (v. 22).
O cenário muda do monte Sinai para o monte Sião; da Jerusalém terrena para a
Jerusalém celestial; das figuras humanas para as figuras angélicas. Aqui, os
anjos aparecem não como seres a serem adorados, mas como adoradores de Deus
juntamente com os remidos.
“Á universal assembleia e igreja dos
primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos
espíritos dos justos aperfeiçoados" (v. 23). Esse versículo é mais bem traduzido na Bíblia
de Jerusalém: “com a igreja toda, na qual todos são ‘primogênitos’ e cidadãos
do céu.” A expressão "espíritos dos justos aperfeiçoados” é uma referência
a todos os crentes que completaram suas carreiras, que chegaram ao alvo
desejado. É o mesmo termo grego que o autor usou em Hebreus 5.9.
"E a Jesus, o Mediador de
uma nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel” (v. 24). O relato de Gênesis 4.10
mostra que o sangue de Abel clama justiça. Na tradição rabínica, ele continuava
clamando contra Caim. Esse conceito do “sangue que clama” também é lembrado por
Jesus: “para que sobre vós caia todo o sangue justo, que foi derramado sobre a
terra, desde o sangue de Abel, o justo, até ao sangue de Zacarias, filho de
Baraquias, que matastes entre o santuário e o altar” (Mt 23.35). Aqui, o
contraste é entre o sangue do justo Abel, assassinado injustamente, e o sangue
de Cristo, o Cordeiro de Deus imaculado e Mediador de um novo pacto, que foi
entregue e morto por todos os homens. F. F. Bruce destaca que
"O sangue de Abel clamou a Deus desde a terra,
ele está protestando contra o seu assassinato e reivindicando vingança; mas o
sangue de Cristo traz uma mensagem de limpeza, perdão e paz com Deus para todos
os que depositam sua fé nele".15
"Vede que não rejeiteis ao que fala;
porque, se não escaparam aqueles que rejeitaram o que na terra os advertia,
muito menos nós, se nos desviarmos daquele que é dos céus" (v. 25).
Com Êxodo 20.19 em mente, o autor volta ao seu característico tom exortativo.
Se a quebra da Lei, que foi outorgada na terra, no Sinai, trouxe consequências
para os desobedientes, muito mais responsabilidade tem aqueles que são
advertidos e que participam de uma aliança superior, que vem diretamente do
céu.
“A voz do qual moveu, então, a terra,
mas, agora, anunciou, dizendo: Ainda uma vez comoverei, não só a terra, senão
também o céu” (v.
26). Esse versículo remete a Êxodo 19.18 e Salmos 68.8. No passado, na outorga
da Lei, a voz de Deus foi ouvida como um estrondo. Na Nova Aliança, essa voz
será ouvida no futuro, cumprindo a profecia de Ageu 2.6: “Porque assim diz o S e n h o r dos
Exércitos: Ainda uma vez, daqui a pouco, e farei tremer os céus, e a terra, e o
mar, e a terra seca”. O autor de Hebreus usa esse texto como uma referência aos
eventos escatológicos finais.
“E
esta palavra: Ainda uma vez, mostra a mudança das coisas móveis, como coisas
feitas, para que as imóveis permaneçam" (v. 27). A velha ordem dará
lugar a uma nova ordem. A ideia aqui é que tudo o que existe será “sacudido” e
só as coisas que são inabaláveis permanecerão.
Donald Hegner sublinha que:
“As palavras
ainda uma vez, extraídas da citação, explicam-se como referência ao julgamento
escatológico (diferentemente do abalamento’ ou ‘sacudidela’ anterior); este
abalar envolve purificação das coisas criadas (lit., como de coisas feitas’)
para que (ou a fim de que’) só as (coisas) inabaláveis permaneçam, e mais nada.
Mas as coisas que são abaláveis de fato serão abaladas; e isto é o que faz que
a perspectiva do julgamento escatológico seja uma coisa terrível, (cf. v.
29)”.16
"Pelo que, tendo recebido um
Reino que não pode ser abalado, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus
agradavelmente com reverência e piedade” (v. 28). Aqui, o contraste é feito entre o mutável e o
imutável; entre o que é abalável e o inabalável. A natureza do reino espiritual
do qual todos os crentes fazem parte não sofre desgastes pelo tempo nem
tampouco poderá ser substituído. Como participantes desse reino, a atitude do
adorador é de um coração reverente e cheio de temor.
“Porque
o nosso Deus é um fogo consumidor” (v. 29). Aqui, o autor tem em mente
Deuteronômio 4.24, que fala de um "Deus zeloso”. Diante de um Deus tão
grande e de uma revelação tão completa, o crente não pode agir com
indiferença.17 A conclusão da carta aos Hebreus no capítulo 13 segue o modelo
das demais cartas neotestamentárias. Tendo terminado a sua longa exposição
teológica, o autor conclui sua redação com alguns conselhos e recomendações
práticas. Na verdade, essa conclusão apresenta-se como uma forma de
"complemento”, onde algumas exortações já feitas no corpo da carta são
trazidas à tona, porém de uma forma menos complexa. Muito da identidade do
autor é revelada aqui. Um homem humilde, piedoso, compromissado e cheio de amor
por seus irmãos aos quais ele queria ver com animo, fé e esperança em tempos de
apostasia. “Permaneça o amor fraternal" (v. 1). O verbo grego usado aqui,
menô, está no presente imperativo. O presente contínuo indica uma ação habitual
ou contínua. O autor começa a conclusão de sua carta com uma ordem ou mandamento.
O sentido é: “continuem permanecendo no amor fraternal’’.
“Não vos esqueçais da hospitalidade,
porque, por ela, alguns, não o sabendo, hospedaram anjos” (v. 2). O autor lembra seus leitores
de serem hospitaleiros. Essa palavra (philonexenia) é também usada por Paulo em
Romanos 12.13. Visto os constantes deslocamentos e as precárias acomodações
existentes, a hospitalidade era algo extremamente necessário. Aqui, ela surge
como uma demonstração de amor, comunhão e uma troca de bênçãos recíprocas. Como
hospedeiro, Abraão acolheu a anjos (Gn 18.1-8).
“Lembrai-vos dos presos, como se estivésseis presos com eles, e dos
maltratados, como sendo-o vós mesmos também no corpo" (v. 3). É possível que, nessa
passagem, o autor esteja se referindo aos cristãos encarcerados por causa de
sua fé. No primeiro século, os presos, em alguns casos, não possuíam nem mesmo
direito à alimentação. Eles dependiam de terceiros para prover-lhes o
necessário.
“Sejam
vossos costumes sem avareza, contentando-vos com o que tendes; porque ele
disse: Não te deixarei, nem te desampararei" (v. 5). Aqui, a exortação
do autor direciona-se contra a avareza. A palavra grega aphilargyros, usada no
versículo como "avareza", tem o sentido de “sem amor ao dinheiro”.
Esse mesmo termo grego é usado em 1 Timóteo 3.3. Possuir dinheiro não é pecado,
mas amar o dinheiro é. O conselho do autor é buscar o contentamento. Aqui, ele
lembra as promessas de Deus a Josué, onde o Senhor mostra seu cuidado com o
grande comandante de Israel (Js 1.5).
“E, assim, com confiança, ousemos dizer: O
Senhor é o meu ajudador, e não temerei o que me possa fazer o homem" (v. 6). Tendo em mente o Salmo
118.6, o autor lembra os seus leitores da fidelidade de Deus. Esse versículo é
bem significativo quando o contemplamos dentro da exortação que o autor vem
fazendo. Numa época de perseguição, espólio, sofrimento e até mesmo morte, o
crente necessita descansar nas promessas de Deus.
“Lembrai-vos dos vossos pastores,
que vos falaram a palavra de Deus, a fé dos quais imitai, atentando para a sua
maneira de viver" (v. 7). A palavra "pastores” traduz o vocábulo grego hégeomai, que
aparece 20 vezes no Novo Testamento. O autor de hebreus utiliza esse termo seis
vezes, sendo três delas neste capítulo.18 Na maioria das vezes, esse termo é
aplicar a um "líder”. Dessa forma, Paulo exorta aos Tessalonicenses (1 Ts
5.13); Estevão usa essa palavra para referir-se a José como “governador"
do Egito (At 7.10); em Hebreus 13.17, o autor usa essa palavra para exortar
seus leitores a serem obedientes a seus pastores. O sentido aqui, portanto, é o
de submissão, e não o de subserviência, dos liderados frente a seus líderes ou
pastores.
“Jesus
Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e eternamente" (v. 8). O expositor
bíblico Donald Hegner expôs com precisão esse versículo:
“A ênfase maior desse versículo é que Jesus Cristo,
por causa de sua obra do passado e do presente, é infinitamente capaz de
satisfazer todas as necessidades de todos os cristãos. Isto se toma aparente
não só a partir do contexto, mas também pela estrutura do próprio versículo que
diz, literalmente: ‘Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e até as eras.’ Sua
obra de ontem, a obra sacrificial e expiatória como sumo sacerdote, foi exposta
pelo autor de Hebreus com profundidade. É a própria base do cristianismo. Hoje
a obra de Cristo prossegue, na intercessão que ele faz pear nós, à mão direita
do Pai (7.25; cf. 4.14-16)”.19
“Não vos deixeis levar em redor
por doutrinas várias e estranhas, porque bom é que o coração se fortifique com
graça e não com manjares, que de nada aproveitaram aos que a eles se
entregaram" (v.
9). Durante sua exposição sobre a doutrina do sacerdócio, o autor havia deixado
bem claro que a Antiga Aliança, com todo o cerimonialismo levítico, havia sido
substituída por uma Nova Aliança e um novo sacerdócio. Dentro da velha ordem,
havia leis minuciosas sobre o que era considerado limpo e imundo (Dt 4.3-20).
Ao acharem que essas regras tornavam Israel melhor do que os outros povos, eles
acabaram desenvolvendo uma atitude legalista em relação às mesmas. Para o
autor, essas prá ticas não foram capazes de justificar ninguém diante de Deus.
O que importava, portanto, não era a observância meticulosa dessas leis, mas,
sim, um coração limpo e cheio da graça de Deus.
“Temos um altar de que não têm direito de comer os que servem ao
tabernáculo” (v.
10). Usando uma linguagem metafórica, o autor usa a cruz como sendo o altar do
cristão. Os judeus que insistiam em cultuar a Deus valendo-se do antigo
cerimonial levítico estavam excluídos da verdadeira adoração cristã. Era uma
coisa ou outra. Quem insistisse em participar do velho sistema estava excluído
do novo.
“Porque os corpos dos animais cujo sangue é, pelo pecado, trazido pelo
sumo sacerdote para o Santuário, são queimados fora do arraial” (v. 11). Levítico 9.11 e Números 9.13
descrevem os vários rituais de sacrifícios que eram realizados fora do
acampamento. O expositor C. S. Keener observa acertadamente que a referência,
nesse versículo, é ao dia da expiação, quando o sumo sacerdote entrava no Santo
dos Santos com o sangue do sacrifício (Lv 16.27). Jesus cumpriu esse sacrifício
no altar celestial.20
“E, por isso, também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio
sangue, padeceu fora da porta” (v. 12). Nessa passagem, o autor esta belece um paralelo entre
os sacrifícios realizados no dia da expiação e o sacrifício de Jesus. Naquela
ocasião, os corpos dos animais sacrificados eram queimados fora do acampamento.
O relato em João 19.20 demonstra o fato de Jesus ter sido crucificado fora da
cidade. O sumo sacerdote entrava no santuário com o sangue de animais para
fazer o ritual da purificação; Jesus, todavia, com seu próprio sangue, entrou
no Santo dos Santos para santificar o povo.
“Saiamos, pois, a ele fora do arraial,
levando o seu vitupério" (v. 13). Esse versículo dá sequência à argumentação do autor
no verso anterior. Aqui, o convite é para os crentes deixarem o velho sistema e
abraçarem o novo. Seguir a Jesus significa tomar a sua cruz e levar o seu
vitupério. O termo grego oneidismos (vitupério) ocorre cinco vezes no Novo
Testamento e significa "insulto”, "opróbrio". Esse termo já
havia sido usado pelo autor de Hebreus no capítulo 11.26 para referir-se à
"desonra" (NVI) que Moisés sofreu por ter abandonado as glórias do
Egito. Seguir a Cristo é recompensador, mas quem o segue de verdade não terá os
aplausos do mundo.
"Porque não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a
futura" (v.
14). A cultura judaica antiga alimentava a esperança numa Jerusalém vindoura,
que não podia ser encontrada aqui na terra. Para o autor de Hebreus, essa
Jerusalém já existe e é para lá que os cristãos devem ansiar ir. Aqui, o
contexto sugere que o autor tem consciência da luta dos cristãos primitivos e
não quer vê-los alimentando expectativas com o velho sistema, simbolizado aqui
pela Jerusalém terrena.
“Portanto,
ofereçamos sempre, por ele, a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos
lábios que confessam o seu nome” (v. 15). Seguindo o texto de Oseias 14.3
da Septuaginta, o autor entra na dinâmica do culto cristão. O sacrifício do
cristão é feito através da adoração e louvor que ele presta a Deus. Cristo
ofereceu-se a si mesmo a Deus, e o cristão, por meio de Cristo, deve render
sacrifícios espirituais. Uma tradição judaica afirmava que todos os sacrifícios
mosaicos teriam um fim, exceto a gratidão, e todas as orações encerrariam,
exceto a de ações de graças.21
“E não vos esqueçais da beneficência e
comunicação, porque, com tais sacrifícios, Deus se agrada" (v. 16). Aqui, há um paralelo entre
Atos 4.32-33, onde é descrito como vivia a comunidade primitiva. A exortação é
para que os crentes não negligenciem práticas que são saudáveis e necessárias
na vida cristã. As palavras “beneficência" e "comunhão" traduzem
os termos gregos eupoiia e koinonia, respectivamente, que, neste contexto,
significam "prática do bem” e "mútua cooperação”.
"Obedecei a vossos pastores e
sujeitai-vos a eles; porque velam por vossa alma, como aqueles que hão de dar
conta delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos
seria útil" (v. 17). Mais
uma vez, como já havia feito (v. 7), o autor chama a atenção para a relação
líder-liderado. Aqui, o contexto sugere que o termo egoumenois (pastor) tem o
sentido de alguém que supervisiona ou pastoreia uma comunidade. Eles devem ser
objeto de respeito, amor e consideração devido à obra que realizam (1 Ts 5.13).
O trabalho pastoral transcende em muito o aspecto material ou físico. Aqui, o
autor diz que o supervisor ou pastor tem a missão de “vigiar”, “estar alerta e
vigilante” pela congregação, porque, segundo o autor de Hebreus, ele está
consciente que prestará contas sobre a mesma. Tendo sobre seus ombros tão
grande responsabilidade, seria um fardo a mais suportar a indiferença de seus
liderados.
“Orai por nós, porque confiamos que temos
boa consciência, como aqueles que em tudo querem portar-se honestamente"
(v. 18). Embora não saibamos quem escreveu esta carta, suas palavras revelam o
caráter de um homem de Deus. Com humildade, ele pede oração a seus leitores,
mostrando que a sua obra foi feita com a consciência de quem quer agradar a
Deus, e não a si mesmo.
“E
rogo-vos, com instância, que assim o façais para que eu mais depressa vos seja
restituído" (v. 19). Nesse versículo, alguns argumentam que o autor
revela estar encarcerado, mas F. F. Bruce, tendo em vista o versículo 23,
discorda dessa opinião. O fato é que o autor acredita fortemente no poder da
oração e pede todo o empenho da comunidade em favor dele.
“Ora, o Deus de paz, que pelo sangue do
concerto eterno tomou a trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande
Pastor das ovelhas" (v. 20). Esse versículo é mais bem compreendido
dentro da tipologia do Êxodo:
“Todavia, se lembrou dos dias da antiguidade, de
Moisés e do seu povo, dizendo: Onde está aquele que os fez subir do mar com os
pastores do seu rebanho? Onde está aquele que pôs no meio deles o seu Espírito
Santo?" (Is 63.11). A imagem é aquela de Moisés como o pastor do povo de
Deus na travessia do mar (Sl 77.20). Aqui, a metáfora, como observa Bruce, é
que Jesus, o grande Pastor, assim como Moisés, foi trazido não do mar, mas do
domínio da morte.22
“Vos aperfeiçoe em toda a boa
obra, para fazerdes a sua vontade, operando em vós o que perante ele é
agradável por Cristo Jesus, ao qual seja glória para todo o sempre. Amém!” (v. 21). Aqui, o autor expressa o
seu desejo de ver seus leitores sendo capacitados e aperfeiçoados no servir a
Deus. O Senhor é a fonte dessa graça que habilita os crentes a realizarem sua
vontade.
“Rogo-vos,
porém, irmãos, que suporteis a palavra desta exortação; porque abreviadamente
vos escrevi" (v. 22). O autor tem consciência de que foi incisivo em
muitos pontos de sua argumentação e que fora duro em muitos deles. Todavia,
isso não era tudo. Ele poderia ter dito muito mais, porém o que fora
apresentado era suficiente. Agora, ele rogava-os que essa palavra de exortação
deveria ser acolhida.
“Sabei
que já está solto o irmão Timóteo, com o qual (se vier depressa) vos
verei" (v. 23). Aqui, é dada uma informação sobre Timóteo que não
aparece nos demais escritos neotestamentários — a libertação de Timóteo da
prisão. Essa era uma boa notícia para todos os crentes, já que Timóteo, um
discípulo de Paulo, era querido por toda a igreja.
“Saudai todos os vossos chefes e todos os santos. Os da Itália vos
saúdam” (v. 24).
Mais uma vez, como já havia feito, o autor demonstra um carinho e um respeito
muito grande pelos supervisores da obra de Deus. Ele recomenda saudações a
todos, juntamente com todos os crentes.
“A graça seja
com todos vós. Amém!” (v. 25). O autor termina sua carta como o faz
os demais escritores do Novo Testamento: recomendando a todos a graça de Deus.
Uma carta que começou com a graça, agora termina também com a graça. Amém.
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