A Excelência
de Cristo
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ugindo das
características que são comuns na abertura de uma carta ou epístola, o autor
vai diretamente ao assunto que ele quer tratar. No original, é possível
perceber a beleza da sua construção literária ainda nas primeiras linhas. Neil
R. Lightfoot observa que, já na abertura de seu texto, o autor antecipa tudo o
que se seguirá. Ele mostrará a supremacia da fé cristã em relação ao judaísmo
primitivo.
“Havendo Deus, antigamente, falado, muitas
vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos, nestes
últimos dias, pelo Filho” (v. 1). Os profetas eram os arautos de Deus para o
povo de Israel. A Instituição Profética no Antigo Testamento é por demais
importante para ser minimizada. Para um judeu, a pior desgraça que poderia
existir era o silêncio profético. A trombeta profética servia de alerta quando
a vida moral, a espiritual e a social não iam bem. Abraham Joshua Heschel
(1907–1972), famoso rabino austro-americano, escreveu sobre a importância dos
profetas:
“O significado dos profetas de Israel
não reside apenas no que eles disseram, mas também no que eles foram. Não
podemos entender completamente o que eles pretendiam dizer a nós, a menos que
tenhamos algum grau de consciência do que lhes aconteceu. Os momentos que
passaram em suas vidas não estão agora disponíveis e não podem se tornar objeto
de análise científica. Tudo o que temos é a consciência desses momentos como
preservados em palavras [...]. O profeta faz pouco caso daqueles para quem a
presença de Deus é auxílio e segurança; para ele, é um desafio, uma exigência
incessante. Deus é compaixão, não concessão; justiça, embora não inclemência. A
palavra do profeta é um grito na noite. Enquanto o mundo dorme despreocupado, o
profeta sente o golpe vindo do céu”.1
O autor de Hebreus tem consciência desse
fato — os profetas foram arautos de Deus para o seu antigo povo. Todavia, uma
voz superior a deles fora levantada — a voz do Filho de Deus! Essa voz era em
tudo superior a dos profetas. Os profetas foram agentes da revelação divina,
mas não foram a revelação final. O autor lembra que essa revelação final, a
última palavra profética, era do Filho de Deus. Nenhum profeta, por mais
importante que tivesse sido, poderia igualar-se em importância com Jesus
Cristo. A ideia, aqui, não é que Deus não falaria mais a partir daquele
momento, como nos quer fazer acreditar alguns autores, mas, sim, mostrar Jesus
Cristo como sendo o cumprimento de tudo aquilo que foi predito pelos profetas.2
Adam Clarke (1760–1832) comentou com muita propriedade que:
“Debaixo do
Antigo Testamento, as revelações foram feitas em ocasiões distintas por várias
pessoas, em diversas leis e forma de ensinamentos com diferentes graus de
clareza, símbolos, tipos e figuras e com distintos modos de revelação, tal como
por anjos, visões, sonhos, impressões mentais, etc.; veja Nm. 12.68. Todavia,
debaixo do Novo Testamento, tudo está feito por uma só pessoa, quer dizer,
Jesus, que cumpriu o que disseram os profetas e completou as profecias”.3
“A quem constituiu herdeiro de tudo, por
quem fez também o mundo” (v. 2). A palavra “herdeiro”, que traduz o termo grego
kleronomos, era usada em referência à divisão dos bens que um pai realizava em
favor de seus filhos. No judaísmo antigo, esse termo foi usado para o
lançamento de sortes para ser definido a quem caberia a parte da herança. A
ideia é que Jesus Cristo, por ser o único Filho de Deus, tornou-se o herdeiro
de tudo. Todavia, Ele não era apenas o herdeiro de tudo, mas também foi o
agente da criação. Através dEle, os mundos foram criados. A palavra “mundo”
traduz o termo grego aionas, com o significado de “eras’. O sentido é que Deus,
em Cristo, criou o mundo com tudo o que nele há. Como bem destacou Efrén de
Nisibi: “tanto o mundo espiritual como o material”.4
“O qual, sendo o resplendor da sua
glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela
palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos
pecados, assentou-se à destra da Majestade, nas alturas” (v. 3). Esse versículo
compõe aquilo que os teólogos denominam de “cristologia alta”. A patrística
valeu-se com frequência desse texto para afirmar a divindade de Cristo. Ainda
muito cedo, Orígenes escreveu:
“A mim me parece que o Filho é um reflexo da glória
de Deus, conforme ao que Paulo afirma: ‘Ele é o reflexo de sua glória’. Deste
reflexo de toda a gloria, reflete certamente os reflexos parciais que tem as
demais criaturas dotadas de razão, pois penso que nada, exceto o Filho, pode
conter o reflexo da glória do Pai em sua totalidade”.5
Por outro
lado, Atanásio, em seu discurso contra os arianos, escreveu:
“Quem já viu uma luz sem resplendor? Ao escrever aos
Hebreus, o apóstolo afirma: ‘Cristo é o esplendor de sua glória e a marca de
sua substância’, e Davi, no Salmo 89, canta: ‘O esplendor do Senhor, nosso
Deus, está conosco’, e também: ‘Em tua luz, vemos a luz’. Quem é tão néscio que
não entende que essas palavras referem-se à eternidade do Filho? Como pode
alguém ver a luz sem o esplendor de sua irradiação para poder dizer a respeito
do Filho: ‘Houve um tempo no qual ele não existia’ ou ‘Não existia antes de ser
gerado’? A expressão do Salmo 144 refere-se ao Filho: “Teu reino é um reino
eterno” e não permite a ninguém pensar em um intervalo cronológico, qualquer
que seja, no qual o Logos não existia”.6
Em seu
clássico e exaustivo comentário sobre a carta aos Hebreus, o puritano William
Gouge (1575–1653) lança mais luz sobre o entendimento desse texto:
“Essa frase, a expressa imagem, é uma exposição da
palavra grega χαρακτήρ, que pode ser traduzida como character (caráter). O
verbo do qual essa palavra é derivada, charattein, insculpir, significa gravar,
e aqui é usada com o sentido de carimbar ou imprimir alguma coisa gravada como
a impressão sobre uma moeda; a impressão sobre o papel feita pela impressora; a
marca deixada pelo selo”.7
Em outras palavras, aquilo que Deus é,
Jesus Cristo também é. “Feito tanto mais excelente do que os anjos, quanto
herdou mais excelente nome do que eles” (v. 4). Tendo mostrado a dignidade do
Filho de Deus e sua superioridade sobre o ministério profético, o autor passa a
fazer um contraste entre Jesus e os anjos. A cultura judaica, representada
tanto na literatura canônica como na apócrifa, dá um papel de destaque para as
figuras angélicas. Os anjos frequentemente aparecem nas páginas do Antigo
Testamento. O apóstolo Paulo advertiu a igreja de Colossos sobre os perigos de
uma adoração angélica: “Ninguém vos domine a seu bel-prazer, com pretexto de humildade
e culto dos anjos, metendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na
sua carnal compreensão” (Cl 2.18).
Em nenhum momento, o autor deprecia a
instituição profética, nem tampouco procura desqualificar o papel dos anjos
dentro do plano de Deus. O seu foco, porém, é mostrar que ninguém, nem mesmo os
anjos, que habitam os céus, pode ser maior do que o Filho de Deus. “A ideia é a
de superioridade em dignidade, valor ou utilidade, sendo a ideia fundamental de
poder, e não a de bondade”.8
“Porque a qual dos anjos disse jamais:
Tu és meu Filho, hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei por Pai, e ele me
será por Filho” (v. 5). Embora os anjos sejam chamados na Bíblia de “filhos de
Deus” (Jó 1.6; 2.1), o Senhor, todavia, jamais os chama de “meus filhos”. Essa
expressão só é aplicada a Cristo conforme demonstra o Salmo 2. Aqui, não está
presente a ideia de uma inferioridade do Filho em relação ao pai pelo fato de
aquEle ter sido “gerado”. Os cristãos neotestamentários não tinham problema
algum com a divindade de Cristo, sendo que tais questionamentos foram
disseminados em tempo posterior com a heresia ariana. Na cultura hebraica, as
ideias por trás das palavras “Pai” e “Filho” não trazem o sentido de origem do
ser e de superioridade, nem tampouco de subordinação e dependência. Da mesma
forma, os termos “gerado” e “criado” não podem ser tidos como sinônimos.
Loraine Boettner (1901–1990) observa que essas palavras trazem em si as “noções
semíticas e orientais de semelhança e igualdade de natureza e igualdade do ser.
Obviamente, a sensibilidade semítica é que sublinha a fraseologia das
Escrituras, e, quando elas chamam Cristo de ‘Filho de Deus’, confirmam sua
divindade verdadeira e apropriada. Isso indica uma relação peculiar que não
pode ser afirmada a respeito de criatura alguma, nem tampouco compartilhada. Da
mesma forma que qualquer filho humano assemelha-se ao pai em sua natureza
essencial, isto é, possui humanidade, assim também Cristo, o Filho de Deus, era
como o Pai em sua natureza essencial, isto é, possuía Divindade”.9
C.
S. Lewis (1898–1963), o consagrado escritor britânico e autor de as Crônicas de
Nárnia, em uma carta escrita a Arthur Greeves, disse que:
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“E, quando outra vez introduz no mundo o
Primogênito, diz: E todos os anjos de Deus o adorem” (v. 6). O autor põe em
relevo a superioridade do Filho em relação aos anjos quando destaca que estes
devem prestar-lhe adoração. A ideia, aqui, não é apenas de prestar uma
homenagem como sugere o ensino ariano. O vocábulo grego proskyneo traz a ideia
de prostrar-se e adorar.11 Os intérpretes acreditam que o autor nessa citação
fez uma combinação de Deuteronômio 32.43 com o Salmo 97.7 (96.7 LXX). Tanto o
texto massorético em hebraico como o texto grego da Septuaginta traduzem as
palavras hištaḥăwūe proskyneo como adorar.
“E, quanto aos anjos, diz: O que de seus
anjos faz ventos e de seus ministros, labareda de fogo” (v. 7). A tradução
“vento”, e não “espírito”, posta logo após o termo “anjos”, conforme aparece na
Almeida Revista e Atualizada, capta melhor o sentido do original. O sentido é
que os anjos podem assumir tanto a forma de vento como de fogo! Por outro lado,
a palavra “ministros” (gr. leitourgeo) dá a ideia de alguém a serviço de
outrem. Os anjos são seres a serviço de Deus.
“Mas, do Filho, diz: Ó Deus, o teu trono
subsiste pelos séculos dos séculos, cetro de equidade é o cetro do teu reino”
(v. 8). Aqui, o autor faz uma referência ao Salmo 45. Precisamos enxergar o
caráter messiânico desse salmo se quisermos, de fato, entender o pensamento do
autor. Em seu comentário do Novo Testamento, Joseph Benson (1749–1821) observa
que essa citação só tem sentido quando aplicada a Cristo.12 Somente Ele pode
ser chamado de Deus. Archibald Thomas Robertson (1863–1934), da mesma forma, vê
nesse texto uma afirmação da divindade de Cristo. Robertson observa que “essa
citação (a quinta) provém do Salmo 45.7ss. Uma ode nupcial hebraica
(epithalamium) para um rei, que aqui é tratado como messiânico. Aqui, ho theos
deve tomar-se como vocativo (dirige-se a palavra como na forma nominativa, como
em João 20.28, onde o Messias é designado como Deus; cf. Jo 1.18)”.13
“Amaste a justiça e aborreceste a iniquidade;
por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria, mais do que a teus
companheiros” (v. 9). Eusébio de Cesareia (263–339 d.C.) destaca:
“aqui, o primeiro versículo do texto o chama de Deus;
o segundo o honra com o cetro real. E a continuação depois de seu poder divino
e régio mostra o mesmo Cristo, em terceiro lugar, ungido não com óleo que
procede de matéria corporal, senão com o óleo divino do gozo, pelo que vem
significar sua excelência, sua superioridade e sua diferença em relação aos
antigos, ungidos mais corporalmente e em figura”.14
“E: Tu, Senhor, no princípio, fundaste a
terra, e os céus são obra de tuas mãos” (v. 10). Com sua mente no Salmo
102.25-27 e sempre seguindo a Septuaginta, o autor descreve a exaltação de
Cristo, que é retratado aqui como Senhor e Criador. Para o autor, uma das
inúmeras razões da superioridade de Jesus sobre os anjos é que Cristo não é uma
criatura, mas, sim, o próprio Criador de tudo o que há. Essas palavras fazem um
paralelo com Colossenses 1.16 e João 1.3. “Eles perecerão, mas tu permanecerás;
e todos eles, como roupa, envelhecerão” (v. 11). Em contraste com o mundo que
passará, Jesus permanecerá para sempre.
“E, como um manto, os enrolarás, e, como
uma veste, se mudarão; mas tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão” (v. 12).
O autor põe em relevo as metáforas para contrastar a transitoriedade do mundo
criado com a eternidade do Filho. Em seu comentário sobre Hebreus, James Moffat
(1879–1944) escreveu: “O mundo desgasta-se, e até mesmo os céus (12.26) são
abalados, e com ele as luzes celestiais, mas o Filho permanece. A natureza está
a sua mercê, e não Ele à mercê da natureza”.15
“E a qual dos anjos disse jamais:
Assenta-te à minha destra, até que ponha os teus inimigos por escabelo de teus
pés?” (v. 13). Aqui, a figura é de um monarca sendo honrado diante de seus
súditos. O assento da direita revelava posição de honra. Por outro lado, no
Oriente, era costume dos vencedores colocar o pé no pescoço dos vencidos (Js
10.24). Nenhum dos anjos ocupou uma posição de honra semelhante àquela ocupada
por Jesus. A expressão assenta-te, que traduz o grego kathou, está no presente
contínuo e descreve o estado permanente da grandeza e supremacia de Jesus para
todo o sempre.
O autor está próximo de introduzir outra
seção na sua argumentação, mas ele precisa concluir sobre aquilo que ele havia
argumentado sobre a superioridade do Filho em relação aos anjos. Os anjos são
servos de Deus, Jesus é Filho e Senhor; os anjos não têm trono, o Filho tem. Os
anjos são servos a serviço da salvação; o Filho é o autor da Salvação.
“Não são, porventura, todos eles
espíritos ministradores, enviados para servir a favor daqueles que hão de
herdar a salvação?” (v. 14). O versículo 14 conclui o que o autor tencionava
fazer ao contrastar a pessoa de Jesus com os anjos. Ficou meridianamente claro
que o Filho de Deus é superior aos anjos em tudo. Os anjos estão a serviço da
soberania divina no seu projeto redentivo. “Afinal, o que são os anjos?”,
pergunta Stuart Olyott.
“Não são pessoas da Divindade. São
espíritos criados que foram enviados por Deus, não somente para servi-lo, mas
também para servir os cristãos. Quão revelador e confortante é isso! Em alguns
momentos parecemos tão rebaixados e os anjos aparecem tão poderosos. Mas nós é
que herdaremos a salvação, não eles. Embora já estejamos salvos, a consumação
final de nossa salvação (o corpo ressurreto, a absolvição pública no juízo
final, as glórias celestiais, etc.) ainda nos aguarda. Os anjos já estão tão elevados
o quanto é possível; nós ainda aguardamos a glorificação final, quando
“julgaremos os próprios anjos” (1 Co 6.3). Mas jamais poderemos nos comparar em
glória com nosso Senhor Jesus Cristo. Muito menos os anjos podem ser comparados
a ele! Por que, então, alguém é tentado a deixá-lo e retornar a uma religião
centrada em um conjunto de regras dadas por meio de intermediários
angélicos?”.16
A Supremacia de Cristo
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