“ Tende
cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de
incredulidade que vos afaste do Deus I vivo” (Hb 3.12, ARA).
"É impossível, pois, que aqueles que uma
vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tomaram participantes do
Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo
vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento,
visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e
expondo-o à ignomínia” (Hb 6.4-6, ARA).
"Porque,
se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno
conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário,
certeza expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir os
adversários. Sem misericórdia morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas
quem tiver rejeitado a lei de Moisés. De quanto mais severo castigo julgais vós
será considerado digno aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o
sangue da aliança com o qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da Graça?
(Hb 10.26-29, ARA).
Fé, esperança e Ânimo em Tempo de Apostasia
Longe de querer provocar insegurança nos seus
leitores, o autor de Hebreus tenciona conduzi-los à maturidade cristã. O seu
desejo é produzir ânimo, esperança e fé em tempos de apostasia: “Desejamos,
porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma diligência para a
plena certeza da esperança” (Hb 6.11, ARA). Todavia, sem ignorar os perigos da
caminhada, ele faz severas advertências. Os perigos existem: "Tende
cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de
incredulidade que vos afaste do Deus vivo" (Hb 3.12). Os exemplos dos
crentes da Antiga Aliança que morreram no deserto e que por isso foram
impedidos de entrar na Terra Prometida são usados por ele para dar o sinal de
alerta: "Mas com quem se indignou por quarenta anos? Não foi, porventura,
com os que pecaram, cujos corpos caíram no deserto?” (Hb 3.17). Se aqueles
crentes tombaram no deserto porque permitiram que seus corações fossem
endurecidos pelo engano do pecado, da mesma forma os crentes da Nova Aliança
também poderiam cometer o mesmo erro e ficar pelo caminho “Antes, exortai-vos
uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que
nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado” (Hb 3.13). Um coração
incrédulo e endurecido pelo pecado foi a causa que impediu os crentes do antigo
concerto de entrar no descanso provido por Deus: “E vemos que não puderam
entrar por causa da sua incredulidade” (Hb 3.19). Todavia, o autor de Hebreus
lembra seus leitores de que aquele não havia sido, de fato, o descanso
verdadeiro. Havia sido apenas um tipo daquele que Cristo veio prover:
"Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo
exemplo de desobediência” (Hb 4.11). Aquele fora um descanso terreno; aqui, o
celestial: "Porque, se Josué lhes houvesse dado repouso, não falaria,
depois disso, de outro dia. Portanto, resta ainda um repouso para o povo de
Deus (Hb 4.8,9).
Uma Aliança Superior, um Sacerdote
Superior, um Sacrifício Superior
Dentro da
temática abordada, o autor traz à tona o assunto do sacerdócio e,
parenteticamente, continua com sua exortação. Todo o sistema sacerdotal
levítico, com seu complexo sistema ritualístico, era apenas uma sombra do qual
Cristo era a realidade (Hb 8.5). Com a manifestação de Cristo, tudo aquilo
ficara antiquado, obsoleto e sem valor. Voltar atrás, portanto, era perder a
realidade para mergulhar nas sombras! A antiga ordem sacerdotal passara e, em
seu lugar, outra se havia estabelecido: uma ordem sacerdotal superior a de
Melquisedeque, da qual Cristo tornara-se sumo sacerdote (Hb 5.10). Uma verdade chocante
— que, com toda a segurança, provocaria espanto nos judeus piedosos — estava
sendo demonstrada pelo autor: Toda a lei, bem como o sistema de sacrifícios
levítico, havia sido abolida! Não havia como tentar viver por eles novamente.
Chamando “Nova" essa aliança, ele tomou antiquada a primeira; e "o
que foi tomado velho e se envelhece perto está de acabar” (Hb 8.13). A Nova
Aliança havia sido implantada e não fora estabelecida com base em sangue de
animais, mas no sangue de Cristo (Hb 9.12). Voltar ao velho sistema era negar a
eficácia desse sangue, era negar a Cristo. O autor alerta que quem agisse dessa
maneira estaria renegando de vez o Filho de Deus (Hb 6.4-6) e, por isso, seria
objeto de um juízo severo (Hb 10.29). Quem agisse dessa forma estaria cometendo
apostasia, e, para o apóstata, o autor alerta que
“é impossível
que os que já uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se
fizeram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e as
virtudes do século futuro, e recaíram sejam outra vez renovados para
arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo crucificaram o Filho de Deus
e o expõem ao vitupério" (Hb 6.4-6).
Apostasia, Desvio e Tropeço
É
praticamente um consenso entre a erudição bíblica que os textos acima citados
referem-se à apostasia ou queda da fé. Porém, antes de analisar essas passagens
bíblicas, algumas definições são necessárias. Para a Enciclopédia Judaica, o
termo apostasia é aplicado às pessoas que desertaram da fé, trocando a sua
adoração por outra.1 De acordo com Katharine Doob Sakenfeld, "A palavra
apostasia deriva do grego apostasia, que significa ‘um afastar-se de’ ou
'rebelar-se'. Embora originalmente essa palavra se referia a uma rebelião
política ou militar, durante o império greco-romano também veio a significar
rebelião religiosa”.2 O substantivo apostasia aparece em Atos 21.21 e em 2
Tessalonicenses 2.3. Já o verbo aphistemi, de onde se originou apostasia, é
traduzido pelo léxico de Thayer como cair, tomar-se infiel a Deus.3 Nesse
sentido, é usado em 1 Timóteo 4.1 como referência àqueles que :haveriam de
apostatar da fé.4 Em Hebreus 3.12, o verbo aphistemi aparece no infinitivo
aoristo com o sentido de cair, deixar, afastar, 5 O léxico de Kittel destaca
que, em Hebreus 3.12, é usado expressamente acerca do declínio religioso em
relação a Deus. Nesse aspecto, o oposto de apostasia é dado pelo autor de
Hebreus em 3.14: "Porque nos tornamos participantes de Cristo, se
retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim”.6 O léxico de
Bauer destaca que o termo aphistemi é muitas vezes usado na LXX, principalmente
com o sentido de “cair diante de Deus", destacando que, em Hebreus 3.12,
seu sentido é o de "cair” e "apostatar”.7 Das mais de 160 ocorrências
de aphistemi na Septuaginta, 28 delas são claramente associadas à apostasia
religiosa promovida por Jeroboão, filho de Nebate, e os reis que o seguiram.8
No Novo Testamento, o termo ocorre 14 vezes, sendo um deles de uso paulino (1
Tm 4.1), e o outro do autor de Hebreus (Hb 3.12). Nessas duas últimas referências,
o contexto sugere um sentido de uma apostasia religiosa nos moldes do Antigo
Testamento. Não exatamente na forma, mas, sim, nos princípios que a motivaram.9
Além desse vocábulo grego, há muitos outros usados na Bíblia para referir-se à
apostasia. A obra The New Interpreters Dictionary ofthe Bible destaca que a
apostasia, descrita comumente pelos termos hebraico (meshuvah) e grego
(apostasia), é descrita de várias formas nas Escrituras:
“A Bíblia
relata numerosos casos de apostasia, embora sem usar o vocabulário hebraico e
grego acima mencionado; por exemplo, a ‘rebelião’ de Saul (1 Sm 15.22-23) e
aqueles que foram ‘iluminados’, mas que ‘caíram’ (Hb 6.4-6)".
De início, é bom lembrar que a apostasia não é
um pecado qualquer, nem tampouco um tropeço que o cristão teve na sua
caminhada. Não é um mero desvio moral ou acidente espiritual. Fritz Laubach
define como "uma ruptura completa da vida com Jesus, o abandono da verdade
divina experimentada”.110 expositor I. Howard Marshall define como:
"Negação da fé por aqueles que antes a sustentavam”.12
De forma
semelhante, o expositor Merril F. Unger define a apostasia como "um ato de
um cristão, que, consciente e deliberadamente, rejeita a verdade revelada da
divindade de Cristo (1 Jo 4.1-3) e a redenção mediante seu sacrifício
expiatório” (Fp 3.18; 2 Pe 2.1)." Em seu comentário sobre Hebreus, o
expositor Adam Clarke, quando comenta sobre o apóstata, diz que ele é
"alguém que rejeita completamente a Jesus e seu
sacrifício e renuncia a todo o sistema evangélico. Isso nada tem a ver com os
desviados no uso comum do nosso termo. Um homem pode cair repentinamente em uma
falta ou ainda deliberadamente andar em pecado e, porém, não rejeitar o
evangelho nem negar ao Senhor que lhe comprou. Sua situação é temerária e
perigosa, mas não sem esperança. O único caso sem esperança é o do apóstata
deliberado, que rejeita o evangelho depois de haver sido salvo pela graça ou
convencido da verdade do evangelho. Para o tal, já não resta mais sacrifício
pelo pecado, porque já houve um, o de Jesus, e ele o rejeitou por completo”.14
A postasia, uma Possibilidade Real
Ao longo da História da Igreja, algumas formas de
interpretar a apostasia relatada na carta aos Hebreus têm-se sobressaído. I.
Howard Marshal observa que “muitos estudiosos restringem a apostasia ao
abandono temporário manifestado pelos verdadeiros crentes e ao desvio dos
crentes nominais de uma profissão de fé superficial e aparência exterior, mas
outros afirmam que, juntamente com as declarações da eterna segurança do
crente, devem ser colocadas outras explicações que alertam aos verdadeiros
crentes sobre a apostasia e sobre a possibilidade de não conseguirem encontrar
a entrada para o reino de Deus (Hb 6; 10.26-29)".1
A Apostasia em Hebreus Vista por Diferentes
Perspectivas
1. O texto
realmente se refere a cristãos que perdem a salvação;
2. O texto é
um argumento hipotético para advertir os cristãos imaturos que eles devem
progredir rumo à maturidade. Nesse aspecto, experimentariam a disciplina ou
juízo divino se não ouvissem a exortação;
3. O texto
refere-se a cristãos professos, cuja apostasia comprova que não tinham fé
suficiente. Eram crentes, mas não eram regenerados;
4. O texto é uma referência aos réprobos,
aqueles a quem Deus não havia escolhido para estar entre os eleitos.
5. O texto
não se refere a uma queda hipotética nem tampouco à apostasia, mas apenas ao
pecado ou tropeço cometido por pessoas imaturas.16
Uma análise
do capítulo 6.4-6 de Hebreus, onde está a declaração mais severa sobre a
apostasia, deve levar em conta as advertências que, desde o início, o autor de
sua carta vinha fazendo (capítulos 2 e 3). Essa ênfase já era forte, mas não de
forma tão enfática como aqui. Havia chegado o momento de ele adverti-los sobre
o que realmente estava em jogo: a real possibilidade de se decair da fé. Um a
Hipótese Improvável Os argumentos em favor de uma "apostasia
hipotética" não conseguem ser convincentes. Os que argumentam que o autor estaria
tratando apenas de um "juízo” ou “disciplina” de advertência esquecem que
ele fala de uma total exclusão sem possibilidade de retomo. O comentarista
bíblico Donald Guthrie, por exemplo, insiste na tese de que Hebreus 6.4-6 trata
de um “caso hipotético”, e não da real possibilidade de se decair da graça.17
O expositor Millard J. Erickson, um teólogo de
tradição batista, tenta achar um meio-termo para solucionar o problema do caso
hipotético. Ele argumenta que Hebreus 6.4-6 realmente admite a possibilidade da
queda na fé, mas defende que Deus não permitiria que isso acontecesse.
18 No
entanto, como destaca o expositor Leon Morris, "a menos que o autor de
Hebreus esteja falando de algo que realmente pudesse acontecer, não seria uma
advertência sobre nada”.19 Morris acredita que algumas pessoas podem ter ido
longe o suficiente na experiência cristã para saber do que se trata e, então,
desviam-se. Nesse caso, elas estão crucificando Cristo novamente. Morris admite
que o autor de Hebreus via a apostasia como uma possibilidade real que o autor
de Hebreus não queria ver acontecer com seus leitores, M uitas Conjecturas,
nenhum Consenso Mesmo sendo mais uma aporia do que propriamente um paradoxo, a
tese que nega uma apostasia real entre crentes tem vários defensores e
desdobramentos. Há uma extensa lista de comentaristas de renome que tentam
buscar outro sentido que vai além daquele que naturalmente é exposto no
capítulo 6.4-6 de Hebreus. O escritor Gleason L. Archer, por exemplo, afirma
que as pessoas descritas nessa passagem não eram cristãs, mas pessoas que
haviam chegado ao conhecimento do evangelho por meio da experiência dos outros.
William R. Newell tenta desqualificar essas pessoas dizendo que elas haviam
"provado”, mas não tinham "bebido” da salvação. R. A. Torrey falou da
"animação" dos Hebreus, mas que isso não era "regeneração”. John
Owen, antigo teólogo puritano, disse que "as pessoas de quem se fala aqui
não são crentes sinceros e de verdade”. B. F. Wescott argumentou que o
"impossível”, aqui, significa “impossível para o homem, mas não para Deus”.
Delitzsch e Lenski argumentam que o pecado de Hebreus 6.4-6 é semelhante à
blasfêmia contra o Espírito Santo (Mt 12.31), embora o texto citado, segundo
eles, revele que quem blasfemou não eram crentes. G. H. Lang argumenta que o
texto fala de crentes verdadeiros; todavia, o julgamento ao qual o autor de
Hebreus refere-se não é a morte eterna, mas a física.20
Todo esse
leque de interpretações conflitando entre si mostra a dificuldade que há quando
se tenta atribuir um sentido diferente daquele que o texto claramente revela: a
possibilidade de cair da fé.
Se partirmos
do pressuposto de que o texto de Hebreus 6.4-6 está, de fato, referindo-se a
uma situação hipotética e que não acontece entre cristãos, então por que o
autor de Hebreus iria advertir seus leitores sobre algo que jamais poderia
acontecer? Eles já não estariam seguros da mesma forma? Se o autor já sabia que
Deus não permitiria que isso viesse a acontecer entre os cristãos, então por
que ficaria fazendo esse jogo de cena? No caso de uma apostasia hipotética, Albert
Bames, por exemplo, tenta defendê-la com duas ilustrações. Para ele, era como
se alguém fizesse uma suposição: "Se um homem tivesse caído num
precipício, seria impossível salvá-lo, ou tivesse uma criança caído no córrego,
certamente teria sido afogada”.21 O problema com essas ilustrações de Bames é
que tanto o "precipício" como o “córrego” existem. Se não existissem,
não haveria razão para que se tentasse evitá-los.
Apostasia, SalvaçAo e Regeneração
Se, por um
lado, a teoria do “caso hipotético” não pode ser defendida biblicamente, por
outro, é biblicamente inconcebível alguém ser crente e, ainda assim, não ser
regenerado, como defende Wayne Grudem.22 O escritor John MacArthur debate-se em
contorções teológicas tentando provar que essas pessoas as quais o autor de
Hebreus refere-se não eram crentes de verdade. Todavia, ele mesmo demonstra não
ter certeza se o texto de Hebreus 6.4-6 exclui os verdadeiros crentes.23 Essa
também parece ser a opinião de Judith M. Gundry-Volf, que explica o abandono da
fé em termo de "uma falsa profissão”.24 De forma semelhante, o teólogo
Kenneth S. Wuest, por exemplo, esforça-se para tentar provar que o autor de
Hebreus estaria se referindo ao "judeu não-salvo".25 Se esse fosse o
caso, restaria explicar por que o autor de Hebreus demonstrou tanta preocupação
com esse "não-salvo” perder algo que ele nem mesmo tinha: a salvação.26
Deve ser
ressaltado aqui que o apóstolo Paulo fala da apostasia no contexto da parousia
(2 Ts 2.3), que precede o aparecimento do Anticristo. O mesmo fato é aludido no
contexto da igreja em 1 Tm 4.1: "Mas o Espírito expressamente diz que, nos
últimos tempos, apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores
e a doutrinas de demônios”. Nesse último texto, fica claro que a apostasia é
algo que acontece dentro do contexto da igreja.
Sentindo o Gosto do Céu, porém Proibido de
Entrar nele
A posição do
reformador francês, João Calvino, é a mais radical e a mais difícil de
enquadrar-se no contexto de Hebreus 6. Calvino cria que esse texto estaria se
referindo aos réprobos, aqueles que, mesmo não tendo direito à vida eterna,
Deus tocava-os com "o sabor de sua graça”, "iluminava suas mentes com
lampejos de sua luz” e, em alguma medida, "gravava a sua palavra" em
seus corações. A fé deles, portanto, era apenas temporária e desvanecente.27 Mas
como explicar por que Deus, sendo amor e querendo salvar a todos (Jo 3.16;
1.29; 1 Tm 2.4; 1 Jo 2.2), permitiu a esse “réprobo”, já condenado ao Inferno,
experimentar o sabor da salvação se Ele não tencionava salvá-lo? Deus não seria
acusado de injusto se assim procedesse? Os que acreditam na segurança
condicional do crente argumentam que esse pensamento, longe de ser uma defesa
de soberania de Deus, soa mais como uma distorção do seu caráter e uma negação
explícita do seu amor. Em virtude daquilo que explicitamente ensina o contexto
dessa passagem, essa interpretação há muito vem perdendo fôlego entre os
intérpretes.
Examinando o texto — Hebreus 6.4-6
A palavra
grega adynatos (impossível), usada em Hebreus 6.4-6 como referência à
impossibilidade de o apóstata arrepender-se novamente, ocorre dez vezes no Novo
Testamento. Esse termo depõe contra a teoria de uma apostasia hipotética. O
autor de Hebreus usa esse termo outras três vezes em sua carta. Em Hebreus
6.18, é usada para dizer que é impossível que Deus minta. A palavra aparece
novamente em rs» ferência ao sistema levítico, descrevendo a impossibilidade de
o sangue de animais remover os pecados (Hb 10.4). Finalmente, o autor ainda
descreve como impossível alguém agradar a Deus sem o concurso da fé (Hb
11.6).28 Em todos esses textos, essa impossibilidade aparece de forma absoluta,
como algo real, e não como uma mera hipótese. A lógica é simples: Seria
possível Deus mentir? Não. Seria possível alcançar a libertação do pecado por
meio do sacrifício de animais? Não. Seria possível um crente que, consciente e
deliberadamente, renegou sua fé, tomando-se um apóstata, ultrajando o Espírito
da Graça e crucificando novamente o Filho de Deus, expondo-o à vergonha,
continuar sendo salvo? Não. O teólogo Richard S. Taylor observa que
“muitas páginas foram escritas na tentativa de
abrandar a severidade dessa passagem ao minimizar e enfraquecer a experiência
anterior destes apóstatas, fazendo parecer que foram apenas simpatizantes do
evangelho sem, na verdade, terem se tomado pessoas regeneradas. Mas esse mero
jogo de palavras não merece a atenção de um exegeta sério das santas Escrituras
de Deus, e torna suspeita a premissa doutrinária que aceita tal desvio”.29
M ais do que uma M era S uposição
O contexto
da carta aos Hebreus mostra, de forma inequívoca, que o autor está descrevendo
uma realidade factível e experimental. Reconhecidos expositores da Bíblia
acreditam que o autor está retratando uma realidade possível, e não apenas uma
situação hipotética. Comentando Hebreus 6.4-6, John Wesley escreveu:
"Aqui não é uma suposição, mas uma simples
relação de fato. O apóstolo descreve o caso daqueles que lançaram fora tanto o
poder como a forma da piedade; que perderam tanto a fé como a esperança e amor,
Hebreus 6.10, etc., e isso intencionalmente, Hebreus 10.26. Desses que
voluntariamente apostataram, ele declara que é impossível renová-los novamente
ao arrependimento”.30
O teólogo I.
Howard Marshal observa que “um estudo das descrições oferecidas aqui em uma
série de quatro particípios (aoristo grego) sugere, de modo conclusivo, que uma
experiência genuína está sendo descrita”31. Da mesma forma, A. T. Robertson
destaca que “todos estes extremos são apresentados como verdadeiras
experiências espirituais”.32 O autor, portanto, não estava supondo uma situação
inexistente, irreal e que existia apenas subjetivamente sem qualquer implicação
objetiva.
Provou, Experimentou e Participou
Os
particípios gregos presentes em Hebreus 6.4-6 e que serão analisados a seguir
mostram que o autor de Hebreus via esse perigo como algo real e sobre o qual se
deveria tomar todos os cuidados.
Um Iluminado não P ode Estar nas Trevas
Tendo sido
iluminado (particípio grego: photisthentas). Primeiramente, o autor de Hebreus
mostra que o apóstata é alguém que anteriormente foi iluminado, mas renegou a
sua nova vida em Cristo. O expositor Neil R. Lightfoot observa que essa
iluminação é uma referência à conversão.33 De fato, o autor novamente usa esse
mesmo termo em Hebreus 10.32 para referir-se à experiência da conversão:
"Lembrai-vos, porém, dos dias anteriores, em que, depois de iluminados,
sustentastes grande luta e sofrimentos” (ARA).34 Aqui, o iluminado era alguém
que se convertera e que, portanto, fazia parte da igreja. Por outro lado, o
escritor Gerald F. Hawthome busca na patrística, e não no contexto imediato de
Hebreus, que “iluminados” seria uma referência ao sacramento do batismo, e não
à conversão. Do mesmo modo, ele defende que a expressão "provaram o dom
celestial” significaria que os crentes sobre os quais o autor de Hebreus
refere-se teriam participado da ceia.35 A fraqueza dessa tese é que ela exporta
para dentro do texto sentidos que são estranhos ao mesmo. O expositor Leon
Morris destaca que, embora o termo “iluminado” seja usado neste sentido no
segundo século, esse é, todavia, um uso tardio. Segundo Morris, o termo é mais
bem interpretado “à luz do uso geral pelo qual aqueles admitidos à fé cristã
são trazidos para aquela luz que é 'a luz do mundo’ (Jo 8; 12; ver 2 Co 4.6, 2
Pe 1.19)”.36 Assim como Morris, o Comentário Bíblico São Jerônimo destaca que o
entendimento mais natural é ver “iluminados” como uma referência à iluminação
dada pela fé em Cristo (2 Co.4.6) e “provaram o dom celestial” como uma metáfora
de provar a salvação trazida por Jesus (Rm 5.15; 2 Co 9.15).37 Esse sentido é
visto também pelo expositor William Lane, que destaca: “essas pessoas [Hb
6.4-6] haviam testemunhado ‘o fato de que a salvação era a realidade
inquestionável em suas vidas”’.38
Provou, mas não Experimentou?
Tendo provado do dom celestial (particípio
grego: geusamenous). Em segundo lugar, o apóstata é alguém que renunciou a
salvação e todas as bênçãos advindas dela.39 Essa expressão é tida pelos
intérpretes como uma referência ao ingresso no corpo de Cristo, à igreja e à
sua participação nela. Alguns expositores, na tentativa de negar a
possibilidade do fracasso na fé mostrada nesse texto, procuram fazer uma diterença
entre "provar” e "experimentar”. A ideia por trás é que essas pessoas
descritas pelo autor de Hebreus, como já foi exposto anteriormente, não eram,
de fato, crentes genuínos. Elas teriam tido alguma forma de experiência, mas
não uma autêntica transformação. Alguns expositores argumentam que a palavra
geusamenous (provado) é usada em Mateus 27.34 para mostrar que Jesus
"provou" o vinagre, mas não o “bebeu”. Dessa forma, esses
"crentes" também teriam "provado” a salvação, mas não se haviam
tomado participantes dela. Todavia, essa exegese não fica de pé diante de Atos
20.11 e Hebreus 2.9, onde esses mesmos termos gregos revelam que "comer”,
"provar” e "experimentar" são usados de forma intercambiável de
acordo com a conveniência do contexto. Em Atos 20.11, por exemplo, lemos: "E,
subindo, e partindo o pão, e comendo, ainda lhes falou largamente até à
alvorada; e, assim, partiu”.40 Aqui, evidentemente, o pão foi "comido”,
não apenas provado. De forma análoga, o texto de Hebreus 2.9 diz: "Vemos,
porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que fora feito um pouco menor
do que os anjos, por causa da paixão da morte, para que, pela graça de Deus,
provasse a morte por todos”. Seria um contrassenso dizer que Jesus
"provou”, mas não "experimentou" a morte.
Ruach HaKodesh — uma Bênção somente
para Crentes
Tendo se tomado participante do Espírito Santo
(particípio grego: genethentas). Em terceiro lugar, os que podem cair da graça
são aqueles que renunciaram a esse dom. É evidente que essa advertência só tem
validade para os crentes regenerados, visto que ninguém pode tomar-se
participante do Espírito Santo sem que antes nasça de novo (Jo 14.17; Rm 8.9).
O expositor David H. Stem, na obra Comentário Judaico do Novo Testamento,
destaca que “essa terminologia faz com que seja impossível que o autor esteja falando
de pseudocrentes, porque apenas verdadeiros crentes se tomam participantes no
Ruach HaKodesh" ,41
Eusébio de Cesareia x Lucas
O biblista
F. F. Bruce fez uma longa exegese procurando o real sentido da expressão “tendo
se tomado participantes do Espírito Santo”.42 Como um exegeta competente e
conservador, Bruce sabe que esse texto não pode ser visto apenas como um caso
hipotético. Ele comenta:
“tem sido
questionado se é possível que alguém — que tenha sido, em qualquer sentido
real, um participante do Espírito Santo — cometa apostasia, mas nosso autor não
tem nenhuma dúvida de que isso é possível”.43 A meu ver, Bruce acertou quanto
ao sentido desse texto, não vendo no mesmo apenas um sentido hipotético.
Todavia, ele usou um exempio inadequado na sua aplicação. Bruce toma Simão, o
Mago (At 8), como exemplo de alguém que apostatou. Ao tomar Simão como um
exemplo de um cristão apóstata, Bruce nivela-o com os falsos profetas citados
por Jesus em Mateus 7.22, sobre os quais Jesus dissera nunca os ter conhecido.
A dificuldade com essa tese é que ela choca-se
com o argumento do autor da carta aos Hebreus, que afirma ser impossível
renovar o apóstata para arrependimento (Hb 6.6), e Lucas diz que o apóstolo
Pedro mandou Simão arrepender-se, que seria uma solicitação absurda se ele
tivesse apostatado (At 8.22). De fato, o texto diz que Simão demonstrou
disposição para corrigir seu erro quando foi repreendido por Pedro (At 8.24).
Em palavras mais simples, o testemunho que ficou no Novo Testamento é do pedido
de perdão de Simão, o que seria impossível para um apóstata fazer. Por outro
lado, mesmo que Simão tivesse apostatado (como afirma Eusébio de Cesareia;
Lucas nada diz sobre isso), esse fato não depõe contra a autenticidade de sua
conversão.44 Lucas diz que "o próprio Simão abraçou a fé” (At 8.13, ARA),
uma expressão que deve ser entendida como sinônima de conversão (no grego, o
mesmo verbo para “crer”, pisteuô, é usado em relação a Simão e aos demais
samaritanos (At 8.12,13)). Menge traduz como “assim igualmente Simão se tornou
crente".45 Esse fato, portanto, demonstraria, sim, que um crente, mesmo
tendo sido regenerado, pode vir a naufragar na fé, como atesta o autor de
Hebreus. De fato, a palavra grega apôleia (destruição), que ocorre em Atos
8.20, é usada por Pedro antes que este exorte Simão ao arrependimento, o que
demonstra que, se permanecesse nessa condição pecaminosa, Simão naufragaria na
fé. Isso mostra que Simão enquadra-se mais no exemplo de um crente imaturo, até
mesmo carnal, do que no perfil de um apóstata.
Simão x D emas
A meu ver,
Bruce teria sido mais feliz se, em vez de Simão, tivesse posto Demas como um
exemplo de crente que apostatou da fé. Em Colossenses 4.14, Paulo saúda calorosamente
a todos os cristãos em nome de Demas. Em Filemom 24, Demas é identificado como
cooperador de Paulo. Em 2 Timóteo 4.10, Paulo diz: “Demas me desamparou, amando
o presente século [...]”. Mais uma vez, o contexto é determinante para o
sentido de um vocábulo bíblico ser estabelecido. O termo "abandonar” (gr.
enkataleipo) tem sua significação de acordo com o contexto. Tanto o léxico
grego de Bauer como o de Thayer citam como exemplo de enkataleipo (“abandonar,
desertar”) a passagem de 2 Timóteo 4.10, O sentido mais natural desse texto é o
de que Demas desertou du fé porque amou a presente era. Ele apostatou! 1
Uma Bênção Antecipada –
Tendo provado
a boa palavra de Deus e as virtudes do século futuro (particípio grego:
geusamenos). Em quarto lugar, o apóstata é alguém que não apenas provou do dom
celestial (v. 4), mas também provou da Palavra de Deus e das virtudes do século
vindouro. O mesmo termo grego usado no versículo 4 para “provar”,
“experimentar”, também é usado aqui no versículo 5. Eles não apenas
“experimentaram", observa Charles Trenthan, mas também “descobriram a
verdade da palavra de Deus. Eles experimentaram um antegozo do que era viver na
eternidade".46 Mesmo assim, renegaram tudo isso. Essa sequência de
particípios gregos demonstra, de forma inequí voca, como afirmou Adam Clarke,
que “qualquer que seja a opinião que prevaleça, existe uma terrível
possibilidade de afastar-se da graça de Deus”.47
Indo até Raiz: a Voz dos Léxicos
O expositor
W. W. Wiersbe, autor de um dos melhores comentários expositivos do Novo
Testamento, argumenta contra os que creem na segurança condicional do crente,
afirmando que a palavra grega apostasia não está presente no texto de Hebreus
6.4-6. Ele limita-se a dar uma breve descrição etimológica do verbo grego
parapipto, que aparece nessa passagem, como sendo o de "cair ao lado”.48
Uma exegese mais aprofundada desse texto não pode limitar-se apenas a questões
léxicas, como o faz Wiersbe, mas também procurar entender essa passagem no seu
contexto etimológico, gramatical e contextuai. O verbo grego parapipto, usado
nessa passagem, está no particípio aoristo, parapesontas. O léxico de Moulton
deu como tradução para esse verbo em Hebreus 6.6 os sentidos de: cair,
desertar.49 G. Abbott-Smith também traduz como cair.50 Bullinger, em seu
léxico, também destacou esse sentido de "queda” como uma deserção.5'
Dentre outros sentidos, Liddell e Scott destacam que esse verbo tem o sentido
de “queda" e era usado também em referência a algo que foi perdido ou
alguém que estava numa “situação de infortúnio".52 A Nova Chave
Linguística do Novo Testamento Grego destaca que seu sentido, dentre outros, é
o de renegar.53 Esse sentido de "queda", como um desvio e abandono de
um relacionamento antes estabelecido, é visto no léxico grego de Friberg.54
Friberg destaca que esse sentido passa a ser usado figurativamente no Novo
Testamento como sendo: “afastar-se, cometer apostasia" 55 Semelhantemente,
os léxicos de Gingrich, Barclay e Newman traduzem, respectivamente, esse
"cair” como um "apostatar.56 O clássico léxico de Bauer, dentre
outros significados, também define parapipto como "apostatar” 57 De forma
análoga, o léxico analítico de Mounce traduziu parapipto como “rebelar-se
contra, apostatar”.58
Toda essa
variação léxica mostra que essa palavra possui um peso semântico muito mais
amplo do que lhe atribui Wiersbe. Parapipto, portanto, não é apenas um “cair ao
lado”, mas também um desvio, uma quebra de relacionamento, uma deserção, uma
rebelião, uma queda; enfim, uma apostasia.
Escribas e Massoretas
Os fatos
mostram, portanto, que o entendimento do vocábulo parapipto passa
necessariamente por uma análise léxica, mas não pode limitar-se a isso. O
contexto no qual ele é usado em Hebreus é determinante. 0 pano de fundo
contextuai do autor de Hebreus é a Septuaginta grega.59 É um consenso entre os
eruditos que é dessa tradução que o autor extrai a maior parte de suas
citações. A obra Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Commentary destaca que
“o verbo usado em Hebreus 6.6, usado somente aqui no Novo Testamento, ocorre em
contexto na Septuaginta nos quais a infidelidade está em vista (e.g. Ez 14.13;
15.8)".60De fato, na tradução dos LXX, parapipto é usado no contexto onde
o seu sentido é o de “cair em transgressão” (parapeseinparaptoma, Ez 14.13) e
(parapesonparaptomati, Ez 15.8).61 No contexto dessas passagens bíblicas, Deus
promete “eliminar” e "consumir” os que cometeram graves transgressões
contra Ele.62 O julgamento seria dado de forma tão dura que nem mesmo a
intercessão de Noé, Daniel e Jó, homens reconhecidos pela sua piedade, poderia
reverter a sentença divina (Ez 14.14;20).63 Os lexicógrafos Jenni e Westermann
destacam os vários usos desses termos na versão dos LXX, especialmente o seu
equivalente hebraico mais comum, maal. De acordo com Jenni e Westermann,
"a Septuaginta emprega mais de uma dúzia de palavras gregas para traduzir
maal, destacando que os tradutores são consistentes no uso de suas traduções. Ezequiel
normalmente usa maal com o sentido de transgredir”. 64 Esse “transgredir"
ou “cair em transgressão" de Ezequiel 14.13, onde parapipto é usado,
recebe o sentido de apostatar no léxico grego da Septuaginta de
Lust-Eynikel-Hauspie. 65 Esse significado de apostasia para o verbo grego
parapipto fica mais claro no clássico léxico de Thayer, que o traduziu com o
sentido de "cair da verdadeira fé”.66 Thayer destacou ainda o fato de que,
em Ezequiel 14.13 e 15.8, a versão dos LXX usou parapipto para traduzir o
hebraico ma‘al. No texto massorético, o vocábulo hebraico maal aparece em
vários contextos.67
O linguista
judeu Em est Klein destacou que, etimologicamente, esse termo vem de uma raiz
hebraica cujo sentido é o de "cobrir" e passou a significar
"agir infielmente, comportar-se traiçoeiramente”.'’* O léxico hebraico de
Schokel destaca os vários sentidos que esse termo assume; por exemplo, traição,
infidelidade, deslealdade, felonia, aleivosia, perfídia, rebeldia, delito.69 O
léxico de Koehler & Baumgartner destaca as três dimensões nas quais esse
vocábulo é usado: coisas, pessoas e Deus.70 Robin Wakely observa que, “na maioria
esmagadora dos casos, o objeto de ma‘al é Deus. Josué 7.1 é a única passagem em
que a referência linguística não é a pessoas ou a Deus (diretamente), mas
alguma coisa (proibição), embora essa coisa represente o relacionamento
divino-humano”.71 O sentido de maal, portanto, é usado para especificar os
aspectos de uma relação que foi quebrada entre Deus e o homem. Dessa forma, o
léxico de hebraico bíblico de A. B. Davidson traz como significados os termos
“perversidade, traição, pecado contra Deus”.11 A natureza negativa desse
relacionamento, observa o hebraísta R. Laird Harris, é evidenciada quando o
homem comete ofensa contra o Senhor.73 O Dicionário Vine destaca esse aspecto,
que são revelados tanto pelo verbo como pelo substantivo hebraico. "O
verbo e o substantivo têm implicações fortemente negativas que o tradutor tem
de transmitir (Ez 14.13)’’.74 O exemplo que demonstra isso é a morte de Saul,
quando este caiu em transgressão contra Deus (1 Cr 10.13). Por outro lado, o
hebraísta William Gesenius e os lexicógrafos F. Brown, S. Driver e C. Briggs
destacam as consequências desse agir negativo: um julgamento severo para
aqueles que agiram infiel e traiçoeiramente nas coisas que deveriam ser
devotadas a Deus.7,5
Observa-se,
portanto, que os termos “cair”, “desviar”, "afastar”, “renegar”,
“desertar”, “pecar” e as expressões “cair em transgressão", “cometer
ofensa contra Deus” e “cair da verdadeira fé", etc., dentro dos seus
respectivos contextos, são perfeitamente entendidas como referências a uma
queda ou apostasia, tanto no texto hebraico como no grego do Antigo Testamento.
A Terceira Via
As
evidências demonstram inquestionavelmente que o texto de Hebreus descreve uma
situação de afastamento, de abandono e queda da fé. Todavia, alguns autores não
se dão por satisfeitos com essa direção que o texto conduz. Eles têm procurado
uma rota alternativa. O escritor Hal Harless, por exemplo, não crê que o autor
esteja falando de uma situação hipotética nem tampouco sobre uma apostasia
entre crentes. Harless, que, a meu ver, produziu uma excelente pesquisa e
argumentação sobre o tema, procura evitar a polarização que esse assunto ganhou
dentro das duas principais escolas teológicas do protestantismo histórico.
Harless, portanto, é um daqueles que está à procura de uma terceira via.
A análise de Harless mostra que o texto está,
de fato, referindo-se a uma situação real e de verdade entre crentes; todavia,
não estaria falando de uma apostasia. Segundo ele, o pecado dos hebreus
revelaria mais uma situação pecaminosa temporária cometida por crentes imaturos
do que uma apostasia — algo como um tropeço apenas. Ele argumenta que o texto
estaria dizendo que, enquanto os crentes hebreus continuassem praticando ou
participando do sistema levítico de sacrifícios, eles estariam pecando e, nessa
condição, estariam sujeitos à disciplina divina.76
Harless
argumenta:
“Hebreus 6.1-9
refere-se aos cristãos que pecam, não que apostatam, ensinando o perigo da
imaturidade contínua. Devemos avançar para a maturidade, uma vez que a
renovação ao arrependimento é impossível enquanto re-crucificarmos Cristo por
retornarmos ao sistema sacrificial do Antigo Testamento. Além disso, o texto
ensina um perigo real de disciplina divina para corrigir o nosso pecado e
preparar-nos para boas obras. Contudo, Hebreus nunca ameaça os crentes com a
ausência ou perda da salvação”.77
De acordo
com Harless, essa situação mudaria se eles abandonassem aquela prática e
voltassem a Cristo. Ele argumenta que, tanto no grego clássico como na Septuaginta
e também no koiné, o termo parapipto não significaria apostatar, mas somente
pecar, no sentido de desvio ou tropeço. Ele cita alguns exemplos, tanto da
literatura bíblica como secular, onde supostamente ficaria demonstrado esse uso
(por exemplo: Et 6.10; 1 Clemente; Josefo e muitos comentaristas modernos).
Entretanto, Harless pareceu-me seletivo, pois ignorou ou desqualificou obras
léxicas de peso que possuem argumentação diferente da que ele adota, como, por
exemplo, os clássicos léxicos de Walter Bauer e Joseph Thayer.78 Harless
argumenta que algumas dessas obras, supostamente sem justificativa alguma,
traduziram as ocorrências de parapipto na Septuaginta como tendo o sentido de
uma apostasia. Segundo ele, o sentido de “pecar” deveria prevalecer. De fato,
Harless tem razão quando diz que as ocorrências de parapipto na Septuaginta
possuem primeiramente, como vimos, o sentido de cometer transgressão, pecar,
falhar ou desviar.19 Esse fato é facilmente perceptível no léxico de T.
Muraoka, que se limita ao uso do vocábulo parapipto na versão dos Setenta.80
Nesse aspecto, parapipto nem sempre possui o sentido de apostasia. Mesmo assim,
o contexto nunca deve ser perdido de vista. Isso pode ser percebido no léxico
grego de Liddell e Scott, que traduziu parapipto em Hebreus 6.6 como “cair”
(fallaway), e o termo grego apostasia, em 2 Ts 2.3, com o sentido de uma
rebelião contra Deus, uma apostasia. 81 Já ficou demonstrado aqui que apostasia
(2 Ts 2.3) deriva de aphistemi, sendo também traduzido como "cair” (fallaway)
em Hebreus 3.12 (veja Bauer). Em outras palavras, parapipto (Hb 6t#) e
apostasia (Hb 3.12) são termos que aparecem como sinônimos no contexto
neotestamentário de Hebreus.82
Dentro da
hermenêutica bíblica, as análises léxico-gramaticais são fundamentais; todavia,
o juiz de qualquer princípio léxico-gramatical é o contexto.83 O expositor John
B. Taylor, comentando Ezequiel 14.13, destaca que o significado do verbo
hebraico usado aqui é "agir traiçoeiramente” na quebra de uma aliança
solene. Nesse aspecto, ele lembra que “é empregado para o pecado de Acã com
relação às coisas condenadas (o herem, Js 7.1) e ao ato adúltero de uma esposa
(Nm 5.12), sendo que os dois incorriam na pena de morte. O significado, aqui,
diz respeito, de modo semelhante, a um pai que, pela sua infidelidade, merece o
castigo máximo”.84 Que ‘‘grave transgressão” era essa que merecia a pena
máxima? Os hebraístas Keil e Delitzsch, no clássico Commentary on the Old
Testament, afirmam tratar-se da apostasia. Esses autores destacam que, em
Ezequiel 14.13, o vocábulo hebraico ma‘al, que, nessa passagem, foi traduzido
por parapipto na Septuaginta, possui inquestionavelmente o sentido de
apostasia. Eles observam que, ali, esse termo significa literalmente
"cobrir, significando agir de maneira secreta ou traiçoeira, ou reter o
que lhe é devido. Na passagem diante de nós, é a traição da apostasia contra
Deus através da idolatria praticada”.85
O contexto,
portanto, é determinante para que se tenha uma tradução apropriada e também se
a referência é usada em relação a Deus. Mesmo sendo usada em relação a Deus, o
contexto é o que determinará se se trata de uma apostasia ou não.86
Quando me refiro ao contexto aqui, não o limito
apenas ao Antigo Testamento, mas também ao Novo Testamento, que é uma
interpretação fidedigna daquele. Quando se observa os contextos tanto do Antigo
quanto do Novo Testamento, fica bastante claro que as expressões cometer
transgressão, cair em transgressão (que ocorrem em Ezequiel 14.13, 15.8) e
caíram (em Hebreus 6.6) possuem o sentido de cair da verdadeira fé. Os léxicos,
portanto, corretamente traduziram parapipto como apostasia e associaram-na a
Hebreus 6.6, onde esse vocábulo possui o mesmo sentido.87 Em Hebreus, sem
sombra de dúvida, o seu sentido é de uma queda da fé sem, contudo, oportunidade
de retorno! De fato, o Léxico Grego-Português do Novo Testamento - Baseado em
Domínios Semânticos, dos autores Johannes Louw e Eugene Nida, deu a seguinte definição
para parapipto: "Abandonar um relacionamento ou uma associação que se
tinha anteriormente ou dissociar-se (um tipo de reversão do ato de começar a
associar-se) - “afastar-se, cair, abandonar”. Parapesontas, paíinanakainizein
eis metanoian, “depois que caíram, (é impossível) trazê-los de volta a um novo
arrependimento (Hb 6.6)”.
88
Etimologicamente, portanto, as evidências semânticas e contextuais demonstram
uma queda da fé sem oportunidade de arrependimento.
Esses fatos
acabam implodindo a tese de uma "queda temporária", como quer
Harless, e, sem dúvida alguma, também desestrutura o “pecar sem apostatar”,
como sugere Michaelis. De acordo com Michaelis, de quem Harless aproxima-se
muito, os exemplos da ocorrência de parapipto, tanto na LXX como no NT,
mostrariam que o que está em questão é a culpa de um erro ou pecado, e não de
uma apostasia. Segundo ele, embora o significado deparapipto tenha sido
traduzido como "cair”, no sentido de apostatar, como indica Hebreus 3.12,
onde o verbo apostenai é tomado como sinônimo, todavia argumenta ser mais
apropriado traduzi-lo como "ofender”, “pecar”, em vez de “apostatar",
como o faz a Septuaginta.89 Em palavras mais simples, o que o autor de Hebreus
estaria descrevendo é um “pecar sem apostatar”. A suposta razão que
justificaria esse entendimento, argumenta Michaelis, é que não há uma
referência clara a uma ofensa específica em Hebreus.
A fraqueza dessa tese, como já ficou
demonstrada, é que ela é semanticamente imprecisa e vai em direção contrária
àquilo que diz o contexto de Hebreus. A exortação do autor é exatamente no
sentido de que quem voltasse atrás naquilo que o autor estava advertindo não
teria mais como voltar. “O autor de Hebreus”, destaca o Dicionário Bíblico
Tyndale, “referiu-se aos que haviam crido e então abandonado a fé como estando
em uma situação sem esperança — sem nenhuma possibilidade de arrependimento futuro
(6.1-6)”.90 Aqui, não há uma ideia de alguém “pecar sem apostatar” e nem
tampouco de uma "queda temporária”. Deve-se observar ainda que a
argumentação de Michaelis, à semelhança de Harless, esbarra no contexto da
tradução dos LXX em Ezequiel 14.13 e 15.8 e de Hebreus 6.4-6 e 10.29. O contexto
dessas passagens mostra que, mesmo trocando ''apostasia" por
"pecado", o sentido é o de um "voltar atrás" ou de uma
queda. À luz do contexto de Hebreus, tanto faz "pecar" como
"apostatar”, quando o que de fato está em relevo é o perigo de cair da
graça de uma forma definitiva, e não apenas temporária. Observa-se também que a
tese do "pecar sem apostatar” é falha por subjetivar demasiadamente os
pecados citados, tanto na versão dos LXX como na carta aos Hebreus. O autor de
Hebreus mostra uma exortação específica, objetiva e enfática, não somente nos
textos de Hebreus 3.12 e 6.6, mas também em 10.29: “De quanto maior castigo
cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver
por profano o sangue do testamento, com que foi santificado, e fizer agravo ao
Espírito da graça?". Nesses textos, portanto, o pecado é tratado de forma
concreta, e não subjetivamente.
À luz do
contexto de Hebreus, especialmente em relação às referências do profeta Ezequiel,
é sensato concluir que a apostasia, como uma queda da verdadeira fé, era a
imagem que o autor de Hebreus tinha em mente quando redigiu seu texto.91 O uso
do mesmo termo grego,parapipto, tanto pelo profeta Ezequiel (14.13; 15.8)
quanto pilo autor de Hebreus (6.6), postos em contextos onde a falta de
fidelidade está em evidência, deixa esse fato em relevo. Ezequiel denuncia a
idolatria como um cair em pecado, um abandono de Deus e uma grave transgressão
contra o Senhor. Enfim, uma queda da fé e, sem dúvida alguma, como observaram
Keil e Delitzsch, uma apostasia. É exatamente sobre o perigo da apostasia que o
autor de Hebreus também está preocupado. Ele adverte seus leitores sobre os
perigos de afastar-se do Deus vivo (Hb 3.12); de cair da fé verdadeira (Hb 6.6)
e de ser submetido a um juízo severo (Hb 10.26-29). É relevante o fato de que,
em Hebreus 3.12, o autor usa a palavra grega apostasia para advertir seus
leitores sobre o perigo da queda da fé. Seria ilógico imaginar que, em Hebreus
3.12, o autor estivesse se referindo à apostasia, como, de fato, está, e, em
Hebreus 6.4-6 e 10.29, onde a exortação é, sem sombra de dúvidas, muito mais
severa que em Hebreus 3.12, ele estivesse tratando de algo menos grave.
Dando Voz à Gramática
Gramaticalmente,
com o particípio aoristo, parapipto (parapesontas), que ocorre em Hebreus 6.6,
mantém o sentido de: tendo caído de uma forma completa ou definitiva.92 R. T.
Kendall, mesmo crendo na perseverança dos santos, foi fiel ao texto e deu
tradução semelhante, justificando: “parapesontas é um particípio aoristo, que é
traduzido como ‘caíram’ ou 'tendo caído’. Sua queda foi um fato".93 Grant
Osborne destaca que "praticamente todos os comentaristas recentes admitem
que isto deve ser apostasia final, a rejeição absoluta de cristo”.94 O biblista
F. F. Bruce, ao comentar Hebreus 6.4-6, destaca que o contexto é determinante
para uma compreensão correta do sentido de parapesontas nessa passagem bíblica.
Em posição oposta à que é defendida por Wiersbe, Bruce observa que "não é
o seu significado radical, senão seu contexto o que indica que se refere aqui a
apostasia — o mesmo pecado expressado por apostenai (apostasia) no capítulo
3.12”.95 Esse também é o entendimento que se observa na redação da obra A
Readers Greek New Testament, que traduziu apostenai (Hb 3.12) como
"desviar”, "cair", "rebelar", e parapesontas (Hb 6.6)
como "cair", "apostatar".96
0 “ S e” Ausente
Esse tom
exortativo e vigoroso de Hebreus 6, como vimos, tem soado demasiadamente forte
para alguns intérpretes. Isso tem feito alguns deles tentarem suavizá-lo de
todas as formas. Uma dessas tentativas é achar um sentido condicional para o
particípio grego parapesontas e também a inserção da partícula condicional
"se" (se caírem) no texto, para amenizar o sentido desse verbo.97 O
escritor Kenneth Wuest argumenta, sem evidência textual nenhuma, que, no texto,
existe
“um particípio condicional, um caso hipotético
apresentado”.98Essa, porém, é uma excrescência que não conta com o apoio da
crítica textual. O aparato crítico de Bruce M. Metzger não traz variante
textual alguma sobre esse suposto “se”.99 A The NKJVStudy Bible, editada por
Earl D. Radmacher, destaca que "alguns traduzem este verbo na condicional.
A ausência da forma condicional no texto grego constitui um argumento contra a
interpretação ‘hipotética’ desta passagem (v. 4). Recair se refere aqui a uma
apostasia deliberada (3.12), uma deserção da fé’’.100
O reformador
Teodoro de Beza (1519-1605), sucessor de João Calvino, introduziu
arbitrariamente no texto a condicional “se”, que não aparece no original, para
tentar forçar o texto a ajustar-se à sua forma de crer. Na sua versão do Novo
Testamento em latim, lemos: “Si prolabantur, denuorenoventur ad resipiscentiam;
ut quirursum crucifigantsibi Filium Dei, et ignominiae exponant". 101 Posteriormente,
tanto Adam Clarke como Mcnight, teólogo reformado, criticaram Beza por essa
interpolação.102 Mcnight destacou que
"os tradutores para a língua inglesa, seguindo
Beza, o qual, sem autoridade nenhuma de manuscritos antigos, inseriu em sua versão
a partícula se, traduziram essa expressão como se eles caírem, para não parecer
que o texto contradizia a doutrina da perseverança dos santos. Como, porém,
nenhum tradutor deveria tomar a si o adicionar ou alterar as Escrituras, por
causa de qualquer doutrina predileta, traduzi parapesontas no passado, tendo
caído, segundo o verdadeiro significado da palavra”.103
Os anos passaram, e Charles Spurgeon
(1834-1892), o príncipe dos pregadores, foi induzido ao erro ao valer-se desse
“se” para justificar que o texto falava de uma situação hipotética.104 O
escritor R. T. Kendall destacou que
“Charles. H. Spurgeon acreditava que aqueles
descritos em Hebreus 6.4-6 eram obviamente salvos, mas a situação apresentada
era hipotética. Spurgeon construiu toda a sua tese na pequena palavra ‘se’ -
‘se eles caírem’ (Hb 6.6). Spurgeon afirmou que isso ainda não tinha
acontecido. Infelizmente, Spurgeon não conhecia grego e ele não sabia que não
hâ ‘se’ no grego, em absoluto”.
105
Um a Tradução Equivocada
Essa interpolação, que tem gerado esse
equívoco exegético, ainda hoje está presente em algumas traduções da Bíblia. A
conceituada Bíblia Nova Versão Internacional, em sua edição em inglês, colocou
esse “se” inexistente no texto de Hebreus 6.6: “Ifthey fallaway, to be brought
back to repentance, becouse to their loss they are crucifying the Son o f God
ali over again and subjecting him public disgrace".106 Em tempo mais
recente, Dave Hunt (1926-2013), considerado um dos maiores apologistas
evangélicos, também à semelhança de Spurgeon, valeu-se desse "se”, que
nunca existiu, para justificar uma suposta segurança incondicional do
crente.107 Hunt escreveu: “Claramente aqueles a quem esta passagem se refere
são crentes genuínos. Além disso, não diz ‘quando eles caírem’, mas ‘se eles
caírem”’.108 O biblista Grant Osbome, respeitado hermeneuta contemporâneo,
criticou a Nova Versão Internacional por fazer essa interpolação da partícula
"se” no texto, forçando o versículo a possuir um sentido condicionante (Se
eles caírem). Osbome observa que: "A NVI está errada em traduzir o
particípio paralelo final como ‘se eles caírem'".m Osbome ainda observa
que, posteriormente, os revisores americanos (não aparece na NVI em português)
retiraram do texto essa partícula, mas colocaram-na estrategicamente em uma
nota de rodapé.
Seguindo a
análise de J. A. Sproule e Daniel B. Wallace sobre o uso do particípio aoristo
parapesontas em Hebreus 6.6, Hal Harless observa, acertadamente, que
: "Uma condicional de segunda classe tomaria
isso claro, mas no grego não há nenhuma condição em absoluto. O texto tem um
particípio adjetival de parapiptõ (“caíram, Hebreus 6:6). Este particípio não
pode ser condicional, já que seu artigo de controle o tom a adjetival ao invés
de adverbial”.110
De fato, o
gramático Daniel B. Wallace argumenta contra a condicionalidade do particípio
grego parapesontas em Hebreus 6.6, destacando que essa suposta condicionalidade
é uma suposição sem provas. Dessa forma, Wallace observa que Hebreus 6.6 deve
ser traduzido como: “É impossível restabelecer novamente ao arrependimento
esses que foram uma vez iluminados... e caíram”.111
Firmes em Cristo, porém Sempre Alerta!
Como foi
dito no início deste texto, o autor de Hebreus quer ver em seus leitores ânimo,
esperança e fé em tempos de apostasia. Ele tem convicções espirituais fortes,
mas não via essa mesma convicção em seus leitores. Foi preciso ele dar um
tratamento de choque, um grito de alerta, para acordar seus leitores. Porém,
quando fez isso, ele não estava encenando. A queda da fé era uma possibilidade
a ser considerada com toda a seriedade. Consciente de que fora duro em sua
exortação, o autor dá a eles uma palavra de ânimo: "Mas de vós, ó amados,
esperamos coisas melhores e coisas que acompanham a salvação, ainda que assim
falamos” (Hb 6.9).
Alguns
comentaristas apegam-se ferrenhamente a esse texto como uma última tentativa
para negar a possibilidade do fracasso espiritual relatado em Hebreus 6.4-6.
Eles argumentam que, nessa passagem, estaria a prova de que tudo o que o autor
descreveu sobre a queda na fé não passa de mera suposição. No entanto, se esse
fosse o caso, como já destacou Leon Morris em outros termos, tudo o que o autor
usou como alerta para seus leitores até aqui não passaria de encenação, e todas
as advertências seriam resumidas a uma farsa. O texto, porém, está longe disso.
O autor não está levantando hipótese alguma, mas, sim, tratando de uma
realidade extremamente séria: o perigo de cair da graça. Grant Osbome, irt
loco, observa que essas palavras do autor de Hebreus
"não justificam uma visão hipotética da
apostasia, como se o perigo fosse afirmado apenas como um meio de estimulá-los
a perseverar, mas que nunca poderia acontecer. O perigo é muito real, mas o
autor encoraja-os com uma declaração positiva sobre a sua verdadeira posição em
relação a Cristo”.112
A Salvação É pela Graça, mas não É
Compulsória
Depois dessa
análise exegética, duas coisas ficam em relevo. Em primeiro lugar, a teoria que
tentou converter o texto de Hebreus 6.4-6 em um caso meramente "hipotético”
não se sustenta. Para firmar-se, essa teoria passou a depender de uma obra de
engenharia teológica muito grande, edificando-se sobre fundamentos léxicos e
gramaticais inexistentes no texto. Sua principal coluna de sustentação, uma
suposta condicionalidade do texto, foi demolida pela redação original do Novo
Testamento. Por outro lado, aqueles que defendem que o texto refere-se a
"réprobos" não conseguem explicar por que esse "não-salvo”, que
nunca foi regenerado e que permanece nos seus delitos e pecados tenha tido os
mesmos privilégios que são reservados exclusivamente aos salvos. Por que Deus
permitiria a esse “não-salvo” receber da parte dEle “iluminação”, “provar do
dom celestial”, “participar do Espírito Santo” e "experimentar a Palavra de
Deus e os poderes do mundo viu douro" para, logo em seguida, ter que
jogá-lo no Inferno? Da mesm» forma, a tese que tenta “retirar" a apostasia
do texto de Hebreus 6.4-i enfrenta problemas contextuais e semânticos
insuperáveis. A própria carta aos Hebreus usa esse termo apostasia em Hebreus
3.12, e os eruditos destacam que o termo grego parapipto usado em Hebreus 6.4-
6 deve ser visto como sinônimo de apostasia que ocorre em Hebreus 3.12 (veja
Bruce). Da mesma forma, não há como negar que Hebreus 10.26-29 é uma referência
clara àquilo que o autor descreveu em Hebreus 3.12 e 6.4-6, isto é, a queda da
fé. De fato, Richard C. Trench, em seu clássico Synonyms o f the New Testament,
destaca que Hebreus 6.6 "é equivalente ao ekousiôshamartánein de 10.26, ao
apostenai apo Theouzontos de 3.12”.113
Em segundo
lugar, convém destacar que a linguagem sobre a segurança do crente encontrada
em Hebreus não destoa daquela encontrada em outras Escrituras do Novo
Testamento. A salvação é pela graça, mas não é compulsória. Somos eleitos no
Filho de Deus, mas cabe a nós respondermos à obra santificadora do Espírito
Santo (Ef 4.30). Nossa salvação está condicionada a nossa obediência e
permanência em Cristo (Cl 2.6). Quem está em Cristo está seguro da vida eterna
(1 Jo 1.7; 2.24,28), mas não há segurança alguma para quem se afasta dEle. Esse
é o testemunho do autor de Hebreus e dos apóstolos em Gálatas 5.4 e também em 2
Pedro 2.20-22.
Esses fatos
estão sintetizados na Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil, que
diz:
“Rejeitamos a afirmação segundo a qual 'uma
vez salvo, salvo para sempre’, pois entendemos à luz das Sagradas Escrituras
que, depois de experimentar o milagre do novo nascimento, o crente tem a
responsabilidade de zelar pela manutenção da salvação a ele oferecida
gratuitamente: 'Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau
e infiel, para se apartar do Deus vivo’ (Hb 3.12). Não há dúvidas quanto à
possibilidade do salvo perder a salvação, seja temporariamente ou eternamente.
Mediante o mau uso do livre arbítrio, o crente pode apostatar da fé, perdendo,
então, a sua salvação: ‘Mas, desviando-se o justo da sua justiça, e cometendo a
iniquidade, fazendo conforme todas as abominações que faz o ímpio, porventura
viverá? De todas as justiças que tiver feito não se fará memória; na sua transgressão
com que transgrediu, e no seu pecado com que pecou, neles morrerá’ (Ez 18.24).
Finalmente, temos a advertência de Paulo aos coríntios: 'Aquele, pois, que
cuida estar em pé, olhe não caia’ (1 Co 10, 12). Aqui, temos mencionada a real
possibilidade de uma queda da graça. Assim, cremos que, embora a salvação seja
oferecida gratuitamente a todos os homens, uma vez adquirida, deve ser zelada e
confirmada”.114
A carta aos Hebreus recebeu os mais diversos predicados ao longo dos tempos. Para muitos, por ser um compilado de todas as doutrinas do evangelho, é a epístola mais importante. Em um período em que a igreja brasileira sofre uma profunda transformação negativa, o pastor José Gonçalves debruça-se sobre os ensinamentos das cartas aos Hebreus para trazer-nos uma reflexão teológica que promete ser um importante aliado contra a ameaça que ronda de perto a vida de todo verdadeiro cristão: A apostasia. Em A supremacia de Cristo, o autor busca fomentar a nossa fé, esperança e ânimo para que nos levantemos e vençamos a cultura secular que tanto prejudica a igreja brasileira.
José Gonçalves é pastor, graduado em Teologia pelo Seminário Batista de Teresina e em Filosofi a pela Universidade Federal do Piauí.
É presidente do Conselho de Doutrina da Convenção Estadual das Assembleias de Deus no Piauí e vice-presidente da Comissão de Apologética da CGADB.
Além de comentarista das revistas de Escola Dominical da CPAD, é também articulista e autor dos livros: As Ovelhas também Gemem, Porção Dobrada, Por que Caem os Valentes,
A Prosperidade à Luz da Bíblia e Defendendo o Verdadeiro Evangelho, todos editados pela CPAD.
Deus os abençoe !
É presidente do Conselho de Doutrina da Convenção Estadual das Assembleias de Deus no Piauí e vice-presidente da Comissão de Apologética da CGADB.
Além de comentarista das revistas de Escola Dominical da CPAD, é também articulista e autor dos livros: As Ovelhas também Gemem, Porção Dobrada, Por que Caem os Valentes,
A Prosperidade à Luz da Bíblia e Defendendo o Verdadeiro Evangelho, todos editados pela CPAD.
Deus os abençoe !
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