Apresentação
O Desmonte da
Igreja Evangélica
Nas
últimas três décadas, a igreja evangélica brasileira tem passado por um
gigantesco processo de transformação. Se voltarmos no tempo, não tão longe, e
procurarmos descobrir como viviam os cristãos, observaremos que em nada se
parece com a igreja de hoje. Ela está mais enrugada, apática, anêmica e desfigurada! Vivemos um processo de desmonte da igreja evangélica brasileira! E a
razão parece óbvia — a igreja hodierna tem-se afastado da cruz e se aproximado
assustadoramente do mundo!
Infelizmente, as redes sociais, que deveriam
ser uma poderosa ferramenta de evangelização e discipulado, tem-se tornado a
caixa de ressonância dessas deformações. Vídeos bizarros, mostrando pastores,
cantoras e cantores fl agrados em adultério são postados a todo o momento nas
páginas da web. Os compartilhamentos no Facebook, nos quais é mostrado
pastores, pregadores e cantores trocando de esposa sem uma razão bíblica
justifi cável, têm-se viralizado! Os políticos “crentes” também não escapam. A
Lava-jato tem exposto as vísceras não só do mundo sem Deus, mas também daqueles
que dizem andar com Deus. Sem dar nomes aos bois, todo mundo sabe citar o nome
de algum “crente” que, de uma forma ou de outra, envolveu-se em corrupção. As
Convenções e Concílios também espelham essa mudança. Nesses conclaves, ser
membro da Diretoria é mais importante do que ser membro da igreja! Exercer um
cargo eclesiástico tornou-se mais importante do que exercitar um dom
espiritual! Os Estatutos tomaram o lugar da Bíblia! Quem entra nesse campo
minado precisa estar disposto a ser caluniado, acusado, vilipendiado e até
mesmo morto!
Essa onda, que vem como uma enxurrada
arrastando a tudo e a todos, como um tsunami impiedoso, tem deixado seu mar de
lama nos quatro cantos do país. Atordoados, aqueles que ainda estão na corrida
e brigam para ser crentes perguntam-se: “O que está acontecendo?”. Sim, o que
está acontecendo na igreja de hoje? De fato, alguma coisa anormal e muito grave
está ocorrendo no arraial evangélico! Uma apostasia generalizada parece
espalhar-se por todo o universo cristão! Não faz muito tempo, dois expoentes
líderes evangélicos, um de tradição reformada e outro pentecostal, anunciaram
seus desligamentos de suas respectivas igrejas de origem para filiarem-se ao
catolicismo.
São tempos de apostasia!
Fé,
esperança e ânimo (em tempo de apostasia) é o tema deste livro. Nada mais
apropriado para entendermos a cultura secular, que, assim como um grande polvo, tem enlaçado a igreja
com seus tentáculos. É nesse contexto que a mensagem da carta aos Hebreus
levanta-se como um poderoso baluarte contra o desânimo, a desesperança e a
descrença. Ela leva-nos a acreditar novamente na mensagem do evangelho e
faz-nos crer que Cristo Jesus continua sendo o mesmo ontem, hoje e eternamente.
Hebreus é uma carta que alimenta o
ânimo, a esperança e a fé! Todavia, não foi escrita para amaciar o ego dos
crentes. Seu tom exortativo é o mais forte e incisivo do Novo Testamento. O
perigo que rondava a comunidade para a qual o autor endereçou essa carta era
presente e real. Hebreus vem carregada de enfoque doutrinário e recheada de
exortações severas! O perigo de dar as costas para o calvário e voltar para o
deserto, rumo ao Egito, foi o que motivou o autor escrever esta carta com ar de
dramaticidade.
A
apostasia é um perigo e também uma realidade sobre a qual o crente deve
precaver-se. A exortação do autor é para que se continue na estrada, para que
se caminhe para frente. Todavia, o perigo de voltar para trás existe e é uma
ameaça real, não apenas hipotética. A carta é um grito de alerta quando os
cristãos pareciam cochilar na fé. Mas, mesmo usando um tom severo, às vezes até
mesmo duro, a carta aos Hebreus não foi escrita para produzir insegurança,
muito menos medo. Quem está em Cristo está seguro; essa segurança, no entanto,
não é compulsória. Ela está condicionada ao andar e permanecer nEle.
Escrevi este livro objetivando alimentar a fé
dos crentes e fortalecê-los através da reflexão teológica. Para tanto, fiz um
comentário versículo por versículo desse importantíssimo documento
neotestamentário que o Espírito Santo inspirou e deixou-nos como legado. O
texto é de natureza exegética, mas também teológica e devocional. Neste
comentário, procurei trazer a minha experiência com as línguas originais da
Bíblia para dentro do texto. Por alguns anos, antes de ingressar no ministério
pastoral de tempo integral, atuei como professor de grego e hebraico no
Instituto Bíblico Pentecostal de Teresina (IBPT) e na FAEPI — Faculdade
Evangélica do Piauí. Esse fato fez o texto tornar-se técnico às vezes, devido
às constantes análises de palavras das línguas originais. Todavia, esse
tecnicismo, que é uma marca característica das obras de natureza eminentemente
exegética, também tem seus ganhos. A meu ver, o mais importante deles é
permitir ao leitor ver o pensamento do autor neotestamentário numa dimensão
muito mais ampla do que aquilo que a tradução no vernáculo consegue mostrar.
É um fato documentado que a carta aos
Hebreus, devido à peculiaridade de seu texto, tem sido objeto de intensos
debates teológicos desde os primórdios do cristianismo. No olho do furacão,
estão aqueles textos que tratam da apostasia. Ainda quando comentava o texto,
observei que algumas passagens dessa carta demandavam uma análise
Apresentação
léxica,
gramatical e contextual mais aprofundada, por ter que dialogar com as
diferentes escolas de interpretação. Para que o texto não ficasse
demasiadamente extenso dentro do corpo do comentário do livro e também para que
o leitor não sofresse nenhum prejuízo por conta de uma exegese superficial,
resolvi tratar desse assunto em um apêndice, posto logo após o capítulo 12
deste livro. Ali, o autor mostra o que diz as diferentes correntes de
interpretação do texto de Hebreus, bem como interpreta esse texto a principal
vertente do pentecostalismo brasileiro.
Desejo dizer que o texto não é
perfeito, porém reflete com precisão o pensamento de quem também busca ânimo,
esperança e fé em tempos de apostasia.
A Deus seja
a glória!
Pastor José Gonçalves
Água Branca,
PI Março de 2017
Prefácio
Ao longo dos tempos, a epístola aos Hebreus
tem recebido os mais diversos predicados. Ao referir-se a ela, Orígenes
(185–254 d.C.) declarou: “Os conceitos da epístola são admiráveis e em nada
inferiores aos das genuínas cartas apostólicas”.1 Séculos mais tarde, Martinho
Lutero (1483–1546) classifi cou-a como “uma epístola maravilhosamente bela”.2
João Calvino (1509–1564), por sua vez, afi rmou que “não há nenhum livro da
Santa Escritura que tão claramente fale do sacerdócio de Cristo” e que “tão plenamente
explique que Cristo é o cumprimento da lei” quanto a Carta aos Hebreus.3 Já em
épocas mais recentes, Adam Clarke (1760–1832) assim se pronunciou sobre o valor
deste livro bíblico: “A epístola aos Hebreus [...] é, de longe, a mais
importante e útil de todos os escritos apostólicos; todas as doutrinas do
evangelho estão nela encarnadas [...]”.4 Tais declarações, entre tantas outras
que poderiam ser acrescentadas, por si mesmas demonstram a boa reputação de que
Hebreus tem desfrutado no decorrer da História da Igreja.
Em A Supremacia de Cristo, seu autor,
José Gonçalves, na esteira do entendimento desses que o precederam, mas, ao
mesmo tempo, sem abrir mão de suas convicções pessoais, debruça-se com erudição
e piedade sobre esse documento neotestamentário de inestimável valor para a
igreja cristã. O autor, semelhantemente a um garimpeiro que vive a escavar a
terra em busca de pedras preciosas, consegue extrair do texto sagrado, com
muita destreza, as valiosas pepitas do saber bíblico e teológico.
O livro em questão, ao destacar a
tríade fé, esperança e ânimo em seu título, lembra-nos, de certo modo, os
dizeres da sul-africana Mpomela, que, em sua autobiografia, afirmou que, “com
ânimo, esperança e fé, você pode sobreviver a todos os ventos tempestuosos”.5
Para Gonçalves, “com fé, esperança e ânimo, podemos nos resguardar contra a
apostasia”.
A apostasia, isto é, o abandono deliberado e
total da fé anteriormente abraçada, longe de ser um perigo irreal e, portanto,
fantasioso — como os monstros imaginários e ilusórios perseguidos por Dom
Quixote de la Mancha e Sancho Pança, seu fi el escudeiro — é, pelo contrário,
uma ameaça tangível que vive a rondar de perto a vida de todo e qualquer
cristão verdadeiro. Aliás, as várias advertências encontradas em Hebreus, por
exemplo, para que não nos desviemos em tempo algum do que ouvimos (2.1), para
que não nos apartemos do Deus vivo (3.12), para que não caiamos (6.4-6), para que
não recuemos na fé (10.38) e para que não nos desviemos daquele que é dos céus
(12.25) não fariam o menor sentido se não fossem advertências reais. Se tais
avisos não passam de meras situações hipotéticas, desprovidas de qualquer
possibilidade de tornarem-se realidade, como alguns pensam equivocadamente,
essas advertências, então, devem ser levadas a sério do mesmo modo como um
garoto de 12 anos encara com seriedade a possibilidade de machucar-se
gravemente num acidente automobilístico de um jogo de video game! Noutras
palavras, as advertências de Hebreus contra o perigo da apostasia são tão reais
quanto às placas de advertência de uma estrada que, de igual modo, chamam nossa
atenção para o perigo iminente de uma multa ou de um acidente de trânsito caso não
as obedeçamos.
Bem, mas como nos prevenir contra o real
perigo da apostasia? A mesma epístola aos Hebreus encarrega-se de fornecer-nos
a resposta. Podemos precaver-nos com ânimo, cientes do fato de que Cristo, por
meio de sua morte, aniquilou “o que tinha o império da morte, isto é, o diabo”
(2.14), bem como sendo conhecedores da verdade segundo a qual “não temos aqui
cidade permanente, mas buscamos a futura” (13.14). Além disso, podemos
enfrentar a apostasia por meio da esperança se “conservarmos firme a confiança
e a glória da esperança até ao fi m” (3.6) e se retivermos “a esperança
proposta” (6.18) e “a confissão da nossa esperança” (10.23). Finalmente,
podemos vencer a ameaça da apostasia por meio da fé, visto que “o justo viverá
da fé” (10.38a), pertencendo ao grupo “daqueles que creem para a conservação da
alma” (10.39). Tudo isso, naturalmente, só é possível se, com o auxílio da
graça divina, permanecermos “olhando para Jesus, autor e consumador da fé”
(12.2).
Em suma, a presente obra, além de apresentar
um comentário esclarecedor sobre Hebreus versículo por versículo, também nos
brinda com um rico e interessante apêndice sobre a condicionalidade da
segurança da salvação na vida dos crentes. Nesse item, o autor, com muita
propriedade e sólida fundamentação exegética, desfaz o mito muitas vezes
difundido por meio da máxima “uma vez salvo, salvo para sempre”. É por esses e
por muitos outros motivos que, com entusiasmo, recomendamos a leitura e o
estudo minucioso deste compêndio. Congratulamos a CPAD e o Pr. José Gonçalves
pela publicação deste importante contributo bíblico e teológico à Igreja
Evangélica brasileira.
1 Citado por
Eusébio de Cesareia em sua História Eclesiástica 6.25.12. (Cf. CESARÉIA,
Eusébio de. História Eclesiástica. (Coleção Patrística | Vol.15). [Trads.
Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo]. São Paulo, 2000,
p.314). 2 PELIKAN, J. & LEHMAN, H.
[Eds.]. Luther’s Works. Vol.35. Philadelphia, Fortress Press, 1960, p.395.
3 CALVINO, João. Hebreus. [Trad. Valter
Graciano Martins]. São José dos Campos, Editora Fiel, 2012, pp.21,22. 4 CLARKE, Adam. [Ed.]. The Holy Bible, with a
Commentary and Critical Notes by Adam Clarke. (Volume II | I Corinthians to
Revelation). London, Thomas Tegg and Son, 1836, p.1699. 5 MPOMELA, Thandiwe Rachel. I Was Left with an
Inch to Go Down: The Journey Through my Life. Bloomington, Xlibris, 2014, p.15.
Carlos Augusto Vailatti Doutor
em Estudos Judaicos pela USP,
Bacharel
e Mestre em Teologia.
Sumário
Agradecimentos
............................................................3
Apresentação
........................................................................................5
Prefácio .........................................................................................9
Introdução
........................................................................................13
Capítulo 1 A
Excelência de Cristo ........................................................................23
Capítulo 2
Uma Salvação Grandiosa
...................................................................30
Capítulo 3 A
Superioridade de Jesus em relação a Moisés .................................39
Capítulo 4
Jesus É Superior a Josué: o Meio de Entrar no Repouso de Deus
................................................................................................48
Capítulo 5
Cristo É Superior a Arão e à Ordem Levítica
....................................56
Capítulo 6
Perseverança e Fé em Tempo de Apostasia
.......................................63
Capítulo 7
Jesus: Sumo Sacerdote de uma Ordem Superior ..............................69
Capítulo 8
Uma Aliança Superior ........................................................................79
Capítulo 9
Contrastes na Adoração da Antiga e Nova Aliança ...........................86
Capítulo 10
Dádiva, Privilégios e Responsabilidades na Nova Aliança ...............97
Capítulo 11
Os Gigantes da Fé e o seu Legado para a Igreja
..............................107
A Supremacia de Cristo -1ª Tri/Adul-2018
CAPA.indd 11 16/10/17 11:46
A Supremacia
de Cristo
12
Capítulo 12
Exortações Finais na Grande Maratona da Fé ................................117
Apêndice
.............................................................................................131
Introdução
A Carta aos
Hebreus
No seu comentário sobre a carta aos
Hebreus, o teólogo Gabriel Josipovici apresenta uma abordagem metodológica que,
a meu ver, além de facilitar muito o entendimento desse importante documento
neotestamentário, também nos permite enxergar toda a sua excelência e beleza
literária. Josipovici parte da narrativa do encontro de Jesus com os discípulos
no caminho de Emaús (Lc 24.13-35) para, de forma metafórica, fazer uma ponte
literária entre o passado e o presente. Essa passagem bíblica contrasta a vida
dos discípulos por meio da relação entre o que havia acontecido antes com
aquilo que estava acontecendo agora. Os discípulos estavam com suas mentes e
focos no passado e não conseguiam enxergar nada além dele. O que havia
acontecido, sublinha Josipovici, eram “os eventos confusos que levavam à morte
de Jesus; o desaparecimento do corpo; o fornecimento de informação, que é
clara, porém não compreendida, embora se presuma que os dois discípulos estejam
familiarizados com a Escritura”. É nesse contexto que Jesus revela-se, fazendo
que eles vejam o que está acontecendo naquele momento. Essa manifestação do
Cristo vivo produz a “iluminação fi nal, por meio de uma ação específica
executada por alguém presente entre eles, que lança uma luz retrospectiva sobre
tudo o que aconteceu antes”.1
O Cristo ressurreto faz que eles vejam
o que está acontecendo, e não apenas o que havia acontecido. Jesus faz a ponte
entre o passado e o presente! Ele irá mostrá-los que os eventos passados dão
signifi cado ao presente, mas que o presente, da mesma forma, dá significado ao
passado. Esses fatos, quando relacionados à vida de Cristo, acontecem numa
sucessão de eventos: a morte de Jesus, o túmulo vazio, as Escrituras, que dão
testemunho desses fatos, e a presença viva de Jesus. Josipovici conclui:
“A Epístola aos Hebreus concentra-se principalmente
na terceira etapa, o modo como a Escritura confi rma os eventos da vida de
Jesus e como aqueles eventos dão signifi cado à Escritura. Seu argumento
poderia ser resumido assim: Deus, em tempos passados, falou-nos por meio de
sombras e enigmas, mas o sacrifício de Jesus, seu Filho, agora tornou seu
signifi cado claro. Os homens da Antiga Aliança eram, como nós, peregrinos,
avançando em direção a seu objetivo e lugar de descanso fi nal, mas nunca
realmente o alcançando. Nós, por outro lado, agora conhecemos conosco o
objetivo e estamos em posição de alcançá-lo. É por isso que uma carta assim é
necessária, para confortar e encorajar aqueles que poderiam, por causa do medo,
preguiça ou ambos recuar, perder a fé, recusar-se a ver a verdade óbvia”.2
AnônimA, porém inspirAdA
Hoje, há praticamente uma unanimidade entre os
biblistas de que o apóstolo Paulo não foi o autor da carta aos Hebreus. Para
esses intérpretes, é mais fácil dizer quem não escreveu Hebreus do que afirmar
quem a escreveu. Todavia, o seu uso na liturgia da igreja antiga desde os
primórdios do cristianismo atesta que a mesma teve, ainda muito cedo, aceitação
como documento inspirado. Esse fato foi impulsionado pela tradição antiga que
associava essa carta ao corpus paulino, colocando-a logo após a epístola aos
Romanos. Essa ordem, por sua vez, segue um antigo manuscrito grego (200 d.C),
conhecido como P46, que contém a carta aos Hebreus.
As controvérsias sobre a autoria de Hebreus
aconteceram de forma mais acalorada na igreja do Ocidente, de fala latina, do
que na igreja Oriental, de fala grega, e estenderam-se até o século IV d.C.
Essas controvérsias giravam em torno de uma segunda oportunidade de
arrependimento para quem viesse a pecar depois do batismo. Os textos que
serviram como base dessa controvérsia eram, respectivamente, Hebreus 6.4-6;
10.2631 e 12.17. Isso pode ser visto, por exemplo, na exposição dos textos do
Pastor de Hermas (120–140 d.C) e de Tertuliano (160–220 d.C), bispo de Cartago.
Novaciano (200–258), que era conhecido pelo seu rigorismo, afirmava que os
cristãos que renunciaram a fé por conta da perseguição movida por Décio
(201–251) não podiam mais ser perdoados. Por outro lado, Cipriano defendia que,
após uma penitência rigorosa, os infiéis poderiam ser novamente enxertados na
igreja.
Os pais gregos, diferentemente dos
latinos, embora questionassem as interpretações dadas a carta aos Hebreus, não
dogmatizaram, todavia, as questões relacionadas à sua autoria. Erik M. Heen e
Philip D. Krey destacam que:
“O Oriente
grego, ainda que se discutiam temas relacionados com a autoria paulina, as
passagens do segundo arrependimento não se consideravam tão problemáticas como
no Ocidente, e nunca se questionou seriamente a autoria da carta aos Hebreus.
Os exegetas alexandrinos Pateno e Clemente aceitaram a autoria paulina, ainda
que Clemente sugeriu que as diferenças estilísticas da carta se deviam a
tradução que Lucas fez do original hebraico para o grego; esta tradução foi
incorporada a glossa ordinária e foi a opinião tradicional que prevaleceu na
A Supremacia de Cristo -1ª Tri/Adul-2018
CAPA.indd 14 16/10/17 11:46
15
Introdução
igreja medieval do Ocidente. Orígenes aperfeiçoou
essa ideia ao sugerir que a carta estava redigida em uma ordem diferente em que
apresentava em sua tradução”.3
Os
comentários de Orígenes sobre a autoria da carta aos Hebreus são
representativos da tradição grega em geral.4 Em sua Homilia Sobre a Carta aos
Hebreus, Orígenes (185–254 d.C), escreveu:
“De minha parte, se hei de dar minha opinião, eu
diria que os pensamentos são do apóstolo (Paulo), mas o estilo e a composição
são de alguém que evocava de memória os ensinamentos do apóstolo, como um aluno
que anota por escrito as coisas que seu mestre disse. Por conseguinte, se
alguma igreja tem esta carta como de Paulo, que também por isto a estime, pois
não sem motivo os antigos a tem transmitido como de Paulo. Mas quem escreveu a
carta? Deus sabe de verdade”.5
Clemente Romano cita a carta aos Hebreus
em 95 d.C, mas não faz nenhuma alusão a Paulo. Em cerca de 180 d.C, Pantenus,
um dos pais orientais, defendeu a autoria paulina de Hebreus, posição
semelhante adotada pela igreja ocidental a partir de Hilário. Todavia, foi
somente no Concílio de Cartago, ocorrido em 397 d.C., que a carta aos Hebreus
foi reconhecida de forma oficial pela igreja e tida como fazendo parte, de fato
e de direito, do corpus paulino. A partir desse Concílio, a carta aos Hebreus é
tida como uma obra escrita pelo apóstolo dos gentios e que, portanto, possuía
valor canônico. Na Idade Média, foi essa a opinião prevalecente. No entanto,
com o advento do Renascimento e da Reforma Protestante, onde um interesse por
um retorno às fontes dominava os círculos acadêmicos, as antigas questões
relacionadas à carta aos Hebreus voltaram novamente. Não se questionava a sua
inspiração, mas, sim, a sua autoria. Lutero, por exemplo, acreditava que Apolo
(e não Paulo) seria o autor dessa carta. F. M. Young destaca que Lutero estava
ciente da antiga discussão em torno dessa carta e concluiu que Paulo não
poderia ser seu autor. “Ele notou que a recusa em permitir o arrependimento
após o batismo em Hebreus (6.4-6) diferia da aceitação do arrependimento após o
batismo nos evangelhos e nas epístolas de Paulo”.6 Para ele, Apolo, por ser um
varão “eloquente e poderoso nas Escrituras” (At 18.24), ajustava-se melhor no
perfil de quem escreveu Hebreus.
O
dogma criado pela igreja católica em torno da autoria paulina de Hebreus
prevaleceu por muito tempo, e seus defensores apresentam o que acreditavam ser
prova disso. Neil R. Lightfoot, que não é dogmático nessa questão, enumerou as
razões favoráveis a uma autoria paulina para Hebreus, conforme postas por seus
defensores:
1. As
circunstâncias apresentadas nos versículos finais de Hebreus são semelhantes
àquelas existentes nas cartas reconhecidamente como paulinas (Hb 13.3 e 13.18;
comparar com Rm 15.30; 2 Co 1.11; At 23.1; 24.16; 2 Co 1.12; 1 Tm 3.9; 2 Tm
1.3; Hb 13.19; comparar com Fm 22; Fp 1.24-25; Hb 13.20,25; comparar com Rm
15.33, 1 Tm 5.28 e 2 Tm 3.18).
a) Muitas ideias apresentadas em Hebreus são
semelhantes às encontradas nas cartas paulinas.
Cristologia.
Em Hebreus e em Paulo, Cristo é representado como a imagem de Deus (Hb 1.3; cf.
Cl 1.5); o agente e sustentador de toda a criação (Hb 1.1-3, 10-12; cf. Cl
1.16-17; 1 Co 8.6); humilhado como homem e exaltado acima dos anjos (Hb
2.14-17; 1.4-14; cf. Fp 2.5-11; Ef 1.20-23); aquele cuja morte foi um
sacrifício por todos (Hb 1.3; 2.9; 9.26; 10.12; cf. 1 Tm 2.6; Ef 5.2; 1 Co
15.3).
b) As duas Alianças. A Velha Aliança não passava de
sombra das boas coisas da Nova (Hb 10.1, cf. 2.16-17), assim como os
acontecimentos e planos da antiga eram típicos da nova (Hb 8.1-6; 4.1-2,11; cf.
1 Co 10.11). A Antiga Aliança, por causa da sua fraqueza (Hb 7.18; cf. Rm 8.3),
tinha de aguardar algo além de si mesma (8.8-13) e ser substituída com o
estabelecimento de uma nova aliança (Hb 7.19; 8.13, cf. 2 Co 3.9-11).7
2. Certo
número de frases e termos em Hebreus é similar aos encontrados nas cartas
paulinas.
3. Segue-se
uma lista de alguns dos paralelos dados por Moses Stuart.
a) O texto
de Hebreus 1.5 só ocorre outra vez no Novo Testamento e é de uso paulino em At
13.33 em referência a Cristo.
b) O texto de Hebreus 2.4 destaca os dons do
Espírito Santo, que é paralelo aos encontrados nos escritos de Paulo (1 Co
12.4; 12.11; Rm 12.6).
c) O texto
de Hebreus 2.10 destaca Cristo como o autor e proprietário de todas as coisas.
A mesma verdade é ensinada por Paulo (Cl 1.16; 1 Co 8.6)
d) O texto
de Hebreus 2.16 enfoca a descendência de Abraão, que é paralelo àquilo que
Paulo escreveu sobre o velho patriarca (Gl 3.29; 3.7; Rm 4.16)
e) Hebreus
4.12 usa a espada como um símbolo da Palavra de Deus. A mesma metáfora é usada
por Paulo (Ef 6.17).
f) O texto de Hb 6.3: “[...] se Deus o
permitir” só é usado outra vez no Novo Testamento em 1 Co 16.7.
g) O texto
de Hb 10.19 destaca o acesso a Deus que foi garantido por Cristo. Muitos
paralelos são encontrados em Paulo (Rm 5.2; Ef 2.18; 3.12).8
Apesar de esses paralelos parecerem
bastante fortes em defesa da autoria paulina de Hebreus, a erudição bíblica
protestante, seguindo os reformadores Martinho Lutero (1483–1546), Filipe
Melâncton (1497–1560), João Calvino (1509–1564) e Teodoro de Beza (1519–1605),
optou por rejeitar essa autoria. As diferenças de estilo, forma e temas
teológicos são as principais razões que os levaram a essa rejeição. Dentre
essas razões, são enumeradas:
4. O apoio histórico para a autoria paulina é praticamente nulo. A
opinião de Clemente de Alexandria, que atribui a autoria de Hebreus ao apóstolo
dos gentios, é tardia e incorreta porque não há evidência alguma de que essa
carta foi escrita originalmente em hebraico e, depois, traduzida para o grego.
O texto grego de Hebreus, o mais refinado do Novo Testamento, depõe contra a
ideia de uma tradução.9 Por outro lado, o testemunho de Orígenes, para quem
“somente Deus sabia quem escreveu Hebreus”, deve ser levado em conta. O cânon
muratoriano, Irineu, Hipólito e Gaio de Roma não consideravam Hebreus como
sendo escrita por Paulo.10
5. O estilo e a linguagem da
Epístola aos Hebreus diferem consideravelmente das cartas de Paulo. Enquanto o
estilo paulino é marcado por frequentes irregularidades, anacolutos, parênteses
inconclusos e misto metafórico, a carta aos Hebreus possui fluidez, simetria e
é possuidora de um estilo artisticamente elaborado. O conceito de fé também difere
nos dois autores. Em Hebreus, a fé aparece como uma recompensa daqueles que
ousaram crer nas promessas de Deus, enquanto em Paulo, a fé está associada à
justificação que independe das obras da lei.11 As expressões “Jesus Cristo”,
“Nosso Senhor Jesus Cristo”, Cristo Jesus” e “Senhor” (para Cristo) são usadas
mais de 600 vezes por Paulo; todavia, não estão presentes em Hebreus. O tema do
Sumo Sacerdócio de Cristo, que praticamente domina toda a carta aos Hebreus,
está ausente em Paulo. Outro fato notável é a maneira como os dois autores usam
o Velho Testamento em suas citações. O autor de Hebreus utiliza-se do recurso:
“Deus diz”; “O Espírito Santo diz” ou foi “testificado em algum lugar”,
enquanto Paulo valia-se de fórmulas, tais como: “Está escrito”; “as Escrituras
dizem”.12
6. O autor de Hebreus recorre à Septuaginta, enquanto Paulo nem sempre
se vale dessa tradução.
7. O autor admite que a salvação pregada por ele foi transmitida e
“confirmada pelos que a ouviram” (Hb 2.3). Paulo, por outro lado, insiste que
não recebeu o evangelho por parte de homem algum, mas diretamente de Jesus
Cristo (Gl 1.11-12).13
Outros nomes além de Paulo foram
levantados como possíveis autores de Hebreus. Tertuliano (160–220 d.C) defendeu
Barnabé, companheiro de Paulo, como sendo o autor dessa carta. Ele escreveu:
“Pois ainda existe um livro escrito por Barnabé aos Hebreus”.14 Charles A.
Trentham observa que Barnabé, um levita, natural de Chipre, ajusta-se bem ao
profundo conhecimento que o autor de Hebreus possuía sobre a adoração levítica.
Por outro lado, o significado de seu nome
(“filho da exortação” ou “consolação”) explica o forte tom exortativo
dessa carta. Sendo natural de Chipre, ilha reconhecidamente de cultura
alexandrina, Barnabé estava qualificado, como judeu helenista, a manusear o
grego com maestria como o fez o autor de Hebreus. A sua amizade com Timóteo e Paulo
explicaria aquilo que parece influência paulina em Hebreus.15
Fica, portanto, em aberto a questão da
autoria da carta aos Hebreus, mas não a sua inspiração. Quis o Espírito Santo
que o autor ficasse no anonimato, mas não a sua autoridade e inspiração.
Os primeiros Leitores
Os manuscritos gregos Sinaiticus (c.
330–360) e Vaticanus (c. 300–325) trazem o título “Pros Hebraious” (Aos
Hebreus). Todavia, como se tratam de cópias, não é possível afirmar com
segurança que esse título fizesse parte da redação original. O que pode ser
afirmado é que eles atestam a existência de uma tradição muito antiga que
associava a carta aos Hebreus a uma antiga comunidade de crentes de origem
judaica. Uma quantidade significativa de intérpretes conservadores acredita que
essa tradição reflete melhor as evidências encontradas no texto de Hebreus. As
evidências internas da carta revelam que os destinatários de Hebreus eram
judeus helênicos. Não faria sentido o autor recorrer ao Velho Testamento como
forma de validar seus argumentos se os seus leitores fossem gentios.
Nesse aspecto, vale a pena destacar que a
carta contém várias passagens que só fazem sentido se o público leitor fosse de
judeus (Hb 7.11; 13.13). Frederick Fyvie Bruce (1910–1990) comenta:
“Os destinatários parecem ter sido, portanto, um
grupo de cristãos judeus que nunca tinha visto ou ouvido falar de Jesus em
pessoa, mas eles tinham aprendido sobre ele (como fez o escritor da epístola)
de alguns que tinha pessoalmente ouvido de sua conversão. Tinham sido expostos
à perseguição, especialmente em um estágio no início de sua corrida cristã, mas
apesar de terem de suportar abuso público, prisão e saques de suas casas, ainda
não tinha sido chamado a morrer por sua fé. Tinham fornecido provas concretas
de sua fé para servir os seus irmãos cristãos e especialmente para cuidar
daqueles em sua congregação que tinha sofrido mais em tempos de perseguição.
Mas seu desenvolvimento cristão tinha parado: em vez de avançar, tendiam a
estagnar completamente em seu progresso espiritual e até mesmo a recuar em
direção a uma fase que tinham superado. Muito provavelmente, eles se recusaram
a cortar seus últimos laços com a religião que contava com a proteção do
direito romano e enfrentar os riscos de um compromisso irrevogável para a caminhada
cristã. O escritor, que conhece ou ouviu falar sobre eles por um tempo
considerável, e sente solicitude pastoral para com seu bem-estar, alerta-os
sobre esse recuo, porque isso pode resultar em um afastamento completo da fé
cristã. Ele encoraja-os com a garantia de que podem perder se voltarem, mas
vencerão se continuam resolutamente no caminho”.16
Conteúdo e propósito
Uma
leitura cuidadosa de Hebreus mostra que o autor tencionava produzir ânimo,
esperança e fé em um tempo de apostasia. Como faziam parte da segunda geração
de crentes, os Hebreus estavam dando sinais de arrefecimento na fé muito cedo.
Aquele entusiasmo presente marcado pelo primeiro amor estava desaparecendo. Em
lugar disso, alguns mostravam encantamento pelo velho sistema do qual haviam
saído.
Já no início de sua exposição, o autor
faz um contraste entre a posição dos anjos com a posição do Filho. No judaísmo
antigo, os anjos ocupavam uma posição de alta relevância, e, ao que parece,
muitos cristãos a quem o autor dirige a palavra estavam novamente sendo
fascinados por esse ensino. O autor ressalta a importância que os anjos
possuíam, mas eles estão longe de serem comparados com Jesus, o Filho de Deus,
que não é uma criatura angélica, mas, sim, o criador de todas as coisas e a
expressão exata do ser de Deus (1.1-4). A passagem de hebreus 2.1-4 “visa
conscientizar os leitores sobre as graves consequências do menosprezo da
mensagem de Deus, ou seja, a salvação mediada pelo Filho”.17
Os capítulos 3 e 4 são usados pelo autor
para contrastar as figuras de Moisés e Josué com a pessoa de Jesus. Nem Moisés
nem tampouco Josué conseguiram o objetivo de prover o descanso completo para o
povo de Deus. Nessa parte, o autor lembra seus leitores que, assim como os
hebreus fracassaram na caminhada, os cristãos, nos seus dias, da mesma forma,
estavam incorrendo no mesmo perigo (Hb 3.8,13,15; 4.6,11,14).
Numa seção mais extensa, que vai do
capítulo 4.14 até 10.39, a carta explora o sistema sacerdotal levítico,
contrastando com o sacerdócio de Jesus, que é de uma ordem superior. Para o
autor, esse assunto não seria de fácil explicação porque os seus leitores
tornaram-se tardios para ouvir. Ao invés de agirem como adultos, terem suas
faculdades exercitadas e alimentarem-se de comida sólida, eles ainda estavam
necessitando de leite. “Esse bloco teológico se conclui com um novo trecho
exortativo (10.19-39), que acrescenta algumas informações novas: Há pessoas que
estão abandonando a comunidade (10.23-25). Como brasas que se isolam do
braseiro, vão perdendo a esperança, a fé e o amor. Ao invés de buscar na
comunidade o calor e a força para resistir, há pessoas que preferem a saída
mais fácil de renunciar à prática da fé”.18
A seção que vai do capítulo 12.1 a 13.17 é
usado pelo autor para agregar mais conteúdo exortativo. O autor está consciente
das lutas de seus irmãos, porém lembra-os de que esses sofrimentos não eram
motivo de desespero, visto que eles ainda não haviam suportado o martírio por
causa da fé que professavam. Nenhum deles havia derramado sangue por sua fé.
Era preciso atentar para o fato de que muitas provas eram permitidas por Deus.
Era uma forma de disciplina usada pelo Senhor com o propósito de que os crentes
participassem da sua santidade.
O momento, portanto, não era de voltar
atrás, mas, pelo contrário, de sair fora do arraial para que, juntamente com
Cristo, levassem seu vitupério. Era a igreja sendo igreja fora dos seus
portões.
A Supremacia
de Cristo
Nenhum comentário:
Postar um comentário