Comentário
de Hebreus 10.1-39
N
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este
capítulo, o autor continua sua exposição para consolidar o que iniciara nos capítulos anteriores acerca
da superioridade do sacerdócio de Cristo em relação ao levítico. Essa
argumentação estende-se até 10.18. Neste capítulo, há muitos pontos que atuam como uma espécie de
recapitulação do que fora dito anteriormente. Há, todavia, a presença de
elementos novos quando o autor introduz no texto o Salmo 40 e faz uma nova
aplicação da profecia de Jeremias 31.
"Porque, tendo a lei a sombra dos bens futuros e não a imagem exata
das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem cada
ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam" (v. 1). O autor começa esse
versículo com uma declaração que deve ter provocado espanto em seus leitores —
a Lei é uma sombra da realidade, e não a própria realidade. A palavra grega
skian mostra que a Lei é uma sombra ou projeção de um objeto que é a realidade.
Em contraste com a sombra, o autor coloca a imagem, do grego eikôn, que é o
próprio objeto que projeta a sombra que a Lei representa. A referência, aqui, é
ao sacerdócio de Cristo como a realidade da qual a Lei era apenas uma sombra.
“Doutra maneira, teriam deixado de se oferecer, porque, purificados uma vez os
ministrantes, nunca mais teriam consciência de pecado" (v. 2). Se, de
fato, o sistema levítico fosse eficaz, não haveria necessidade da repetição
contínua de ofertas e sacrifícios. Ele, porém, demonstrava-se ineficaz porque
não conseguia penetrar dentro do homem, permanecendo apenas uma limpeza ritual.
“Nesses sacrifícios, porém, cada ano, se faz
comemoração dos pecados” (v. 3). É exatamente isso o que o autor diz que
acontecia anualmente no ritual da expiação. Os pecados eram relembrados ou
trazidos à mente outra vez em uma espécie de rememoração. Aqui, o termo
"comemoração” (ARC) não consegue expressar o sentido do original,
anamnesis, que é o de "recordação” e “lembrança”, como traduz a Almeida
Revista e Atualizada.
“Porque é impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire
pecados" (v. 4).
F. F. Bruce, comentando in loco esse versículo, diz:
"A
contaminação moral não pode ser removida por meios materiais. O valor
espiritual que o ritual sacrificial podia ter tido residida no fato que era uma
prefiguração material ou uma lição objetiva de uma realidade moral e
espiritual”.
“Pelo que, entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas
corpo me preparaste" (v. 5). Aqui, o autor cita o Salmo 40.68 e segue a Septuaginta para
referir-se à pré-existência de Cristo. Deus não estava satisfeito com o culto
apenas formalista na Antiga Aliança e, por isso, mostra aqui a necessidade de
um sacrifício superior em tudo. Cristo daria seu corpo em sacrifício a Deus.
Artur Weiser observa que
"A rejeição radical de todo o culto sacrificial
explica-se, como no caso dos profetas, pela supracitada percepção da falsa
atitude fundamental em relação a Deus, que encontra sua expressão no culto
sacrificial e, pela sua origem e natureza, nasceu de outra área cultual. O
homem não pode, por seus sacrifícios, situar-se no mesmo plano de Deus, nem
‘colocar em ordem’, pelos próprios esforços, o seu relacionamento com Deus’’.2
“Holocaustos e oblações pelo pecado não te
agradaram" (v. 6). As palavras olokautôma ("holocausto",
"oferta queimada”) e peri hamartias ("oferta pelo pecado”) são uma
referência ao cerimonial levítico.
“Então,
disse: Eis aqui venho (no princípio do livro está escrito de mim), para fazer,
ó Deus, a tua vontade" (v. 7). No contexto do Salmo 40, o poeta anseia
por uma vida piedosa e autêntica. Inspirado pelo Espírito Santo, o autor de
Hebreus vê nas palavras do salmista uma referência clara à pessoa de Cristo. É
dEle que as Escrituras fazem referência como aquEle que havia de vir.
"Como acima diz: Sacrifício, e oferta, e holocaustos, e oblações
pelo pecado não quiseste, nem te agradaram (os quais se oferecem segundo a lei) (v. 8). Mesmo sabendo que o sistema
sacrificial levítico fora instituído por Deus, uma exigência da Lei, o autor
mostra que tal sistema não era a instância final. Se o antigo sistema tinha
caráter transitório, isso significa que Deus havia providenciado algo muito
melhor — o sacrifício de Cristo.
"Então, disse: Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade.
Tira o primeiro, para estabelecer o segundo" (v. 9). O expositor Fritz Laubach
comenta com maestria esse texto:
"A
trajetória do Messias a que se alude profeticamente na palavra do Sl 40.7-9, a
saber, que o Cristo haveria de entregar a Deus o seu próprio corpo como
oferenda para sacrifício, levou Jesus Cristo, de acordo com a vontade de Deus,
à cruz. Dessa maneira, a revelação da vontade de Deus no AT, ‘o obedecer é
melhor do que o sacrificar’ (1 Sm 15.22), obteve sua potenciação e último
aprofundamento. Cristo foi ‘obediente até à morte’ (Fp 2.8) e entregou-se a si
próprio como sacrifício. Nessa obediência extrema de Jesus à vontade de seu
Pai, explica-se também o mistério de sua autoridade na oração. Somente porque
Jesus cumpriu integralmente a vontade de Deus, ele também possui agora plenos
poderes ilimitados, a fim de, como nosso eterno Sumo Sacerdote, intervir
perante Deus em nosso favor, pela intercessão, sem cessar”.3
"Na qual vontade temos sido
santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez” (v. 10).
Um dos aspectos da vida de Cristo que o autor de Hebreus põe em relevo é o da
sua obediência, como Filho, à vontade de Deus. Esse texto faz eco com
Filipenses, onde Paulo diz que a obediência de Cristo levou-o à morte e morte
de cruz (Fp 2.6-8). Essa obediência levou-o a sacrificar-se pelo pecador. A
palavra grega prosphora, traduzida aqui como oblação, tem o sentido de oferta.
Foi por meio da oferta ou sacrifício de Cristo que nós fomos santificados. A
palavra egiasmenoi é um particípio perfeito no texto grego, que mostra essa
santificação como sendo posicionai. Esse fato é demonstrado pelo uso da palavra
ephapaks, que tem o sentido de de uma vez por todas. Em palavras mais simples,
Cristo santificou-nos quando cremos nEle e continua santificando-nos ainda hoje
quando permanecemos nEle.
“E assim todo sacerdote aparece
cada dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, que
nunca podem tirar pecados" (v. 11). Donald Guthrie comenta esse versículo, pondo em
destaque que
"A continuidade interminável dos sacrifícios
inadequados segundo a velha ordem está em contraste marcante com a nova ordem.
Os aspectos principais de interesse no presente versículo são: (i) a posição
dos sacerdotes (todo sacerdote se apresenta — lit. "fica de pé”), (ii) a continuidade
dos sacrifícios (a oferecer muitas vezes) e (iii) sua ineficácia de realizar o
seu propósito (i.e, para remover pecados). O primeiro aspecto tem contraste
marcante no versículo seguinte com a posição de Cristo: assentou-se. Estes
sacerdotes nunca poderiam sentar-se porque sua obra nunca era completa. Em
segundo lugar, muitas vezes (pollakis) está em direto contraste com uma vez por
todas (ephapax). E em terceiro lugar, a incapacidade das antigas ofertas
removerem os pecados é contrastada no v. 12 com a única oferta de Cristo pelos
pecados. Mais uma vez, a fraqueza da velha ordem fica sendo o pano de fundo
para a demonstração da maior glória da nova”.4
“Mas este, havendo oferecido um único
sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à destra de Deus"
(v. 12). O antigo sistema sacerdotal levítico chegara ao fim quando Cristo, de
uma vez por todas e como Sumo Sacerdote da Nova Aliança, fez a purificação dos
pecados.
“Daqui em diante esperando até que os seus inimigos sejam postos por
escabelo de seus pés” (v. 13). O autor volta novamente a citar o Salmo 110.1 para pôr em
destaque a obra de Jesus Cristo. F. F. Bruce vê aqui uma advertência do autor a
seus leitores para não serem contados entre os inimigos de Cristo, mas, sim,
entre aqueles que são seus amigos.5 É possível ver aqui também uma citação de
cunho escatológico quando Cristo, na consumação final, porá todos os seus
inimigos debaixo de seus pés (1 Co 15.24-28).
“Porque,
com uma só oblação, aperfeiçoou para sempre os que são santificados"
(v. 14). Mais uma vez, o autor volta a falar do aspecto definitivo da obra de
Cristo e, dessa vez, ele usa o tempo perfeito do verbo teleioô para destacar a
natureza desse sacrifício. Cristo completou a obra da salvação no passado, mas
seus efeitos sobre os crentes continuam no presente. Fomos santificados nEle e
continuamos em processo de santificação diária, também nEle.
“E
também o Espírito Santo no-lo testifica, porque, depois de haver dito"
(v. 15). O autor fará uma citação do profeta Jeremias no versículo 16, mas,
antes, ele põe em realce que a profecia foi dada por inspiração do Espírito
Santo. Com essa observação, o autor consolida sua argumentação de que ele não
está falando nada fora da autoridade divina. O que ele argumentou tem o selo do
Espírito Santo.
"Este é o concerto que farei com
eles depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei as minhas leis em seu coração e
as escreverei em seus entendimentos, acrescenta’’ (v. 16). Como já havia feito
anteriormente (Hb 8.8-12), o autor volta a citar a profecia de Jeremias (Jr
31.31-34). É posto em destaque o contraste interno da Nova Aliança com o
externo da Antiga.
“E jamais me lembrarei de seus pecados e de
suas iniquidades” (v. 17). Na Antiga Aliança, o antigo sistema de
sacrifícios jamais podia tratar de forma definitiva com o pecado. Sempre havia
lembrança deles, o que era feito anualmente no dia da expiação. Todavia, na
Nova Aliança, o sangue de Cristo tratou de forma definitiva com o problema do
pecado, de modo que não há mais necessidade da repetição contínua dos
sacrifícios.
“Ora,
onde há remissão destes, não há mais oblação pelo pecado’’ (v. 18). Aqui, o
argumento do autor é conclusivo: Cristo tratou do problema do pecado de forma
definitiva. Não havia mais necessidade de a sombra representar a realidade
porque a realidade havia chegado. O sistema sacerdotal levítico tomara-se
obsoleto e chegara a seu fim. A obra de Cristo foi perfeita e conclusiva. Nesse
versículo, o autor encerra a longa discussão que havia começado sobre o
sacerdócio de Cristo. Agora, ele partirá para as implicações práticas que essa
doutrina conduz.
“Tendo, pois, irmãos, ousadia
para entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus” (v. 19). Aqui, o autor tem em mente
o santuário interior, o Santo dos Santos, que não era permitido entrada ao povo
e nem mesmo aos sacerdotes, mas somente ao sumo sacerdote, de ano em ano, para
fazer expiação. O autor mostra que, agora, todos os crentes têm acesso ao Santo
dos Santos pelo sacrifício de Jesus. Essa entrada deve ser feita com ousadia e
confiança nEle.
“Pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou, pelo véu, isto é, pela
sua carne” (v. 20).
Jesus Cristo inaugurou um novo caminho para a presença de Deus. Não mais o
antigo caminho, já trilhado pelos sumos sacerdotes judeus, mas um novo e vivo
caminho. Esse caminho anteriormente desconhecido está agora disponível a todos
aqueles que foram chamados. A expressão kata-petasma, traduzida aqui como
“véu”, corresponde à segunda cortina, a que separava o santo lugar do Santo dos
Santos. É essa cortina que foi rasgada quando Cristo deu o brado na cruz do
Calvário (Mt 27.51). Estava aberto, portanto, o acesso à presença de Deus. Os
intérpretes entendem que a expressão “pela sua carne” é uma referência à vida
humana de Jesus quando Ele apresentou-se a Deus.
“E tendo um grande sacerdote sobre a casa de
Deus" (v. 21). Aqui, a referência ao "grande sacerdote” remete ao
texto de Levítico 21.10, onde está em vista o sumo sacerdote. Ele era o grande
sacerdote. No entanto, aqui o autor mostra que, no santuário celeste, no qual
os crentes agora têm acesso pelo sacrifício de Cristo, Jesus é esse “grande
sacerdote” sobre a família de Deus.
“Cheguemo-nos com verdadeiro coração, em
inteira certeza de fé; tendo o coração purificado da má consciência e o corpo
lavado com água limpa" (v. 22). O autor tem sempre em mente a
purificação interior que o sangue de Jesus proporciona. A referência ao corpo lavado
com água limpa pode ser uma alusão a Lv 16.4, onde o texto mostra que, no dia
da expiação, o sacerdote “lavava seu corpo com água". Nesse sentido, o
autor estaria dizendo que o cristão já está limpo diante de Deus pelo
sacrifício de Cristo. Por outro lado, alguns intérpretes acreditam que a
referência aqui é ao batismo cristão (1 Pe 3.21).6 De qualquer forma, o que
está em destaque aqui é que o crente está interiormente limpo para entrar na
presença de Deus.
“Retenhamos firmes a confissão da nossa esperança,
porque fiel é o que prometeu" (v. 23). Aqui, os crentes são exortados a manter firme a
confissão ou profissão de fé que haviam feito. A palavra “confissão”, do grego
homologia, aparece outras duas vezes nesta carta (Hb 3.1; 4.14). Em 2 Coríntios
9.13, é traduzida como sendo a obediência ao evangelho que os crentes haviam
professado. Da mesma forma, em 1 Timóteo 6.12,13, é usada primeiramente em
relação a Timóteo, que havia feito a boa confissão diante de várias testemunhas
e de Jesus Cristo, que, diante de Pôncio Pilatos, fez a boa confissão.
“E consideremo-nos uns aos outros, para nos
estimularmos ao amor e às boas obras" (v. 24). Na caminhada da vida cristã, o autor lembra que
os cristãos precisam considerar uns aos outros. Esse "considerar” é tido
como uma ponderação ou meditação. É algo no qual se deve pensar. O tempo
presente significa que essa deve ser uma prática, um hábito, e não algo
esporádico. No que, portanto, devemos considerar quando o assunto for as
relações interpessoais? Devemos "estimular” uns aos outros na prática do
amor e das boas obras. A palavra "estimular” no texto grego tem o sentido
de “incitar”, “provocar”. Quantos cristãos desanimam por falta de estímulos!
“Não
deixando a nossa congregação, como é costume de alguns; antes, admoestando-nos
uns aos outros; e tanto mais quanto vedes que se vai aproximando aquele Dia” (v.
25). A palavra grega episynagogé, traduzida como “congregação”, é a junção da
preposição grega epi (sobre, em adição) com a palavra synagogé (Sinagoga). No
contexto do Novo Testamento, essa palavra ocorre aqui e em 2 Tessalonicenses
2.1 com o sentido de reunião. O abandono da congregação e o consequente
afastamento dos demais irmãos de fé é um sinal de enfraquecimento espiritual. O
autor exorta seus leitores porque observou que alguns já estavam com esse mau
costume, e isso era extremamente nocivo à comunhão cristã. É um alerta que ecoa
forte nestes dias onde aumenta assustadoramente o número de desigrejados.
“Porque, se pecarmos voluntariamente,
depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais
sacrifício pelos pecados” (v. 26). Nesse versículo, o autor novamente volta à sua exortação sobre
o perigo da apostasia sobre a qual ele já advertira nos capítulos 2, 3 e 6.
Donald Hegner destaca que “as palavras se voluntariamente continuarmos no
pecado não se referem a pecados comuns, mas ao pecado mais grave, o pecado
final: apostasia (...) Esse é o pecado que, pela sua natureza, coloca o ofensor
fora do alcance do perdão de Deus e, portanto, é pecado do qual não se encontra
retomo".7 Aqui, como fizera em Hb 6.4-6, o autor mostra tratar-se de
cristãos verdadeiros, pois somente cristãos salvos "receberam o
conhecimento da verdade”. Se o cristão verdadeiro não pode abandonar a fé,
essas palavras não passariam de uma advertência vazia, totalmente destituída de
sentido.8 John Wesley acreditava que, nessa passagem, o autor estaria se
referindo não a um pecado qualquer, mas à apostasia, e ele aplicou isso a
cristãos. Wesley entendia que o texto estava se referindo a “qualquer um de nós
cristãos" que pecamos contra Deus por uma apostasia total e voluntaria.
Segundo ele, isso acontecia depois de havermos “recebido o conhecimento
experimental da verdade do Evangelho", e, nesse caso, “não resta mais
sacrifício pelos pecados”.9
"Mas uma certa expectação
horrível de juízo e ardor de fogo, que há de devorar os adversários" (v. 27). Para o apóstata, que voltou
atrás, não resta mais nada a fazer, apenas esperar o juízo (Is 26.11).
"Quebrantando alguém a lei
de Moisés, morre sem misericórdia, só pela palavra de duas ou três testemunhas” (v. 28). O autor tem em mente as
testemunhas descritas em Deuteronômio 17.6,7 e 19.15. Em Deuteronômio 13.6-11 e
17.2-7, estão as referências àqueles que se afastavam de Deus por quebrarem a sua
Palavra. O expositor C. S. Keener observa que
“os mestres judeus reconheciam que todo mundo pecava
de uma forma ou de outra; mas um pecado com o qual uma pessoa declarava: 'eu
rejeito parte da palavra de Deus’, se considerava como equivalente rechaçar toda
a Lei e se reconhecia como apostasia’’.10
"De quanto maior castigo
cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver
por profano o sangue do testamento, com que foi santificado, e fizer agravo ao
Espírito da graça?”
(v. 29). Esse versículo detalha de forma específica o que é o pecado de
apostasia. Em primeiro lugar, é um “pisar” no Filho de Deus. O vocábulo
katapateô tem o sentido de "pisar”, "pisotear”. É o mesmo termo usado
em Mt 5.13 para descrever o sal que foi pisado pelos homens por haver perdido o
sabor. Lucas, no terceiro evangelho, usa esse vocábulo para descrever a semente
que caiu à beira do caminho e foi pisada (Lc 8.5). Hughes diz que essa palavra
indica tratar algo com o maior desprezo. Haubeck traduz como “fazer pouco
caso”.11 Semelhantemente, Robertson destaca que se trata de uma “negligência
cheia de escárnio, como em Zacarias 12.3. Veja a mesma ideia em Hb 6.6”.12 Em
segundo lugar, o apóstata é alguém que "profanou” o sangue da aliança.13 O
termo grego usado aqui é koinos, que tem o sentido de “tomar comum” ou
"imundo". É a mesma palavra usada por Pedro quando teve a visão dos
animais limpos e imundos (koinos) em Atos 10.14. Essa palavra também é usada em
Apocalipse 21.27 para afirmar que nada "imundo’ entrará na Nova Jerusalém.
O sentido, portanto, é o de alguém que desprezou o sangue de Cristo, não vendo
na expiação, como diz Robertson, nada mais do que “uma religião de
carnificina’’.14 O comentarista carismático C. S. Keener destaca que o autor
tem em mente aqui o sangue de Cristo que santifica os cristãos (Hb 9.19-22) e,
por outro lado, a concepção judaica que considerava o corpo de Cristo morto
como um cadáver imundo (Dt 21.23).IS Em terceiro lugar, o apóstata é alguém que
"ultrajou o Espí rito da graça”. O verbo grego enybrizo (ultrajou) só
ocorre aqui e tem o sentido de “tratar com muito desprezo, insultar
arrogantemente".16 Robertson comenta dizendo que “é uma palavra forte para
expressar o insulto ao Espírito Santo depois de ter recebido suas bênçãos (Hb 6.4)”.17
De forma semelhante, Adam Clarke comenta:
"O assunto refere-se a um apóstata deliberado —
alguém que rejeita completamente a Jesus e seu sacrifício e renuncia a todo o
sistema evangélico. Isso nada tem a ver com os desviados no uso comum do nosso
termo. Um homem pode cair repentinamente em uma falta ou ainda deliberadamente
andar em pecado e, porém, não rejeitar o evangelho nem negar ao Senhor que lhe
comprou. Sua situação é temerá ria e perigosa, mas não sem esperança. O único
caso sem esperança é do apóstata deliberado, que rejeita o evangelho, depois de
haver sido salvo pela graça ou convencido da verdade do evangelho. Para o tal,
já não resta mais sacrifício pelo pecado, porque já houve um, o de Jesus, e ele
rejeitou-o por completo’’.18 (veja um estudo completo dessa passagem no
Apêndice).
"Porque bem conhecemos aquele que disse:
Minha é a vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor
julgará o seu povo’’
(v. 30). Esse versículo mostra a severidade do juízo divino para as pessoas
descritas no versículo 29. "Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus
vivo" (v. 31). Aqui, o autor cita Deuteronômio 32.35,36, onde Deus fala de
vingar-se contra seu próprio povo.
"Lembrai-vos,
porém, dos dias passados, em que, depois de serdes iluminados, suportastes
grande combate de aflições” (v. 32). Esses crentes, que haviam sido
iluminados (Hb 6.4-6), são novamente advertidos a fazer um retrospecto das suas
vidas na fé. No início de suas caminhadas, eles suportaram lutas e tribulações
por amor a Cristo, e esse fato deveria motivá-los a prosseguir.
"Em
parte, fostes feitos espetáculo com vitupérios e tribulações e, em parte,
fostes participantes com os que assim foram tratados” (v. 33). Não era
possível esquecer a abnegação que demonstraram quando foram submetidos à prova.
Eles foram expostos como espetáculo, vituperados e atribulados, mas, mesmo
assim, permaneceram fieis. Por que retroceder agora?
“Porque também vos compadecestes dos que
estavam nas prisões e com gozo permitistes a espoliação dos vossos bens,
sabendo que, em vós mesmos, tendes nos céus uma possessão melhor e permanente”
(v. 34). O autor faz um elogio ao lembrá-los de que, enquanto ele estivera
preso, os hebreus demonstraram cuidado com ele. E mais: eles haviam suportado
com alegria o espólio de seus bens por acreditarem que possuíam um melhor
tesouro no céu. O que estava acontecendo com essa fé que fora ousada?
“Não rejeiteis, pois, a vossa confiança, que
tem grande e avultado galardão” (v. 35). Toda aquela ousadia, fé e
confiança demonstradas no início da carreira cristã não deveriam, de forma
alguma, ser abandonadas. Elas seriam recompensadas pelo Senhor.
“Porque necessitais de paciência, para
que, depois de haverdes feito a vontade de Deus, possais alcançar a
promessa" (v.
36). A promessa da Terra Prometida, a Canaã celeste, existe. Ela, porém, só é
alcançada por aqueles que estão dispostos a fazer a vontade de Deus,
demonstrando ser pacientes. A jornada é longa, e o cansaço e a fadiga podem
deixar muitos pelo caminho.
“Porque ainda um poucochinho de tempo, e o
que há de vir virá e não tardará” (v. 37). A expectativa do autor — e
também de todo cristão — é que o Senhor retome logo. O tempo não existe para
Deus, pois Ele é o Pai da eternidade; todavia, existe para os homens e, às
vezes, devido às circunstâncias desfavoráveis, ele parece demasiadamente longo.
Urge aguardar nas promessas de Deus.
“Mas o justo viverá da fé; e, se ele recuar, a minha alma não tem prazer
nele” (v. 38). Nessa
passagem, o autor já sinaliza do que irá tratar daqui para frente — a fé. Ele
sabe que a fé é o elemento necessário para permanecermos caminhando na estrada
da vida. Deus não demonstra prazer nos que recuam.
“Nós,
porém, não somos daqueles que se retiram para a perdição, mas daqueles que
creem para a conservação da alma" (v. 39). Como havia feito em Hebreus
6.9, o autor traz uma palavra de ânimo e consolação a seus leitores. O perigo
de recuar, de cair da fé, é real, e não uma hipótese; ele, todavia, demonstrou
como evitar isso. Os que continuam perseverando com ânimo e fé conservarão as
suas almas.
A Supremacia de Cristo
A CARTA AOS HEBREUS - Introdução e Comentário
por DONALD GUTHRIE
Sua oferta de Si mesmo em prol doutros (10.1-18)
1.
Poder-se-ia pensar que o escritor comprovou suficientemente seu argumento para
dispensar qualquer comentário adicional sobre o sacrifício sem igual de CRISTO,
mas quer inclucar a compreensão da ineficácia da totalidade do culto ritual
levítico. Inevitavelmente
há nesta seção alguma coincidência parcial com as seções anteriores, mas não
deixa de haver algumas novas idéias para ocupar a nossa atenção. Em primeiro
lugar, há uma declaração sucinta das insuficiências da velha ordem (w. 14). O
contraste entre a sombra (skian) e a imagem real (eikona) corresponde
ao contraste entre a antiga e a nova aliança, a antiga e a nova abordagem a
DEUS. Há, porém, uma conexão básica semelhante entre elas, assim como um objeto
tem alguma semelhança com sua sombra. Uma sombra nunca pode alegar que é uma
revelação completa do seu objeto. No máximo, pode apenas dar um mero esboço da
realidade. Além disto, uma vez que a forma verdadeira tenha sido vista, a
sombra se toma irrelevante. Esta observação é usada pelo escritor para
ressaltar mais uma vez as insuficiências dos antigos procedimentos tipo sombra.
Os bens vindouros são claramente o evangelho com seu sumo-sacerdócio
espiritual. Alguns escritores patrísticos os identificavam com os sacramentos
cristãos.87 Mas a interpretação aqui parece ser mais geral, no sentido de todas
as coisas boas que a lei fornecia somente como adumbração. Isto nos leva de
volta à lista de coisas “melhores” já mencionadas na Epístola. Vale notar que é
dito que a lei “tem” a sombra ao invés de “ser” a sombra, o que sugere que a
lei mesma não é a sombra, mas só que possui a sombra, i.é, o culto cerimonial.
Há, também, entesourado na lei aquilo que é mais permanente, i.é, as exigências
morais. A despeito do caráter impressionante de um cerimonial que deve ser
repetido ano após ano, não podia realizar aquilo que era necessário. A
repetição da oferta em cada Dia da Expiação sucessivo e as ofertas diárias
contínuas davam testemunho de um caráter temporário. Já vimos anteriormente que
o autor está muito preocupado com a procura da perfeição (o verbo teleioõ,
tomar perfeito, ocorre 9 vezes e o substantivo teleiòsis uma vez), e
reconhece que o sistema levítico não poderia fornecêla. A impossibilidade é
declarada de modo enfático (nunca jamais, oudepote). Tivera um longo período em
que podia demonstrar este fato. A descrição daqueles que esperavam obter
benefícios como os ofertantes [lit. “os que se aproximam”] forma paralelo com a
descrição dos que vinham através de CRISTO (cf. 7.25; 10.22). Aproximar-se de
DEUS é a atividade mais sublime do homem.
2. A dedução
feita da repetição das ofertas é sua insuficiência.
Se a
perfeição tivesse sido conseguida, as ofertas teriam cessado, o que não ocorreu
segundo o antigo sistema. O que as ofertas faziam era providenciar purificação
para pecados cometidos desde a oferta anterior, mas nada podiam fazer
ontra o pecado, a causa que jazia à raiz. Todos os que prestam
culto segundo o sistema antigo sabiam que não tinham sido purificados de
modo definitivo (kekatharismenous). Mais uma vez, a ênfase aqui recai sobre uma
vez em contraste com perpetuamente no v. 1. É a qualidade definitiva
da obra expiadora de CRISTO em prol da perfeição do Seu povo que está em mente
como contraste. A consciência (syneidèsin) de pecados é levada a efeito pela
lembrança constante da necessidade do homem nos sacrifícios repetidos, o oposto
exato do efeito da oferta de CRISTO, que leva à aniquilação do pecado (cf.
9.26).
3. Esta
função das ofertas levíticas como recordação de pecados todos os
anos demonstrava vividamente sua insuficiência para levar a efeito uma
remoção permanente do pecado e das suas conseqüências.
Toda oferta
que era feita testificava da insuficiência da oferta anterior e lembrava o
adorador que outra oferta semelhante deveria acontecer. O senso da
responsabilidade pelo pecado era, portanto, conservado vivo. A mesma palavra é
achada na instituição da Última Ceia ao descrevê-la como memorial à morte de
CRISTO, uma lembrança da completa libertação do pecado através daquela morte. A
superioridade desta recordação cristã sobre os sacrifícios é vívida. Estes
últimos sacrifícios, que foram ordenados por DEUS, visavam assim preparar o
caminho para aquela oferta perfeita que podia tratar eficazmente com as
conseqüências do pecado, muna base permanente.
4. A
impossibilidade referida neste versículo é moral.
Os
sacrifícios de animais, por serem irracionais, não podiam ter efeitos
permanentes em realizar a remoção do pecado. Embora formassem parte da
ordenança divina segundo a lei, sua intenção era temporária, e prenunciavam o
perfeito auto-sacrifício de um ser moral. A longa seqüência de derramar o
sangue de touros e de bodes visava um alvo impossível, se tal alvo fosse a
perfeição. Aqueles cristãos judaicos que vieram de um passado de adoração no
Templo precisariam aprender, mediante a reflexão, a futilidade ulterior do
sistema que abandonaram. 0 alvo do autor era demonstrar a superioridade
incomensurável de CRISTO, e demonstrar que o sistema sacrificial do Antigo
Testamento tinha validez somente porque prenunciava o sacrifício supremo e
definitivo de CRISTO. Os adoradores na era do Antigo Testamento recebiam certos
meios da graça mas aqueles meios nunca conseguiram realizar uma remoção
completa dos pecados, que somente poderia ser realizada por um sacrifício
humano perfeito, em contraste com um sacrifício animal.
5-6. Em
vista da insuficiência do sacrifício animal, é demonstrada a necessidade de uma
abordagem mais eficaz, e o escritor passa a dar a resposta.
Vê um
prenúncio dela no Salmo 40.6-8 que primeiramente cita, e então passa a expor.
Não tem dificuldade em atribuir as palavras do salmista ao próprio CRISTO, como
se CRISTO falasse através do salmista. Certamente, as palavras não acharam seu
cumprimento perfeito até que se aplicassem a CRISTO. A palavra por isso (dio)
forma uma ligação imediata com a insuficiência das ofertas levíticas
mencionadas no v. 4. A cláusula qualificante, ao entrar [CRISTO] no
mundo, demonstra que o contexto do Salmo é transferido para os termos de CRISTO
e é visto como mais aplicável nesta ocasião. É como se o escritor visse CRISTO,
depois da Sua encarnação, tomando nos Seus lábios as palavras deste Salmo como
a expressão da Sua missão. A referência, portanto, não diz respeito
exclusivamente ao evento de encarnação, mas à consciência contínua de JESUS de
que estava cumprindo a vontade do Seu Pai. Deve ser notado que o texto grego
não menciona o nome de CRISTO neste versículo, mas meramente emprega a terceira
pessoa. O escritor toma por certo que todos imediatamente identificarão Aquele
Que entrou no mundo. O título “CRISTO” é transportado de 9.28. Não há dúvida de
que o autor está convicto quanto à realidade da pré- xistência de CRISTO.
Na citação
do Antigo Testamento quatro palavras são usadas para as ofertas
levíticas: sacrifícios (thysia), ofertas (prosphora), holocaustos
(holokautõmata) e as ofertas pelo pecado (peri hamartias). O primeiro par
é geral, o segundo é representativo. Juntamente, resumem de modo equitativo a
totalidade do sistema levítico. Na primeira declaração, o contraste é feito
entre o suposto desejo de DEUS pelo sacrifício e a provisão que realmente fez
de um corpo para a obra sacrificial do Seu Filho. As palavras antes corpo me
formaste seguem o texto da Septuaginta que difere do hebraico; este último tem
“ouvidos abriste para mim.” A mudança é notável e a Septuaginta deve ser
considerada uma interpretação e extensão do hebraico. O fornecimento de ouvidos
demonstra a exigência de que DEUS seja ouvido e, implicitamente, que espera-se
a obediência a Ele. 0 corpo incluiria, naturalmente, a facilidade de escutar,
mas vai além dela. A declaração refere-se ao funcionamento perfeito do corpo
humano, o que foi cumprido somente em CRISTO. Conforme é aplicada aqui, a
citação sugere que aquilo que CRISTO fez tinha de ser feito no “corpo,” i.é,
como ser humano. Era como homem que Ele devia demonstrar Seu perfeito
cumprimento da vontade de DEUS. Embora o tempo do verbo na citação esteja no
passado, não pode neste caso referir-se a um ato já completado, porque o
cumprimento ainda é futuro. Expressa, pelo contrário, aquilo que é eterno na
mente de DEUS. Pode-se perguntar em que sentido um corpo poderia ser formado
(katartizõ — “preparar”) como se suas partes separadas tivessem de ser juntadas
para formar o todo. Mas o verbo, provavelmente, foi escolhido somente para
sugerir o caráter perfeito da provisão.
A declaração
paralela no v. 6, que demonstra que DEUS não tem mais prazer nos sacrifícios
específicos do que nos gerais, serve para acrescentar ênfase àquilo que já foi
dito, de conformidade com o estilo da poesia hebraica. Embora os sacrifícios
fossem ordenados por DEUS, era a atitude dos adoradores que interessava a Ele.
A história de Israel já demonstra a tendência de que o sistema sacrificial
fosse considerado uma finalidade em si mesmo, tomando-se mera formalidade. A
necessidade de cumprir a vontade de DEUS fora negligenciada, daí a
aplicabilidade das palavras do Salmista.
7. À medida
em que a citação continua, a obediência exigida à vontade de DEUS toma-se mais
explícita.
Então eu
disse parece referir-se ao tempo quando o corpo foi plenamente preparado, e,
neste caso, as palavras foram cumpridas na encarnação e dizem respeito à abordagem
de CRISTO ao Seu ministério todo. As palavras Eis aqui estou expressam um
fato consumado, não uma predição, e traduzem as palavras do Salmista na própria
vida e ressaltada nos Evangelhos, especialmente no Evangelho segundo João. Foi
enviado da parte de DEUS e veio cumprir uma missão divina. Para fazer, ô
DEUS, a tua vontade é o alvo do homem perfeito. Tem sido apenas
parcialmente cumprido até mesmo pelos mais piedosos entre os homens, com a
exceção de JESUS. Aquilo que foi visto pelo Salmista como o alvo mais
desejável, fica sendo uma expressão de fato nos lábios de JESUS. Realmente
cumpriu a vontade de DEUS, ao ponto de Se tomar obediente até à morte.
Alguma
disputa existe acerca da palavra traduzida rolo (kephalis), po causa da
obscuridade da sua derivação com este significado. Apesar disto, é achada
algures na Septuaginta (cf. Ez 2.9). A frase rolo do livro refere-se,
aparentemente, a algumas instruções autorizadas que governavam o comportamento
e as atividades do Salmista-rei. Parece claro que para JESUS o livro abrange a
totalidade das revelações escritas dos propósitos de DEUS e, portanto, fornece
o padrão perfeito para a vontade divina. Quando é aplicado a JESUS CRISTO,
portanto, há a alusão óbvia a tudo quanto DEUS fez conhecer profeticamente acerca
do Messias vindouro. No Novo Testamento há muitas citações do Antigo Testamento
introduzidas com a fórmula está escrito (gegraptai), e que se revestem,
portanto, de um caráter autorizado. Este fato é bem ressaltado na maneira de
Lutero entencler a palavra como “permanece escrito”. Aquilo que permanece
escrito possui um caráter inviolável.
8-9. A
repetição, aqui, das idéias principais já achadas nos w . 5-7 enfatiza, mais
uma vez, o contraste entre o meio antigo e o novo de chegar- se a DEUS.
Especialmente
notável é a nova ocorrência das palavras:
Eis aqui
estou para fazer, ô DEUS, a tua vontade como uma expressão da perfeita
obediência de CRISTO. O comentário geral sobre a citação inteira é: Remove o
primeiro para estabelecer o segundo. Uma palavra incomum é empregada para a
abolição do primeiro, porque o verbo que é traduzido remove (anaireij
geralmente tem o sentido de “matar.” Há algo de definitivo no desaparecimento
do velho. Se não tivesse sido assim, o segundo nunca poderia ter sido
estabelecido. É a diferença entre o fracasso total das ofertas irracionais
levarem a efeito uma solução final e a suficiência total da obediência racional
para estabelecer um novo caminho uma vez por todos.
10. Nessa
vontade refere-se à vontade de DEUS que acaba de ser mencionada na citação. Seu único cumprimento completo é
visto na perfeita obediência de CRISTO. O efeito imediato é que temos sido
santificados. A idéia parece ser que aqueles que estão em CRISTO foram de tal
maneira identificados com Ele que nEle eles também cumpriram a vontade de DEUS.
Este sentido de solidariedade com CRISTO não é tão freqüente nesta Epístola
como nas Epístolas de Paulo, mas é tanto mais notável neste contexto. O
processo da santificação é um que nunca foi completado senão em CRISTO. Se não
fosse assim, o verbo não poderia ter sido usado no tempo perfeito, como o é
aqui. Posto que CRISTO é perfeitamente santificado mediante Sua perfeita
obediência à vontade de DEUS, pode ser dito que Sua santificação é
compartilhada por todos aqueles que crêem. É digno de nota, no entanto, que o
escritor não define melhor os beneficiários — o “nós” deve ser interpretado à
luz do capítulo anterior (cf. 9.28). O acréscimo das palavras mediante a oferta
do corpo de JESUS CRISTO esclarece os meios mediante os quais a obediência de
CRISTO pode ser eficaz para nós. É importante notar que foi o corpo de CRISTO
que foi oferecido, porque isto chama a atenção à centralidade da cruz. Aquilo
que Ele fez, fê-lo no corpo, na esfera da vida humana, o mesmo tipo de vida humana
que nós possuímos. Na Sua oferta de Si mesmo, reuniu a humanidade.
Naturalmente, o escritor não está dizendo que os crentes não têm mais
necessidade de obediência porque CRISTO a cumpriu, mas, sim, que DEUS nos
recebeu com base no perfeito cumprimento da vontade de DEUS feito por CRISTO. A
quâlidade definitiva disto (uma vez por todas, ephapaz) já foi mencionada em
7.27 e 9.12.
11. A seção
seguinte (w. 11-14) concentra-se na glória atual de CRISTO a fim de completar a
declaração no v. 10 acerca da oferta do corpo.
Embora sua
qualidade definitiva seja mencionada, não era o fim. Nesta Epístola, como
noutras partes do Novo Testamento, a morte é ligada com a glorificação. A
continuidade interminável dos sacrifícios inadequados segundo a velha ordem
está em contraste marcante com a nova ordem. Os aspectos principais de
interesse no presente versículo são: (i) a posição dos sacerdotes (todo
sacerdote se apresenta — lit. “fica de pé”), (ii) a continuidade dos
sacrifícios (a oferecer muitas vezes) e (iii) sua ineficácia de realizar o seu
propósito (i.é, para remover pecados). O primeiro aspecto tem contraste
marcante no versículo seguinte com a posição de CRISTO: assentou-se. Estes
sacerdotes nunca poderiam sentar-se porque sua obra nunca era completa. Em
segundo lugar, muitas vezes (pollakis) está em direto contraste com uma vez por
todas (ephapax). E em terceiro lugar, a incapacidade das antigas ofertas
removerem os pecados é contrastada no v. 12 com a única oferta de CRISTO pelos
pecados. Mais uma vez, a fraqueza da velha ordem fica sendo o pano de fundo
para a demonstração da maior glória da nova. A última cláusula chama a atenção
à qualidade dos sacrifícios, conforme demonstra o relativo que (haitines, “que
são de tal tipo”). Era inerente na sua própria natureza que faltava-lhes o
poder de remover (perielein) pecados. A palavra significa
literalmente “remover o que cerca,” como despir um manto indesejado. É mais
sugestiva do que a palavra paralela usada no v. 4 (aphairein). A palavra achada
aqui é usada em 2 Coríntios 3.16 para a remoção do véu da mente do homem quando
se volta para o Senhor. Vale notar, ainda, que embora em 10.4 o tempo seja
presente, aqui é passado (aoristo), para corresponder à ação completa da oferta
de CRISTO no v. 12.
12. Há um
contraste aqui entre todo sacerdote e “este” (que ARA identifica como JESUS).
Ressalta-Se,
em contraste com eles, como um sacerdote de um tipo inteiramente diferente. A
construção no grego poderia permitir que as palavras traduzidas para sempre
(eis to diènekes) sejam ligadas à parte final da frase, i.é, para demonstrar a
qualidade definitiva da entronização de CRISTO. Mas a tradução de ARA ressalta
a idéia que é básica nesta Epistola, i.é a qualidade sem igual e completa do
sacrifício de CRISTO, e isto parece preferível.88 A constante reiteração desta
idéia cristã central talvez sugira que o escritor sabia que alguns dos seus
leitores não tinham muita certeza quanto a ela e talvez estivessem em dúvida se
ainda havia a mesma inadequação dos antigos sacrifícios. O caráter conclusivo
do sacrifício de CRISTO é visto não somente no Seu sacrifício único como também
na Sua entronização: assentou-se à destra de DEUS. Isto foi mencionado duas
vezes antes (1.3; 8.1) e volta a ocorrer outra vez em 12.2, o que demonstra
que, é uma das características dominantes da carta, para a qual um bom título
geral poderia ser: “CRISTO entronizado.”
13. O
período de espera entre a entronização de CRISTO e Seu triunfo final sobre Seus
inimigos é idêntico à presente era.
Não há
dúvida quanto ao resultado final. Ao discutir a razão pela demora em subjugar
os inimigos visto que a vitória já foi ganha, Hughes comenta: “A demora deve
ser vista mais como um prolongamento do dia da graça, e, portanto, como sinal
da misericórdia e da longanimidade de DEUS.” O subjugar dos inimigos
é outro eco do Salmo 110 (v. 1), já muitas vezes citado nesta Epístola.
Estava mesmo na mente do escritor quando começou a escrever (cf. 1.13). Esta
idéia é tirada mais da linguagem figurada da entronização do que ofício sumo-sacerdotal.
É a esta altura que a ordem de Melquisedeque é claramente aplicável, já que
nosso Sumo Sacerdote também tomou a Si o cargo de Rei. É como Rei que não
permitirá que Seus inimigos triunfem. A mesma idéia é exposta por extenso por
Paulo em 1 Coríntios 15.23ss., onde, porém, não tem ligação alguma com o tema
sumo-sacerdotal.
14. O
pensamento volta para o Sumo Sacerdote e Sua única oferta a fim de chamar a
atenção ao resultado obtido por ela, ou seja: a obtenção da perfeição para os
crentes.
A ligação
entre a oferta e o ato da purificação já foi feita no v. 10 e, portanto, a
ênfase aqui deve recair sobre o verbo aperfeiçoou (teteleiõken). Este verbo
considera a ação como já sendo completa, embora presumivelmente só num sentido
antecipatório, conforme subentendem as palavras para sempre. Em Si mesmo CRISTO
reuniu todos aqueles que Ele representa para compartilhar com eles a Sua
perfeição. A frase quantos estão sendo santificados (tous hagiazomenous) está
no tempo presente contínuo e pode ser interpretada: “os que estão
constantemente sendo santificados,” i.é, a sucessão contínua das pessoas que
vêm sob a aplicação eficaz da única oferta.
15. A esta
altura a discussão volta-se novamente à Nova Aliança como a seção final da
parte doutrinária principal da Epístola (w. 15-18).
Mais uma
vez, como em 8.8ss., é citada uma passagem de Jeremias 31, embora, desta vez, a
seleção é consideravelmente mais curta. Há, na realidade, algumas diferenças
significantes, das quais a primeira é a fórmula introdutória. Em 8,8ss. nenhuma
fórmula é usada, mas aqui o testemunho específico do ESPÍRITO SANTO é visto na
passagem (como em 3.7 ao introduzir SI 95). Neste caso parece que a função
especial do ESPÍRITO SANTO é chamar a atenção à combinação da idéia de uma lei
interna e a completa remoção do pecado. Atribui-se, claramente, importância à
conexão das duas idéias na passagem original{porquanto, após ter dito ...
Acrescenta), que demonstra o conceito que o escritor tem da inspiração, que se
estende à seqüência das idéias. A expressão: E disto nos dá testemunho
também o Espirito SANTO pode ser entendido alternativamente no sentido de
testemunho com relação a nós, ao invés de dirigido a nós. Mas fica claro o
ponto essencial. Aquilo que Jeremias escreveu tem relevância direta tanto para
o escritor quanto para seus leitores.
16. Na
primeira parte da citação há uma mudança da redação, sendo que
corações e mentes foram trocados entre si em comparação com 8.10. Não
faz diferença ao sentido.
17. Na
segunda parte há um acréscimo das palavras e das suas iniqüidades, que apenas
define mais especificamente a natureza dos seus pecados, i.é, aqueles atos que
são contrários à lei de DEUS.
18. Como um
tipo de tiro para cobrir a retirada, o escritor volta a tirar a conclusão de
que já não há oferta pelo pecado.
Já que a
remissão é prometida sob a Nova Aliança, a necessidade de semelhante
oferta cessou de existir. Não se pode duvidar que, visto que esta seção
principal da Epístola termina desta maneira, a perfeição da oferta que CRISTO
fez visa acabar finalmente com a celebração do antigo culto ritual. Raiou uma
nova era. Está em vigor uma nova aliança que toma obsoletos os sacrifícios de
Levítico. Qualquer mensagem que eles visassem transmitir está mais
perfeitamente cumprida em CRISTO.
II. EXORTAÇÕES
(10.19-13.25)
Embora
vários apelos aos leitores tenham sido feitos no decorrer da seção doutrinária,
os últimos capítulos contêm conselhos cristãos acerca de várias questões de
vida prática. Há, também, grandes passagens sobre fé e disciplina.
A. A POSIÇÃO
PRESENTE DO CRENTE (10.19-39)
O escritor
expõe os privilégios e as responsabilidades da vida cristã. A exposição leva a
mais uma passagem de advertência solene e a uma lembrança do valor da
experiência cristã passada.
O novo e
vivo caminho (10.19-25)
19. Que
aplicação da discussão doutrinária anterior começa aqui fica claro na palavra
pois, que é melhor entendida como sendo uma referência à totalidade da
demonstração anterior.
É com base
em tudo quanto foi dito acerca do Sumo Sacerdote e Sua oferta eficaz que a
declaração no presente versículo pode ser feita. Tendo... intrepidez é
declarado como um fato. Tendo em vista tudo quanto CRISTO já fez e agora é, não
há razão porque todos os crentes não possam aproximar-se com confiança. No
curso da sua exposição acerca do Sumo Sacerdote, o escritor lembrou os leitores
da sua confiança em CRISTO (3.6; 4.16). A palavra aqui traduzida intrepidez
(parrèsia) é a palavra para a “confiança” que o Novo Testamento geralmente
relaciona com a liberdade do homem por causa do seu novo relacionamento com
DEUS.90 Esta confiança aqui é especificamente relacionada com a abordagem a
DEUS, com a entrada no SANTO dos Santos, entendido como símbolo da presença de
DEUS. É um quadro de todos os crentes, que agora têm um convite para entrarem
no SANTO dos Santos, já não reservado para o sacerdócio. Está escrito que a via
de aproximação é pelo sangue de JESUS, que aqui resume tudo quanto JESUS fez
por nós ao oferecer-Se a Si mesmo. O SANTO dos Santos já não está mais separado
para a realização contínua dos sacrifícios. Está totalmente aberto por causa da
oferta perfeita já feita. Deve ser notado, porém, que o acesso está disponível
somente àqueles que são classificados como irmãos, àqueles que, segundo 3.1:
“participam da vocação celestial.” É importante notar que aqueles que descobrem
uma nova abordagem a DEUS mediante JESUS CRISTO tambe'm descobrem um novo
relacionamento uns com os outros.
20. Ao
descrever o acesso como um novo e vivo caminho, o escritor emprega uma palavra
que ocorre somente aqui no Novo Testamento.Novo (prosphaton) originalmente
significava “recentemente morto”, mas seu significado derivado é “novo” ou
“recente.”
Visa formar
um contraste com a velha ordem, e assim chama a atenção à sua novidade, que
imediatamente a liga com a obra de CRISTO. A idéia do caminho também é
sugestiva, não somente porque era o título pelo qual os cristãos primitivos
eram conhecidos, mas também por causa de um jogo de palavras em grego entre
esta palavra e a palavra usada no v. 19 para “entrada”
(hodos e eisodos). Aliás, a totalidade da frase usada aqui seria uma
descrição apta para o conceito do cristianismo mantido por este escritor. A
idéia do caminho já foi introduzida em 9.8 e parece ter sido algum tipo de
termo técnico para o acesso a DEUS. No grego não há palavra que corresponda a
pelo, o que faz com que caminho seja o objeto de consagrou (ou
“abriu”) e liga-nos com a idéia da entrada no v. 19. A construção é difícil no
grego, mas parece claro que as palavras não identificam JESUS com o caminho. O
caminho de acesso é, na realidade, o resultado da Sua obra expiadora. As
palavras seguintes: pelo véu, isto é, pela sua carne, têm dado ocasião a muitos
debates. O primeiro problema diz respeito ao véu. Posto ser esta uma alusão ao
véu que separava o SANTO dos Santos, parece mais natural considerar o véu como
um obstáculo e ser vencido antes de se obter acesso. Mas é difícil vincular
este obstáculo com “sua carne”, porque neste caso subentende que a vida humana
de JESUS O separava de DEUS e que tinha de ser penetrada antes da comunhão ser
restaurada. Reconhecidamente, a vida humana de JESUS impunha restrições sobre
Ele e, nesse sentido rigorosamente limitado, podia ser descrita como um “véu”
através do qual tinha de passar. Mas, por outro lado, não deve ser suposto que,
ao assim fazer, descartou Sua verdadeira humanidade ao entrar. Estas
dificuldades desapareceriam se as palavras pela (dia) sua came forem entendidas
como uma explicação do caminho, e neste caso o significado seria “pelo novo e
vivo caminho, isto é, pela sua came.” Este seria o equivalente de dizer que o
novo caminho para DEUS fora aberto por JESUS como ser humano, o que concordaria
com a discussão no capítulo 2 acerca da necessidade da encarnação. É possível,
do outro lado, considerar a cortina como símbolo do meio de abordagem ao invés
de ser um empecilho a tal abordagem, e neste caso haveria menos dificuldade em
vincular a “came” com o “véu.” No que dizia respeito ao sumo sacerdote no Dia
da Expiação, o véu cessava momentaneamente de ser um obstáculo e ficava sendo,
pelo contrário, o caminho de entrada. Uma vez que o grande sacerdote é
mencionado no versículo seguinte, é altamente provável que esta idéia tinha a
primazia na seqüência de pensamentos do escritor. Há algum debate sobre se o
escrito aqui alude, de qualquer maneira, ao rasgar do véu do Templo na ocasião
da morte de JESUS. Seja qual for o ponto de vista adotado quanto a isto, fica
claro que considera o SANTO dos Santos totalmente aberto por meio de JESUS
CRISTO.
21. Já em
4.14 JESUS é descrito como “grande sumo sacerdote,” e a presente declaração é
um eco daquele título.
A grandeza
consistia na eficácia sem igual da obra de CRISTO em abrir um novo e vivo
caminho. A expressão sobre a casa de DEUS é uma lembrança das declarações em
3.1-6, onde a superioridade de JESUS sobre Moisés é vista em relação à casa de
DEUS. Aqui as palavras são abrangentes, e incluem tanto a igreja na terra
quanto a igreja no céu, mas a ênfase principal recai sobre a comunidade
terrestre, conforme demonstra a seqüência.
22. É aqui
que chegamos à exortação principal nesta Epístola.
É expressa
em três etapas: aproximemo-nos (v. 22), guardemos firme (v. 23)
e consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e
às boas obras (v. 24). A primeira exortação refere-se à devoção pessoal, a
segunda à consistência, e a terceira às obrigações sociais. Esta não é a
primeira vez que os leitores são exortados a aproximar-se, porque uma
declaração semelhante é feita em 4.16 antes da discussão sobre a obra
sumo-sacerdotal de JESUS ter começado. A repetição da mesma idéia visa a
ênfase. Tendo em vista tudo quanto foi dito na passagem interveniente, há tanto
mais razão para exortar os adoradores a se aproximarem. Quatro condições de
aproximação são definidas neste versículo: (i) Com sincero coração. Se o
adjetivo for entendido no mesmo sentido que em 8.2, refere-se àquilo que é real
em contraste com aquilo que é apenas aparente. Não pode haver fingimento de uma
devoção que não é verídica. A expressão, segundo parece, refere-se à realidade
da aproximação a DEUS feita pelo adorador. (ii) Em (en) plena certeza da fé.
Alguma ênfase já tem sido dada à fé nesta Epístola, e haverá mais no capítulo
11. Esta plena certeza é importante, porque já não há razão alguma para duvidar
que o acesso será obtido. O escritor não somente é claro quanto à possibilidade
da plena certeza, como também toma por certo que ela está presente em todos os
adoradores que fazem uso do “novo caminho.” O uso da preposição (en) realmente
sugere que esta certeza da fé é a esfera ou ambiente em que a aproximação deve
ser feita. (iii) Tendo os corações purificados de má consciência. Sem dúvida, a
metáfora da aspersão (aqui purificação) é derivada do culto ritual levítico,
onde é mencionado o sangue aspergido sobre o povo como ratificação da antiga
aliança (Êx 24.8) e na ocasião da consagração de Arão e dos seus filhos (Êx
29.21). Não há menção específica ali, como há aqui, da purificação da
consciência. Mas o meio totalmente mais eficaz de purificação, que os cristãos
possuem, relaciona-se diretamente com a consciência. É mais do que um ato
ritual; é uma condição moral. (iv) E lavado o corpo com água pura. Parece
tratar-se de uma alusão ao batismo cristão, embora este ponto de vista não
esteja sem dificuldades. Se for correta, exigiria algum rito iniciatório de
natureza pública antes de alguém poder aproximar-se. Mas visto que as demais
condições não são externas, parece estranho que a quarta condição o seja. A
lavagem do corpo talvez ache alguma explicação em Efésios 5.26 onde está
escrito que CRISTO purificou a igreja “por meio da lavagem de água pela
palavra,” que é mais intelegivelmente interpretado num sentido espiritual. O uso
do adjetivo “pura” também pareceria sugerir um significado simbólico. A
diferença entre (iii) e (iv) seria, portanto, entre a pureza das atitudes
internas e a dos atos manifestos.
23. A
segunda exortação — guardemos firme - usa um verbo (katechò) que já
foi usado em 3.6, 14, no sentido de guardarmos firme a nossa ousadia
(parrèsia) ou a confiança que desde o princípio tivemos (tèn archèn tès
hypostaseòs).
Aqui, no
entanto, é outra palavra que é usada, i.é, a confissão (homologian). Não há,
porém, muita distinção na idéia principal destas diferentes palavras, porque as
duas se referem à verdade básica da posição cristã. Claramente, uma exortação
para “guardar firme” nunca é inapropriada num mundo em que os valores estão em
contínua mudança, mas onde os padrões cristãos são constantes. A expressão
inteira: a confissão da esperança, é surpreendente, porque teríamos esperado
“fé” ao invés de “esperança.” Mas a esperança é mais abrangente, porque inclui
promessas específicas a respeito do futuro. Há uma conexão mais específica
entre a fé e a esperança no capítulo seguinte (cf. 11.1). Vale notar, além
disto, que em 3.6 há uma ligação entre a confiança e a esperança como coisas
que vale a pena guardar. Para outras referências à esperança, cf. 6.11, 18;
7.19. Certamente, esta Epístola olha para o futuro e oferece glórias do porvir
que brilham mais do que as glórias da velha ordem. Apesar disto, o escritor tem
consciência de que alguns dos seus leitores talvez passem o perigo de relaxar
seu apego a esta esperança, porque os conclama a segurar firme sem vacilar
(aklinè). A palavra grega traduzida desta maneira é usada somente aqui no Novo
Testamento, e é baseada na idéia de um objeto reto que não se inclina em
nenhuma direção. Não há lugar na experiência cristã para uma esperança firme
numa ocasião e vacilante noutra. Sustentar esta certeza não é um ato sem
justificativa, porque não depende de si mesma, mas da fidelidade de quem fez a
promessa. Algumas facetas das promessas dè DEUS serão ilustradas no capítulo
seguinte, que é, na realidade, um comentário da declaração feita aqui. (Não
somente registra a fé dos homens, como também a fidelidade de DEUS. Outras
declarações específicas na Epístola, que chamam a atenção à fidelidade, são
2.17 e 3.2 que se referem ao nosso Sumo Sacerdote fiel, e 11.1 onde está
escrito que Sara reconheceu a fidelidade de DEUS.
24. A
terceira exortação focaliza-se na responsabilidade social.
É relevante
que a palavra considerar (katanoòmen) seja usada aqui, porque aquilo que o
escritor conclama evidentemente exige pensamento concentrado. O alvo proposto é
nos estimularmos ao amor e às boas obras. Um pouco de raciocínio é claramente
necessário para resolvermos como podemos fazer isto da melhor maneira possível.
Algo mais do que o esforço individual é necessário para promover o amor e as
boas obras. Os cristãos precisam estar alertas às necessidades do seu próximo.
A ação em conjunto é indispensável. A palavra traduzida estimular (eis
paroxysmon) é um termo notável que significa “incitação” e ou é usada, como
aqui, num bom sentido, ou, como em Atos 15.39, num mau sentido (i.é, contenda).
Parece sugerir que amar uns aos outros não acontecerá automaticamente. É
necessário trabalhar o amor, até mesmo provocá-lo, assim como se faz com as
boas obras. Esta combinação de amor e de boas obras é notável por enfatizar que
o amor deve ter resultados práticos. O adjetivo traduzido boas (kalos) demarca
as obras como boas na aparência, por possuírem uma qualidade atraente. Sugere
que as obras devem ser tão evidentemente boas em si mesmas que nenhuma dúvida
possa existir acerca do seu valor verdadeiro.
25. Outra
exigência de um tipo social, que tem aplicação direta à declaração anterior, é
a necessidade da comunhão coletiva.
É lógico que
nenhuma provocação ao amor é possível a não ser que ocorram oportunidades
apropriadas para o processo de despertamento ter efeito. As palavras: Não
deixemos de congregar-nos, presumivelmente referem-se a cultos de adoração,
embora o fato não seja declarado. Talvez tenha sido propositadamente deixado
ambíguo a fim de incluir outras reuniões de um tipo mais informal, mas a
palavra grega (episynagògè) sugere alguma assembléia oficial. Parece que alguns
tinham negligenciado seus encontros com os irmãos cristãos, o que é visto como
uma séria fraqueza. É possível que os leitores tenham se separado do grupo
principal, o que significava que suas oportunidades de estimular-se ao amor e
ás boas obras estavam severamente limitadas. As assembléias cristãs visam ter
um resultado positivo e útil: i.é, “encorajar uns aos outros” (fazer
admoestações, ARA). A palavra usada aqui (parakaleõ) pode igualmente ser
traduzida “exortar.” A idéia básica é que os cristãos devem fortalecer e
estimular uns aos outros. Não há dúvida de que influência incalculável para o
bem pode advir do exemplo poderoso de pessoas retas em associação com outras do
mesmo tipo. O Novo Testamento não oferece apoio algum à idéia de cristãos
isolados. A comunhão estreita e regular não é apenas uma idéia agradável, como
também uma absoluta necessidade para o encorajamento dos valores cristãos. De
início, é surpreendente que o escritor acrescente a esta altura as palavras: e
tanto mais quanto vedes que o dia se aproxima. Nada preparou os leitores para a
menção do “Dia”. Há muitas referências noutros livros do Novo Testamento ao Dia
do Senhor (e.g. 1 Ts 5.2; 2 Pe 3.10) e deve ser suposto que os leitores desta
Epístola teriam sabido imediatamente a que se referia. De qualquer forma, é
familiar por causa do Antigo Testamento, mas o escritor o usa de uma maneira
especificamente cristã, subentendendo um dia de prestação de contas (cf. Lc
17.26; Rm 2.16; Ap 6.17). Certamente tem conexão com a Segunda Vinda de CRISTO,
embora esta não seja mencionada aqui tampouco. Tudo quanto está em mira é o
efeito salutar de ser lembrado da aproximação do dia. A expressão
“aproximar-se” (engizõ) é comumente usada no Novo Testamento para descrever a
aproximação do dia (cf. Rm 13.12; Fp 4.5; Tg 5.8; 1 Pe 4.7). Para um apelo
semelhante ao dia que se aproxima como base para o comportamento ético
cuidadoso, cf. 2 Pedro 3.11. Vale notar, no presente contexto, que o verbo é
indicativo e registra uma realidade consumada — vedes — e não está, como os
verbos anteriores, na forma de uma exortação. A iminência do dia era cosiderada
clara. Não devia ser considerada um segredo. Os cristãos deviam viver como se o
raiar do dia estivesse tão próximo que sua chegada estava só um pouco além do
horizonte. Apesar dos séculos que se passaram desde então, a possível iminência
do dia ainda fornece uma motivação poderosa para muitos crentes no sentido de
padrões morais elevados.
Outra
advertência (10.26-31)
26. Este
versículo introduz uma nova seção (w. 26-31) que adverte contra os perigos da
apostasia de maneira muito semelhante às advertências no cap. 6.
Presumivelmente,
é provocada pela menção do dia da prestação das contas no v. 25. Os aspectos
sérios do julgamento contrário são vividamente focalizados. Se vivermos
deliberadamente em pecado coloca a ênfase no pecado responsável, no tipo de
pecado no qual as pessoas entram com os olhos abertos. A posição da palavra
deliberadamente (hekousiõs) como a primeira palavra na frase reforça esta
idéia. O culto ritual levítico oferecia providências para os pecados
inadvertidos, mas não para os pecados voluntários. A esta altura o uso que o
escritor faz da primeira pessoa do plural (“nós” oculto, hèmón), identifíca-se
com aqueles que recebem a advertência. O pleno conhecimento da verdade é
aludido como uma coisa recebida, o que sugere que tem uma forma reconhecida.
Ademais, o artigo com a palavra verdade (tès alétheias) toma claro que já
existe um corpo de doutrina definível, que todos os cristãos devem conhecer. É
o equivalente à totalidade da revelação cristã. O apóstolo Paulo tem muito mais
para dizer sobre o conhecimento (epignõsis) do que o autor desta Epístola. De
fato, este é o único lugar nesta Epístola onde esta palavra é usada. Ressalta a
qualidade deliberada do pecado se uma compreensão inteligente da “verdade” já
tinha sido adquirida. Semelhante pecado deliberado, ocorrendo depois de
obtida um domínio de “a verdade”, subentende uma rejeição da verdade, cujo
aspecto cardeal é a singularidade do sacrifício de CRISTO. Se este for
rejeitado, não sobra nenhum outro sacrifício adequado. Em grego, a ordem das
palavras é significante mais uma vez, porque a ênfase recai sobre as
palavras: pelos pecados. Pode haver sacrifício, mas nenhum que tenha
qualquer eficácia para a remoção dos pecados. Desta maneira, as sérias
conseqüências do pecado deliberado são ressaltadas.
27. Sem um
sacrifício expiador no qual se possa confiar, tudo quanto permanece é
juízo e fogo vingador.
A
alternativa é expressa forte e vividamente. A primeira: juízo, é expressada em
termos dos temores do homem (certa expectação horrível), a
segunda: fogo vingador, em termos da provisão de DEUS. Completam- se
mutuamente. Certa expectação horrível de juízo chama a atenção à
reação que a expectativa produz naqueles que se enquadram na categoria de
pecadores deliberados. A proporção em que os pensamentos do julgamento
aterrorizam os transgressores depende do caráter do juiz, e, na medida em que
esta passagem continua, toma-se claro que não se pode fazer pouco do Seu juízo
(cf. v. 31).
28. Um
exemplo da pena capital é citado da lei de Moisés como exemplo do julgamento
sob a antiga aliança, de modo que fornece um paralelo para um julgamento
semelhante sob a nova aliança.
O caso
específico citado é aquele em que alguém tiver rejeitado (athetèsas) a lei de
Moisés, i.é, deixou-a de lado como algo sem nenhuma conseqüência. Parece
subentender uma recusa positiva de aceitar a autoridade da lei mosaica. Para
semelhante homem não havia misericórdia sob a antiga aliança. Não poderia
esperar nada senão a morte. Visto que a disposição — pelo depoimento de
duas ou três testemunhas - é tirada de Deuteronômio 17.6, é razoável supor
que o escritor tinha em mente, a esta altura, a passagem inteira de 17.2-6.
Esta trata do pecado específico dos que estavam dentro da antiga aliança mas
que tinham cometido o pecado da idolatria e, como resultado, foram condenados à
morte por apedrejamento. A presença das testemunhas era exigida para garantir
que ninguém fosse condenado na base de um relato falso. Nenhuma lição
específica é tirada deste fato quando os paralelos com a Nova Aliança são
sugeridos neste Epístola.
29. O
argumento agora procede do menor para o maior, portanto as palavras quanto mais
severo são aplicadas ao delito mais sério sob a nova aliança.
Os leitores
estão exortados a dedicar pensamento especial a isto: julgais vós? (dokeite).
Embora as palavras sejam expressas na forma de uma pergunta, não há dúvida
acerca da resposta. O escritor toma por certo que o estado mental que está para
mencionar é até pior do que a violação da lei mosaica. Envolve maior castigo.
Ao falar deste castigo emprega uma palavra (timõria) que não ocorre em qualquer
outro lugar no Novo Testamento e que o descreve precisamente em termos daquilo
que o delito merece. O delito específico, que é suficientemente sério para
justificar um castigo maior, é expressado de modo tríplice, (i) Primeiramente,
envolvia o desprezo ao Filho de DEUS. O verbo usado aqui (katapateô)
significa calcar aos pés ou tripudiar, expressão vívida quando é usada a
respeito do Filho de DEUS. Deve envolver não somente uma rejeição da posição
cristã, como também o mais forte antagonismo contra JESUS CRISTO. É um caso
extremo de apostasia que está sendo contemplado, (ii) Em segundo lugar, o
transgressor profanou o sangue da aliança. A expressão grega traduzida profanou
(koinon hègêsamenos) pode ser traduziada “considerar comum” no sentido de
tratar o sangue de CRISTO como não sendo diferente do sangue de qualquer outro
homem, mas a interpretação mais positiva das palavras no sentido de “considerar
profano” é mais provável. Posto que o sangue era o meio de ratificar uma
aliança (tanto a antiga quanto a nova), considerá-lo profano era o equivalente
de destruir a base inteira do acordo. Qualquer pessoa que adotasse semelhante
ponto de visa estaria realmente desprezando a obra de CRISTO. Na frase
qualificadora, com o qual foi santificado, o contraste é ressaltado entre uma
atitude ímpia para com o sacrifício de CRISTO e os resultados santos daquele
sacrifício para o crente, (iii) O terceiro ato é descrito como ultrajar o
ESPÍRITO da graça. O verbo é outra palavra que não ocorre mais no Novo
Testamento (enybrizein), que significa nlo somente ultraje, como também
insolência. É uma rejeição arrogante do ESPÍRITO através de cujo intermédio a
graça (o favor gratuito de DEUS) chegou ao homem. Esta é a única ocasião no
Novo Testamento onde o ESPÍRITO é chamado o ESPÍRITO da graça, mas aqui o
propósito do escritor é resumir numa palavra todos os benefícios que o ESPÍRITO
trouxe. Esses três aspectos da apostasia não somente colocam o homem numa
posição de condenação, como também o deixam numa posição especificamente anti-
ristã. É impossível saber se o escritor tem em mente pessoas que realmente se
viraram contra o cristianismo depois de terem estado associadas com ele, ou se
está considerando qual seria a posição de quaisquer pessoas que chegassem a
assim fazer. Quando esta passagem é considerada em conjunção como capítulo 6,
fica claro que o escritor tem bem presentes as conseqüências sérias para
aqueles que se tomarem antagônicos a JESUS CRISTO. Quaisquer pessoas que já
tivessem feito assim não seriam demovidas pelos argumentos no decurso da
Epístola que demonstram a superioridade de CRISTO. Parece melhor, portanto,
supor que estas advertências fortes são propostas para demonstrar o contraste
entre aqueles que entram nos benefícios do sacrifício de CRISTO e aqueles que
resolutamente se recusam a entrar.
30. A fim de
que ninguém pense que o escritor exagerou a perspectiva do julgamento, este
chama a atenção dos seus leitores para o caráter do juiz, que é a garantia de
que o julgamento será justo.
As
palavras: Ora, nós conhecemos aquele imediatamente focalizam a
atenção na Pessoa. Segue-se, então, uma citação, ou melhor, uma adaptação de
uma citação tirada de Deuteronômio 32.35 (cf. também Rm 12.19, onde é achada a
mesma adaptação). A segunda citação é tirada do versículo seguinte em
Deuteronômio 32. A respectiva passagem é aquela em que Moisés faz seu discurso
de despedida e relembra ao povo de Israel como DEUS o tinha tratado. O discurso
também contém advertências, e é desta seção especialmente que as citações são
tiradas. As duas juntas ressaltam o fato de que a vingança e o julgamento
pertencem ao Senhor. A vindicação do povo de DEUS vai de mãos dadas com o
julgamento dos Seus inimigos.
31. O terror
da expectativa mencionada no v. 27 agora é reforçado pelo uso da mesma palavra
para descrever o resultado de cair nas mãos do DEUS vivo.
A expressão
“DEUS vivo” já ocorreu antes nesta Epístola (3.12; 9.14) e ocorre outra vez em
12.22. Tem relevância especial aqui por estar ligada com “mãos”, que simbolizam
a atividade de DEUS. Ao falar assim das “mãos” de DEUS, o escritor está usando
uma figura de linguagem bem-conhecida para o implementar, da parte de DEUS, dos
Seus próprios julgamentos. Logo, neste contexto “as mãos de DEUS” estão contra
aqueles que, através das suas ações ou atitudes, se colocaram fora da Sua
misericórdia. Um uso diferente de uma expressão semelhante: “a poderosa mão de
DEUS,” é achada em 1 Pedro 5.6.
O
valor da experiência passada (10.32-39)
32. O
assunto da seção seguinte, w. 32-39, é a perseverança, que primeiramente é
tratada em retrospecto, e então passa a ser o assunto de mais exortações.
O processo
da recordação às vezes é uma atividade frutífera quando chama à mente lições
anteriores, mesmo se aquelas lições tenham sido aprendidas numa escola severa.
A palavra lembrar-se (anamimnêskõ) é usada somente aqui nesta
Epístola, mas ocorre duas vezes em Marcos (11.21; 14.72) e três vezes em Paulo
(1 Co 4.17; 2 Co 7.15 e 2 Tm 1.6). Denota algum esforço em chamar à mente.
Teríamos pensado que semelhante esforço seria desnecessário quando o assunto da
lembrança são os sofrimentos anteriores do crente, mas é surpreendente como a
memória da maioria das pessoas precisa ser incitada. Os dias anteriores dão a
entender que este grupo de crentes já era cristão havia algum tempo. Agora
podem relembrar dias anteriores ao tempo da sua iluminação. Esta é uma maneira
expressiva de referir-se à sua conversão (cf. 6.4). Relembra a declaração
paulina em 2 Coríntios 4.6, onde a idéia da iluminação espiritual se destaca. A
estes cristãos é dito: sustentastes grande luta. A palavra athlèsin
que descreve esta luta é outra palavra que não é achada em qualquer outro
lugar no Novo Testamento, e significa um certame atlético, e, portanto, é
aplicada de modo metafórico a uma luta. Neste caso a linguagem figurada parece
dizer respeito a uma corrida de obstáculos, sendo que os sofrimentos são os
obstáculos a serem vencidos.
33. Aqui são
dados pormenores do tipo de sofrimento que os leitores tinham suportado.
É descrito
como expostos como em espetáculo, tanto de opróbrio, quanto de
tribulações. Demonstra-se assim como tinham um envolvimento pessoal nos
sofrimentos de CRISTO. Das duas palavras aqui usadas para denotar o sofrimento,
“opróbrio” (oneidismoi) é achada também em 11.26 na descrição do opróbrio que
Moisés sofreu como resultado da sua rejeição da posição exaltada no Egito, e em
13.13 na descrição daquilo que aguarda os que saem fora do arraial com CRISTO.
É estreitamente ligado com o opróbrio que CRISTO suportou (cf. Rm 15.3). A
outra palavra: tribulações (thlipsis), é muito mais comum no Novo Testamento,
embora ocorra somente aqui em Hebreus. Talvez o exemplo mais notável do seu uso
seja Colossenses 1.24, em que Paulo fala em preencher o que resta das aflições
de CRISTO. Estes hebreus tinham participado de uma experiência semelhante. O
verbo traduzido expostos como em espetáculo (theatrizomai) ocorre
somente aqui no Novo Testamento, mas Paulo usa o substantivo cognato em 1
Coríntios 4.9. Tanto o verbo quanto o substantivo derivam sua força de
expressão de um espetáculo no teatro, e a idéia é que os cristãos foram usados
como um alvo público para maus tratos. Esta idéia também harmoniza-se com os
maus tratos aos quais o próprio CRISTO foi sujeitado. Além dos seus próprios
sofrimentos pessoais, às vezes sofriam mediante a associação com outras
pessoas. Uma comunidade cristã com laços estreitos forçosamente experimentará
os dois tipos de sofrimento quando vem a perseguição. Não se declara qual forma
assumiu este segundo tipo. Bastava para o propósito do escritor relembrar aos
leitores que eram coparticipantes (koinõnoi), que relembra o conceito
neotestamentário familiar da comunhão ou da participação. Os crentes tinham
achado um privilégio “compartilhar” dos sofrimentos uns dos outros. Esta é
comunhão no nível mais profundo.
34. Aquilo
que é descrito de modo geral no versículo anterior é descrito aqui de modo mais
específico para servir de exemplo, mas na ordem inversa.
Vos
compadescestes dos encarcerados é um exemplo de uma abordagem ativa, ao passo
que aceitar o espólio é um exemplo da abordagem passiva. Estes cristãos tiveram
experiência das duas situações. Tinham, na realidade, demonstrado simpatia,
semelhante àquela do nosso Sumo Sacerdote (4.15), embora num nível inferior.
Conforme demonstra a palavra grega (synepathèsate), esta compaixão cristã
consiste na capacidade de “sofrer com” os que sofrem. Identificam-se mentalmente
com os encarcerados. Nenhuma indicação é dada da natureza ou da causa do
aprisionamento, mas presumivelmente era por causa da confissão cristã das
respectivas pessoas. Sabemos pelas cartas de Paulo que ele mesmo foi
encarcerado muitas vezes, e também sabemos que vários outros eram presos
juntamente com ele. Era bastante comum naqueles dias primitivos os cristãos
serem encarcerados sempre que suas convicções eram consideradas contrárias ao
gosto das autoridades civis. Não fica claro em quais circunstâncias este
cristãos tinham aceito com alegria o espólio dos seus
bens. Certamente revelavam uma abordagem especialmente madura, porque sua
atitude era mais positiva do que a mera resignação. Tinham aprendido a
regozijar-se no meio das perdas. Sua abordagem às suas posses era sadia, porque
sua posição espiritual não dependia das vantagens materiais. Tinham aprendido o
valor superior do seu patrimônio superior, que, segundo se supõe, refere-se às
suas vantagens em CRISTO. Era a isto que CRISTO chamara de ajuntar tesouros
no céu (Mt 6.19). A descrição adicional da possessão como durável acrescenta
outra dimensão à sua superioridade, porque claramente esta além da
possibilidade de perda.
35. O apelo
à experiência passada é sempre valioso quando relembra uma confiança anterior,
especialmente quando aquela confiança tinha começado a vacilar no interim.
A
experiência madura como aquela que acaba de ser mencionada certamente não
poderia ser jogada fora. O escritor expressa a questão como um desafio pessoal
direto: Não abandoneis (apobaléte), portanto, a vossa confiança. A
palavra que emprega significa “jogar fora” assim como se joga lixo que não tem
mais utilidade. Seria realmente trágico se a confiança anterior destes cristãos
fosse alijada desta maneira. Além disto, o escritor diz que ela tem grande
galardão no tempo presente (echei), no sentido de que o crente que ficar firme
já começa a ter experiência do galardão, ainda que seu cumprimento esteja no
futuro.
36.
Perseverança é um aspecto mais específico da confiança.
É uma
persistência até mesmo quando as circunstâncias são contrárias. O capítulo
seguinte fornecerá muitos exemplos da perseverança da fé. Acentuase a
necessidade dos leitores (tendes necessidade), que demonstra que o escritor
reconhece sua falta de um espírito de perseverança, e este fato está bem em
harmonia com o pano de fundo geral dos temores do escritor no tocante aos seus
leitores. O propósito da perseverança é expresso com exatidão nas palavras:
para que havendo feito a vontade de DEUS... Já neste capítulo a devoção de
JESUS à vontade de DEUS foi mencionada (cf. w. 5ss.), e agora o mesmo alvo é
colocado diante dos leitores. Fica certo que qualquer abandono da confiança
anterior não estaria de conformidade com a vontade de DEUS. Fica claro,
também, que o exemplo de JESUS CRISTO incluía sofrimentos. É uma das marcas de
um cristão maduro ter um conceito da vontade de DEUS que leva em conta os
acontecimentos contrários. É na base de cumprir a vontade de DEUS que os
leitores alcançarão a promessa. Esta é outra maneira de referir-se ao galardão
mencionado no v. 35. A idéia resume a herança gloriosa do crente, porque as
promessas de DEUS são totalmente fidedignas.
37-38. Com o
intuito de confirmar seu argumento, o escritor liga juntas duas passagens da
Escritura: Isaías 26.20 (LXX) e Habacuque 2.34.
A primeira
frase: Porque ainda dentro de pouco tempo, ecoa a linguagem de Isaías 26.20,
onde as mesmas palavras são seguidas pela cláusula: “até que passe a ira,” o
que demonstra que nos dias de Isaías Israel tinha que esperar até que DEUS
agisse. É citada aqui para renovar a confiança daqueles que imaginavam que a
falta de ação demonstrava uma falta da parte de DEUS de cumprir Sua promessa. A
parte seguinte da citação vem da passagem em Habacuque, embora haja modificações
do original. Há um propósito diferente, porque o profeta estava pensando na
ameaça dos caldeus.94 Aqui, o pensamento diz respeito à certeza da intervenção
de DEUS, que era especialmente relevante para a igreja num período de
perseguição. A certeza de que aquele que vem não tardaria demonstra
que qualquer demora deve ser considerada temporária. A primeira declaração no
v. 38 é citada por Paulo em Romanos 1.17 para resumir o teor do seu argumento
teológico (cf. também G1 3.11). Aqui, a lição principal a ser aprendida é a
necessidade da fé a fim de sustentar a confiança anterior. As palavras
adicionais: Se retroceder, nele não se compraz a minha alma atribuem
importância adicional à necessidade da fé. A possibilidade é expressa como uma
cláusula condicional, e não há indicação que algum deles realmente tivesse
retrocedido. Na realidade, o v. 39 sugere o inverso.
39. Aqui o
escritor identifica seus leitores com ele na rejeição da própria idéia de
retroceder.
As palavras
traduzidas para a perdição (eis apõleianj são uma interpretação da
passagem que acaba de ser citada, porque é somente assim que o escritor pode
entender o resultado do desprazer de DEUS. Aqui é contrastada com o resultado
da fé, i.é, que o escritor e os leitores igualmente gozarão da conservação da
alma. Esta idéia da conservação, o antônimo exato da destruição, é
característica da salvação. A mesma palavra é ligada com a salvação em 1
Tessalonicenses 5.9.
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