quinta-feira, 19 de maio de 2016

LIÇÃO 8: ISRAEL NO PLANO DA REDENÇÃO






                                                                                 

   A Graça na Terra Santa


102 | Maravilhosa Graça
Romanos 9.1-5 Em Cristo digo a verdade, não minto (dando-me testemunho a minha consciência no Espírito Santo): tenho grande tristeza e contínua dor no meu coração. Porque eu mesmo poderia desejar ser separado de Cristo, por amor de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne; que são israelitas, dos quais é a adoção de filhos, e a glória, e os concertos, e a lei, e o culto, e as promessas; dos quais são os pais, e dos quais é Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém!

O Amor tudo Sofre... “Porque eu mesmo poderia desejar ser separado de Cristo, por amor de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne” (9.3). A fama que o apóstolo tinha de ser alguém que pregava contra as tradições judaicas chegou aos lugares mais remotos. Paulo teve que esclarecer algumas das suas posições com respeito à lei de Moisés para não transparecer que ele era contra a mesma. Ele explicou que o problema não estava na lei, que era de origem divina, mas naqueles que buscavam justificação por meio dela.
 Outra coisa precisa ser ainda esclarecida : Paulo não era um antissemita . Ele não renegou seu antigo povo. Aqui ele mostra que não só amava seu povo como também sofria pela situação espiritual na qual se encontravam seus compatriotas. Não era um mal ser judeu ; pelo contrário , constituía-se um grande privilégio já que foi a eles que Deus confiou seus oráculos. O que doía no coração do apóstolo era a dureza de coração que havia cegado seus irmãos, impedindo -os de enxergar o Messias que lhes fora prometido .

Romanos 9.6-13 Não que a palavra de Deus haja faltado, porque nem todos os que são de Israel são israelitas; nem por serem descendência de Abraão são todos filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência. Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas os filhos da promessa são contados como descendência. Porque a palavra da promessa é esta: Por este tempo virei, e Sara terá um filho. E não somente esta, mas também Rebeca, quando concebeu de um, de Isaque, nosso pai; porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama), foi-lhe dito a ela: O maior servirá o menor. Como está escrito: Amei Jacó e aborreci Esaú.

Duas Crianças, Dois Povos Essa seção de Romanos apresenta um dos temas mais profundos das Escrituras: a soberania de Deus e a liberdade humana. No entanto, “é importante perceber logo de início ” , destaca Joseph A . Fitzmeyer, “nesta parte de Romanos, que a perspectiva de Paulo é coletiva. Ele não está expondo a responsabilidade de indivíduos. Além disso, ele não está discutindo o problema moderno da responsabilidade dos judeus pela morte de Jesus. Nenhuma dessas questões deveria ser importada para a interpretação destes capítulos” .1

 Com esse entendimento em mente , devemos perceber que os versículos 6 a 13 apresentam o argumento de que a escolha de Deus por Israel não se baseou nas obras, mas na fé. O primeiro exemplo dado é o dos patriarcas. Nos versículos 6 a 9, temos o caso de Ismael e Isaque, ambos filhos de Abraão. Deus, na sua soberania e graça, escolheu Isaque e seus descendentes para a realização de seus propósitos. Prevendo que alguém pudesse objetar que a rejeição de Ismael seria totalmente justificável por não ser ele filho de Abraão e Sara, o apóstolo apresenta outro exemplo — Esaú e Jacó .2 Ambos eram filhos de Isaque, todavia Deus, na sua soberania, escolhera Jacó e rejeitara a Esaú. Essa escolha, que não foi uma escolha para a salvação, foi feita quando eles ainda eram crianças para que prevalecesse a eleição pela graça e não pelas obras.

Eleição Corporativa

No versículo 11 do capítulo 9 de Romanos, como foi mostrado no capítulo 7 deste livro , o apóstolo usa pela primeira vez a palavra eleição . Essa palavra, como foi mostrado anteriormente, é eklogé. Esse termo aparece sete vezes no Novo Testamento grego , sendo quatro delas na seção que vai do capítulo 9 ao 11 de Romanos.3 É , portanto , apropriado tratar do seu uso aqui. Nesse contexto, ela é definida como sendo o propósito de Deus, em Cristo , para salvar a humanidade.4 As outras referências são Atos 9 .15 , 1 Tessalonicenses 1.4 e 2 Pedro 2.10. Á luz do contexto dessas passagens, que nas epístolas são usadas em referência à igreja , fica bastante evidente que essa palavra possui um sentido corporativo .5 Como foi demonstrado , esse sentido coletivo é claramente percebido quando observamos que Paulo interpreta as figuras de Jacó e Esaú em Romanos 9 à luz de Malaquias 1.2-4. 

Nessa última passagem , Edom , outro nome de Esaú, é usado com o referência a um povo, os edomitas, e não ao in divíduo Esaú. Dale Moody destaca que “em Malaquias, Jacó e Esaú não são indivíduos, mas grupos, como claramente indica a identificação de Esaú com Edom (M l 1.4). Jacó e Esaú há muito tempo estavam mortos como indivíduos, de forma que isto é o que Dodd chamou de ‘um todo corporativo ’. Da mesma forma Jacó é tomado no seu sentido coletivo , o povo de Israel, e não a pessoa de Jacó ” .6 Argumento semelhante é apresentado pelo expositor bíblico Haro ld L. Willmington . Willmington destaca que esse exemplo “não se refere aos dois meninos, mas às nações que eles fundaram , a saber Israel e Edom ! Essa citação não se encontra em Gênesis, mas em Malaquias 1 .2-5. O profeta Obadias nos diz, claramente, por que Deus odiou a Edom ” .7

 A crença no determinismo tem levado alguns a acreditarem que Romanos 9 afirma a soberania divina e nega o livre-arbítrio .8 Para esses intérpretes, essa passagem ensina que Deus escolhe arbitrariam ente algumas pessoas e da mesma forma pretere outras. Como já foi demonstrado , esse entendimento não reflete uma boa exegese do texto . O escritor Roger Olson , conceituado teólogo e historiador da igreja, destaca que essa interpretação equivocada sobre o capítulo 9 de Romanos “jamais foi ouvida antes de Agostinho , e isso no século V. Toda apatrística grega interpretava Romanos 9 de maneira diferente” .9 Olson ainda observa com muita propriedade que “uma interpretação alternativa perfeitamente sensata diz que a passagem de Romanos 9 não está se referindo a indivíduos ou à salvação pessoal, mas a grupos e ao serviço. Deus é soberano em escolher Israel e então a igreja gentia para que cumpram seus respectivos papéis em seu plano de redenção ” .1
A meu ver, há ainda outro efeito colateral produzido pela crença na eleição incondicional. Ela afirma que uma vez que uma pessoa foi salva continuará salva para sempre. Para se manter de pé, esse ensino precisa atribuir um novo sentido a determinados ensinos das Escrituras. É o caso, por exemplo, do ensino bíblico sobre a “apostasia” , que nessa concepção teológica passa da esfera real para a hipotética.11 Esse é, por exemplo, o sentido atribuído à passagem de Hebreus 6.4-6. De acordo com esse entendimento , o texto não se refere a um acontecimento real, mas apenas hipotético ou que expressa apenas uma possibilidade. Essa é, por exemplo, a posição defendida pelo expositor bíblico 

Donald Guthrie, que acredita que Hebreu s 6.4-6 trata de um “caso hipotético ” .12 Apesar de essa exegese ser a via mais usada na interpretação desse texto, não é a mais contextualizada. Essa posição de Guthrie é negada, por exemplo, pelo batista de convicção calvinista Millard J. Erickson. Erickson procura um meio termo reconhecendo que Hebreus 6.4-6 realmente admite a possibilidade da queda na fé .13 Para o expositor William Lane, essas pessoas [H b 6.4-6] haviam testemunhado “o fato de que a salvação era a realidade inquestionável em suas vidas” .14 Um dos mais conceituados eruditos em Novo Testamento , I. Howard Marshall, conclui afirmando que: “Um estudo das descrições o ferecidas aqui em uma série de quatro particípios (aoristo grego) sugere de modo conclusivo que um a experiência genuína está sendo descrita” .15

Romanos 9.14-33 Que diremos, pois? Que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma! Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece. Porque diz a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para em ti mostrar o meu poder e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra. Logo, pois, compadece-te de quem quer e endurece a quem quer. Dir-me-ás, então: Por que se queixa ele ainda? Porquanto, quem resiste à sua vontade? Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura, a coisa formada dirá ao que o formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição, para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? Como também diz em Oseias: Chamarei meu povo ao que não era meu povo; e amada, à que não era amada. E sucederá que no lugar em que lhes foi dito: Vós não sois meu povo, aí serão chamados filhos do Deus vivo. Também Isaías clamava acerca de Israel: Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo. Porque o Senhor executará a sua palavra sobre a terra, completando-a e abreviando-a. E como antes disse Isaías: Se o Senhor dos Exércitos nos não deixara descendência, teríamos sido feitos como Sodoma e seríamos semelhantes a Gomorra. Que diremos, pois? Que os gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram a justiça? Sim, mas a justiça que é pela fé. Mas Israel, que buscava a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. Por quê? Porque não foi pela fé, mas como que pelas obras da lei. Tropeçaram na pedra de tropeço, como está escrito: Eis que eu ponho em Sião uma pedra de tropeço e uma rocha de escândalo; e todo aquele que crer nela não será confundido.



Coração de Pedra

Nos versículos 14 a 3 3 , Paulo cita mais exemplos que ilustram como a graça de Deus se manifesta dentro do seu propósito soberano. Primeiramente temos o exemplo de Israel e o Faraó do Egito. A graça amoleceu a servidão de Israel ao mesmo tempo em que endureceu o coração de faraó. O sol que derrete o gelo é o mesmo que endurece o concreto. A lição trazida aqui por Paulo, observam os intérpretes da Bíblia, é que “da mesma forma com o a palavra de Deus endureceu Faraó quando ele resistiu, ela endureceu os de Israel que não atenderam quando foram chamados (9.7; cf. SI 95.7,8; H b 3.7,15; 4.7). A resposta à questão da justiça de D eus é que D eu s é não ap en as justo: ele é misericordioso e justo ” .16

Dizer que Deus “ endureceu ” a Faraó , não permitindo que o governante egípcio não tivesse nenhuma escolha nesse processo , não reflete o argumento do texto. Esse texto não está falando no destino eterno das pessoas, mas da manifestação da soberania e graça de Deus na concretização de seu propósito. O comentarista Josep h A . Fitzmeyer comentand o a expressão “ endurece a quem quer” (Rm 9 .1 8 ), destaca que: “No AT, o endurecimento do coração de faraó é, às vezes, atribuído a Deus (Ex 4 .2 1 ; 7.3; 9.12) e, outras vezes ao próprio faraó (Êx 7.14; 8 .11 ,15 ,28 ). O ‘endurecimento do coração ’ por Deus é uma forma protológica de expressar a reação divina à obstinação humana persistente contra Ele — uma selagem de uma situação que Ele não criou. Não é, portanto , resultado de alguma decisão arbitrária o um esmo planejada por parte de Deus, mas o modo como o AT expressa o reconhecimento divino de uma situação que emana de uma criatura que rejeita o convite de Deus” .17 Essa passagem , portanto , não serve como fundamento para que se afirme que Deus, no seu grande amor, escolheu alguns para o céu enquanto preteriu a outros para o inferno .18
 Norman Geisler, apologista norte-americano , comenta Romano s 9.17 quando responde à pergunta: Como poderia Faraó estar livre se Deus endureceu o coração dele? Geisler responde:

Primeiro, em sua onisciência , Deus sabia de antemão exatamente como o Faraó iria agir, e usou isso para realizar os seus propósitos. Deus prescreveu os meios da ação livre, porém teimosa, de Faraó, bem como o fim da libertação de Israel. Em Êxodo 3.19, Deus disse a Moisés: “ Eu sei, porém , que o rei do Egito não vos deixará ir, nem ainda por uma mão forte” . Faraó rejeitou o pedido de Moisés e somente depois de dez pragas foi que finalmente deixou o povo ir.

Segundo, é importante notar que Faraó primeiramente endureceu o seu próprio coração. No início, quando Moisés aproximou -se de Faraó com vistas à libertação dos israelitas (Ê x 5.1), Faraó respondeu : “Quem é o Senhor, cuja voz eu ouvirei, para deixar ir Israel? Não conheço o Senhor, nem tampouco deixarei ir Israel” (Ê x 5.2). A passagem que Paulo cita (em Rm 9.17) é Êxodo 9.16, a qual, no contexto , refere-se à praga das úlceras, a sexta praga. Mas Faraó endurecera o seu coração antes de Deus afirmar o que afirmou. Somente porque Deus levantou Faraó, isso não quer dizer que Faraó não seja responsável por suas ações.

 Terceiro, Deus usa a injustiça dos homens para mostrar a sua glória. Deus ainda considera Faraó responsável, mas no processo do endurecimento do seu coração o Senhor usou Faraó para manifestar a sua grandeza e glória. Deus às vezes faz uso de atos maus para obter bons resultados. A história de José é um bom exemplo disso. José foi vendido por seus irmãos, e mais tarde tornou-se o governante do Egito. Lá ele salvou muitas vidas durante o tempo de fome. Quando mais tarde ele se revelou aos seus irmãos e os perdoou , disse-lhes: “Vós bem intentastes mal contra mim , porém Deus o tornou em bem , para fazer como se vê neste dia, para conservar em vida a um povo grande ” (Gn 50.20). Deus pode usar atos perversos para manifestar a sua glória (veja também o que é exposto sobre Êxodo 4 .21 ).19

Os Dois Vasos

 A metáfora dos dois vasos em Romanos 9.19-24 parece ensinar um determinismo radical. Mas fica apenas na aparência, pois o texto está longe disso.20 A literatura evangélica registra que nos Estados Unidos um grupo que se autointitulava batistas Presdestinarianos das Duas Sementes advogava que esse texto com provava p o r A + B que Deus havia feito um grupo para a salvação e outro para a condenação.21 Eles fizeram seguidores. Algum as observações que refutam essa exegese devem ser levadas em conta:

1. No texto de 2 T imóteo 2.20,21, Paulo usa um a analogia semelhante quando se refere a alguns tipos de vasos. Ele até usa as mesmas palavras gregas d e Romanos 9 .21 -23 , traduzidas como honroso e desonroso.22 Na passagem de 2 Timóteo 2.20,21, fica claro que esses vasos, que representam pessoas, podem se consagrar ao verdadeiro culto a Deus. A metáfora, portanto , não exclui a livre-escolha.

 2. O termo grego usado por “ preparado ” citado na expressão “ preparados para a perdição ” (Rm 9 .22 ) é katertismena. A . T. Robertson , um dos mais conceituados gramáticos de grego bíblico de todos os tempos, observa que esse verbo “é o particípio perfeito passivo de katari^o, o verbo que significa “equipar” (veja M t 4.21 e 2 Co 13.11), estado de estar preparado . Paulo não diz aqui que Deus fez o que eles fizeram . Que eles são responsáveis pode-se ver em 1 Ts 2 .1 5ss” .23 Em outras palavras, Deus não foi a causa da condição na qual se encontravam esses vasos. O tempo perfeito grego , que significa uma ação feita no passado com consequências no presente, mostra que houve um a trajetória percorrida por esses “vasos” até chegar aonde chegaram .24 Dale Moody destaca que isso indica que “no caminho da perdição, certo estágio foi alcançado ” .25 Isso significa também que Deus foi paciente e misericordioso com um povo rebelde e contumaz até que chegou o momento de executar a sua justiça. James Moffat, em sua clássica tradução do Novo Testamento , captou bem o sentido desse texto: “Que quer dizer, se Deus, embora desejoso de exibir sua ira e mostrar o seu poder, tolerou mui pacientemente os objetos da sua ira, maduros e prontos para serem destruídos?”26 O enfoque recai sobre a grande misericórdia e paciência divina.

3. O exegeta Joseph A . Fitzmeyer, ao comentar a palavra “querendo ” em Romanos 9 .22 , destaca que “ embora alguns comentarista s (Jerônimo, Tomás de Aquino, Barrett, Cranfield, Michel) entendam o particípio thelon de forma causal, ‘porque quis’, parece melhor, pelo contexto (especialmente em vista da expressão ‘com muita paciência’), entendê-lo de forma concessiva, ‘embora tenha querido’, i.e., embora sua ira pudesse tê-lo levado a tornar conhecido o seu poder, sua bondade amorosa o conteve. Deus deu a faraó tempo para que se arrependesse [,.i\ prontos para perdição: o particípio perfeito expressa o estado no qual esses “vasos” se encontram — ‘prontos’ para o monte de lixo. Este versículo expressa a incompatibilidade radical de Deus com os seres humanos rebeldes e pecaminosos. Ele contém , também , uma nuança da predestinação, e a formulação de Paulo é mais genérica do que o exemplo com o qual ele iniciou; é por isso que estas palavras foram utilizadas nas controvérsias posteriores sobre a predestinação . Entretanto , não se devería perder de vista sua perspectiva coletiva”? 1 (itálicos meus)

Romanos 10.1-21 Irmãos, o bom desejo do meu coração e a oração a Deus por Israel é para sua salvação. Porque lhes dou testemunho de que têm zelo por Deus, mas não com entendimento. Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus. Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê. Ora, Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que fizer estas coisas viverá por elas. Mas a justiça que é pela fé diz assim: Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu? (isto é, a trazer do alto a Cristo)? Ou: Quem descerá ao abismo (isto é, a tornar a trazer dentre os mortos a Cristo)? Mas que diz? A palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé, que pregamos, a saber: Se, com a tua boca, confessares ao Senhor Jesus e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo. Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação. Porque a Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será confundido. Porquanto não há diferença entre judeu e grego, porque um mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam coisas boas! Mas nem todos obedecem ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem creu na nossa pregação? De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus. Mas digo: Porventura, não ouviram? Sim, por certo, pois por toda a terra saiu a voz deles, e as suas palavras até aos confins do mundo. Mas digo: Porventura, Israel não o soube? Primeiramente, diz Moisés: Eu vos meterei em ciúmes com aqueles que não são povo, com gente insensata vos provocarei à ira. E Isaías ousadamente diz: Fui achado pelos que me não buscavam, fui manifestado aos que por mim não perguntavam. Mas contra Israel diz: Todo o dia estendi as minhas mãos a um povo rebelde e contradizente.

O Eco da Palavra de Deus

Essa seção que se estende por todo o capítulo 10 de Romanos tem duas divisões principais. Na primeira delas o apóstolo desenvolve o argumento de que a rejeição de Israel se deu por conta da busca da justificação pelas obras e não pela fé. O apóstolo mostra a impossibilidade d a justificação pelos méritos da lei pela razão de que o fim da lei é Cristo (v. 4 ).28 O expositor Charles Cousar destaca o fato de o versículo 4 do capítulo 10 de Romanos estar traduzido na versão americana NRSV como o “ fim ” ou “ término ” da lei. “Paulo havia insistido que a lei é santa, justa e boa (Rm 7.12) e que testemunha acerca da justiça de Deus que é recebida pela fé (3.21). Ele tinha dito que Deus atuou na morte de Jesus Cristo para cumprir ‘o requisito da lei’ (8.4), sugerindo que a melhor  tradução é ‘meta ’ ou ‘propósito ’. 0 que Paulo está afirmando nesta leitura é que a própria lei não tem outra coisa como fundamento senão Cristo como a base da justiça para todos os que creem (1 T m 1.4)” .29

 Ao assim fazer, estavam buscando a sua própria justiça em vez de aceitarem a que lhes foi outorgada por Deus em Cristo Jesus. Eles tropeçaram na lei. O segundo argumento do apóstolo mostra que essa rejeição não se deu por falta de testem unho da parte de Deus (Rm 10.8-21). Pelo contrário, as Escrituras eram a prova documental das advertências que Deus lhes fizera no passado. Aqui os judeus tropeçaram na palavra de Deus quando se recusaram ou se fizeram de surdos para não ouvirem os ecos de sua voz.

Romanos 11.1-10 Digo, pois: porventura, rejeitou Deus o seu povo? De modo nenhum! Porque também eu sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu. Ou não sabeis o que a Escritura diz de Elias, como fala a Deus contra Israel, dizendo: Senhor, mataram os teus profetas e derribaram os teus altares; e só eu fiquei, e buscam a minha alma? Mas que lhe diz a resposta divina? Reservei para mim sete mil varões, que não dobraram os joelhos diante de Baal. Assim, pois, também agora neste tempo ficou um resto, segundo a eleição da graça. Mas, se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça. Pois quê? O que Israel buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram, e os outros foram endurecidos. Como está escrito: Deus lhes deu espírito de profundo sono; olhos para não verem e ouvidos para não ouvirem, até ao dia de hoje. E Davi diz: Torne-se-lhes a sua mesa em laço, e em armadilha, e em tropeço, por sua retribuição; escureçam-se-lhes os olhos para não verem, e encurvem-se-lhes continuamente as costas.

Deus Tem suas Reservas

 Recorrendo novamente ao método de diatribe, Paulo responde às possíveis objeções sobre a rejeição de Israel. Essa seção introduz a figura do remanescente que deu continuidade ao propósito eletivo de Deus. Se era um fato que Israel havia falhado como dissera Paulo, então com o ficariam as promessas que Deus fizera no passado a seu povo ? Elas se extinguiram ? Não havia mais nada que Deus pudesse tratar com Israel? O apóstolo mostra que a grande maioria de Israel havia rejeitado a justiça que vem da fé em Cristo, mas que essa rejeição não era total nem definitiva. E m meio a esse processo de rejeição , Deus sempre contou com um remanescente fiel a quem escolheu . Como em Romanos 9.11, aqui a eleição (gr. eklogé) se deu inteiramente pela graça e não pelas obras (R m 11.5,7). A graça sempre tem suas reservas. Paulo cita seu próprio exemplo e do profeta Elias como remanescente que foram fiéis a Deus.

Romanos 11.11-24 Digo, pois: porventura, tropeçaram, para que caíssem? De modo nenhum! Mas, pela sua queda, veio a salvação aos gentios, para os incitar à emulação. E, se a sua queda é a riqueza do mundo, e a sua diminuição, a riqueza dos gentios, quanto mais a sua plenitude! Porque convosco falo, gentios, que, enquanto for apóstolo dos gentios, glorificarei o meu ministério; para ver se de alguma maneira posso incitar à emulação os da minha carne e salvar alguns deles. Porque, se a sua: rejeição é a reconciliação do mundo, qual será a sua admissão, senão a vida dentre os mortos? E, se as primícias são santas, também a massa o é; se a raiz é santa, também os ramos o são. E se alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo zambujeiro, foste enxertado em lugar deles e feito participante da raiz e da seiva da oliveira, não te glories contra os ramos; e, se contra eles te gloriares, não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti. Dirás, pois: Os ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Está bem! Pela sua incredulidade foram quebrados, e tu estás em pé pela fé; então, não te ensoberbeças, mas teme. Porque, se Deus não poupou os ramos naturais, teme que te não poupe a ti também. Considera, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a benignidade de Deus, se permaneceres na sua benignidade; de outra maneira, também tu serás cortado. E também eles, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar. Porque, se tu foste cortado do natural zambujeiro e, contra a natureza, enxertado na boa oliveira, quanto mais esses, que são naturais, serão enxertados na sua própria oliveira!

A Oliveira e seu Enxerto

 O expositor bíblico Lawrence Richards destaca que “a rejeição judaica da justiça pela fé em Deus abriu espaço para um número muito grande de gentios a serem enxertados na árvore enraizada na antiga aliança de Deus com Abraão. Esta não deveria ser objeto de orgulho gentio, mas de advertência. Nunca abandone o princípio de salvação pela graça através da fé” .30 A exortação de Paulo nessa porção das Escrituras é clara — os judeus, ilustrado s p elo exemplo da oliveira verdadeira, em razão de quererem cumprir a justiça divina através das obras, foram rejeitados. A oliveira não foi arrancada, apenas teve seus galhos quebrados e no lugar destes enxertados os gentios. Nenhum gentio podia se gloriar desse fato porque, assim com o os ramos naturais foram quebrados, o enxerto da mesma forma poderia ser arrancado. Era, portanto, motivo de temor e não de exaltação.

Romanos 11.25-36 Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que haja a plenitude dos gentios haja entrado. E, assim, todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades. E este será o meu concerto com eles, quando eu tirar os seus pecados. Assim que, quanto ao evangelho, são inimigos por causa de vós; mas, quanto à eleição, amados por causa dos pais. Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento. Porque assim como vós também, antigamente, fostes desobedientes a Deus, mas, agora, alcançastes misericórdia pela desobediência deles, assim também estes, agora, foram desobedientes, para também alcançarem misericórdia pela misericórdia a vós demonstrada. Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia. O profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Porque quem compreendeu o intento do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele, e por ele, e para ele são todas as coisas; glória, pois, e ele eternamente. Amém!

A Graça Restauradora

Qualquer exegese que não contempla uma restauração em massa que acontecerá com Israel no futuro contradiz a argumentação de Paulo em Romanos 11.25-36. O escritor O. P almer  Robertson gastou 200 páginas de seu livro argumentando que “todo o Israel” citado por Paulo não significa “o todo Israel” . Explico. Palmer foi minucioso na sua exegese a fim de provar que o projeto de Deus não é como Israel nação, mas com o Israel cristão. Em outras palavras, o projeto de Deus não é com o Israel étnico, mas somente com o Israel eleito. No seu entendimento , o “ todo Israel” que Paulo citou não se refere à nação judaica, mas a “todos os judeus eleito s em Cristo ” . A referência seria, portanto , aos judeus messiânicos que receberam a Cristo como Salvador. A exegese de Palmer entra em rota de colisão com outros intérpretes de renome, como por exemplo, Leon Morris. A meu ver, o argumento de Palmer se torna frágil quando o faz depender quase que inteiramente da tradução da conjunção grega kai e do pronome outos em Romanos 11.26. Segundo ele, a tradução correta dessa expressão é “dessa forma”, e não “e então ” como traz a maioria das versões da Bíblia. Fundamentado n essa convicção , ele completa: “ a conclusão a que se pode legitimamente chegar é a de que “todo Israel” refere-se a todos os judeu s eleitos. Todos do verdadeiro Israel de Deus, o eleito do Pai, serão salvos” .31

A teoria d e O. Palmer Roberts n é bem construída , mas não se enquadra naquilo que Paulo procurou mostrar entre os capítulos 9 e 11 de Romanos. A palavra “todos” é entendida pela grande maioria dos intérpretes como sendo uma referência clara ao Israel étnico. E desse Israel étnico que Paulo vem falando como sendo amados por causa dos patriarcas e não apenas a “todos” os israelitas eleitos (R m 11.28). A exegese de Palmer ignora a expectativa escatológica claramente mostrada pelo apóstolo nesse capítulo . No entendimento do apóstolo , o Messias, que fora rejeitado , voltará novamente como Libertador, e quando ele voltar “apartará de Jacó as impiedade/ ’ (Rm 11.26). Esse versículo só tem sentido dentro de um contexto escatológico futuro. Esse fato é claramente demonstrado por Paulo quando ele afirma que a vinda do Messias Libertador acontecerá  somente após haver se cumprido a plenitude dos gentios. “Até que haja entrado a plenitude dos gentios” (R m 11.25). Isso evidentemente ainda não aconteceu. Ao contrário da tese de Palmer, em que “todo Israel” se limita apenas aos judeus messiânicos, o “todo Israel” de Paulo é um a referência ao Israel étnico que se voltará em massa quando o Messias voltar.32

A graça que alcançou os gentios, a graça que alcançou os judeus messiânicos, é a mesma graça que reservou um futuro glorioso para Israel. “Orai pela paz de Jerusalém ! Prosperarão aqueles que te amam ” (SI 122.6).
102 | Maravilhosa G raça


A soberania de Deus na salvação

Romanos 9-11 É um dos textos mais complexos de toda a Bíblia. Charles Erdman é da opinião que estes três capítulos são possivelmente os mais difíceis de interpretar de tudo quanto Paulo jamais escreveu.772 Tom Wright diz que Romanos é um livro que contém oito capítulos de “evangelho” no começo, quatro de “aplicação” no final e, no meio, três capítulos de puro enigma. Ele chegou a considerar Romanos um livro tão cheio de problemas quanto um ouriço de espinhos/73 Alguns eruditos pensam que Paulo está apenas fazendo um parêntese e retornará ao fio da meada no capítulo 12, com a aplicação da doutrina ensinada até o capítulo 8.774
Outros estudiosos, entretanto, defendem que esse é o ponto culminante da carta, em que Paulo detalhará a soberania.

Geoffrey Wilson afirma categoricamente que a capitulação neste ponto [soberania de Deus] marcaria o abandono da fé no Deus vivo.776 Stendahl alega que Romanos 9—11 constitui o cerne e o clímax da epístola e a única função dos capítulos restantes seria a de introdução e conclusão.777 Para Calvino, esta porção das Escrituras é uma defesa da verdadeira identidade do Cristo e da credibilidade das promessas de Deus.
John Stott diz que, em Romanos 9—11, Paulo aborda a posição singular do povo judeu no propósito de Deus. Aquilo que Paulo já havia aludido em uma série de passagens anteriores (1.16; 2.9; 2.17; 3.1; 3.29; 4.1; 5.20; 6.14; 7.1; 8.2), agora ele passa a elaborar.779 David Stern afirma que os capítulos 9-11 de Romanos contêm a discussão mais importante e completa do Novo Testamento sobre o povo judeu.780 Cada capítulo aborda um aspecto diferente da relação de Deus com Israel, o passado, o presente e o futuro:

1) o fracasso de Israel —o propósito da eleição de Deus (9.1-33);
2) a culpa de Israel - o desapontamento de Deus com a desobediência do seu povo (10.1-21);
3) o futuro de Israel — o desígnio eterno de Deus (11.1-32); 4) doxologia — a sabedoria e a generosidade de Deus (11.33-36).781
Para William Hendriksen, tanto no passado como no presente muitos eruditos defendem como propósito de Romanos 9-11 mostrar que na reta final da história humana todos os judeus sobre a terra serão salvos. Essa salvação alcançaria a nação toda, numa abrangente recuperação escatológica dos judeus incrédulos.782
Charles Erdman diz que Romanos 9—11 deve ser lido como uma unidade. Os três capítulos tratam tanto da soberania de Deus como da responsabilidade humana, formando uma trilogia: o capítulo 9 olha para o passado e mostra a soberana eleição divina; o capítulo 10 vê o presente e aborda a responsabilidade humana; já o capítulo 11 vislumbra o futuro e trata da bênção universal. O primeiro focaliza a “eleição”, o segundo a “rejeição”, o terceiro a “restauração”; a trilogia abre as cortinas com um brado de angústia de Paulo, mas se encerra com uma doxologia de louvor a Deus, cujos juízos são insondáveis, cujos caminhos

Analisaremos agora o capítulo 9. Cinco verdades devem ser aqui destacadas.

A tristeza de Paulo (9: 1-5)

Paulo passa da exultação do final do capítulo 8 para a profunda tristeza do começo do capítulo 9. William Greathouse diz que o grito de alegria de Paulo se tornou um soluço de compaixão. 84 Na vida do cristão, algumas vezes, coexistem a alegria e a tristeza; a exultação e a dor.
Muitos judeus olhavam para Paulo como um consumado inimigo. Sentiam-se traídos com sua conversão à fé cristã e o conseqüente abandono das fileiras do judaísmo. Por esta causa, os judeus compatriotas foram seus perseguidores mais implacáveis. Eles não acreditavam que Paulo os amasse. Então, o apóstolo reforça seu argumento:
“Digo a verdade em Cristo, não minto, testemunhando comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência” (9.1). Paulo afirma seu amor pelos israelitas, evocando o testemunho de Cristo e do Espírito Santo. Sua confissão de amor por seus compatrícios não é uma retórica vazia nem uma verborragia hipócrita, dissimulada e fingida, mas uma realidade insofismável. Seu coração está rasgado, seus olhos estão molhados e sua alma está gemendo.
William Hendriksen diz que a tristeza de Paulo é grande em sua intensidade, profunda em sua natureza e incessante

Qual é a razão da tristeza de Paulo?

Em primeiro lugar, a incredulidade dos judeus (9.1-3). Os judeus, irmãos e compatriotas de Paulo segundo a carne, ainda estavam aferrados à sua tradição religiosa, sem Cristo e sem salvação. Isso provoca no apóstolo grande tristeza e incessante dor. Paulo é um teólogo que escreve sobre a soberania de Deus não como frio acadêmico, mas como homem de coração quebrado e com os olhos molhados de lágrimas. Embora faça uma análise meticulosa do propósito soberano de Deus na salvação, revela profundo amor por seu povo e grande pesar por vê-lo ainda endurecido ao evangelho da graça.

Como apóstolo dos gentios, Paulo anseia ardentemente ver a salvação dos judeus, seus compatriotas segundo a carne. A tristeza profunda e a dor contínua do veterano apóstolo o levam a fazer uma ousada confissão. Ele desejou ser apartado de Cristo para que seus irmãos fossem reconciliados com Cristo. Desejou ser maldito para que seus compatriotas fossem benditos. Desejou ir ao inferno para que os seus irmãos fossem ao céu. Warren Wiersbe diz que Paulo se mostrou disposto a ficar fora do céu por amor aos salvos e a ir ao inferno por amor aos perdidos (9.3).786 A palavra grega anathema significa “separado de Cristo e destinado à destruição, ou seja, abandonado à perdição”.787 Paulo estava pronto a ir às últimas conseqüências para ver seus compatrícios salvos.

O sentimento de Paulo nos lembra de Judá que, como substituto de seu irmão Benjamim, disse: “Agora, pois, fique teu servo em lugar do moço por servo de meu senhor” (Gn 44.33). Recorda-nos as palavras emocionantes de Moisés ao interceder pelo povo: “Agora, pois, perdoa-lhe o pecado; ou, se não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste” (Êx 32.32). Voltamos nossa memória para o agonizante clamor de Davi: “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho!” (2Sm 18.33). Porém, acima de tudo, ele fixa nossa atenção naquele que realmente se fez o substituto de seu povo (3.24,25;8,32)

Citando Lutero, John Stott declara: “Parece inacreditável que um homem se disponha a ser amaldiçoado a fim de que os malditos possam se salvar”.789 E óbvio que essa é uma impossibilidade absoluta, já que o mesmo Paulo acabara de ensinar que nada nem ninguém pode separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus (8.38,39). No entanto, se isso fosse possível, estaria disposto a sacrificar-se para ver sacrificar-se para ver seus irmãos salvos.

Em segundo lugar, os privilégios dos judeus (9.4,5). A tristeza de Paulo se agravava não apenas pelo fato de seus irmãos permanecerem incrédulos, mas também por permanecerem incrédulos a despeito de tantos e benditos privilégios. Que insignes privilégios eram esses?

a. A descendência (9.4). Eles eram descentes de Jacó. O título “israelitas” chama à atenção sua descendência de Jacó, cujo nome foi mudado para “Israel”, em comemoração à sua fé vitoriosa, que não permitiu que Deus o deixasse

b. A adoção (9.4). A adoção se refere à sua eleição teocrática, pela qual eles foram separados das nações pagãs para se tornarem os primogênitos de Deus (Êx 4.22), sua possessão particular (Êx 19.5), seu filho (Os 11.1), seu

c. A glória (9.4). A “glória” era o sinal visível da presença de Deus com eles. William Hendriksen diz que a glória é a manifestação visível do Deus invisível.790 John Murray esclarece que essa glória deve ser reputada como referência àquela que se manifestou e permaneceu no monte Sinai (Êx 24.16,17), a glória que cobriu e encheu o Tabernáculo (Êx 40.34-38), a glória que aparecia sobre o propiciatório, no Santo dos Santos (Lv 16.2), a glória do Senhor que encheu o templo (lRs 8.10,11). Essa glória era o sinal da presença de Deus entre os israelitas, garantindo-lhes que Deus habitava e viera ter comunhão com eles (Ex 29.42-

d. As alianças (9.4). As “alianças” estão no plural porque o pacto de Deus foi progressivamente revelado. Mesmo que haja somente um pacto da graça, em essência idêntico em ambas as dispensações, ele foi revelado plenamente no decurso do tempo.792 John Murray tem razão quando diz que devemos considerar o plural como denotação das alianças abraâmica, mosaica e davídica.793

e. A legislação (9.4). Deus favoreceu de modo especial Israel, pela dádiva da lei. Deus deu preceitos e instruções a seu povo para guiá-lo no caminho da santidade.

f. O culto (9.4). O culto aqui fala da adoração do verdadeiro Deus de modo verdadeiro. William Hendriksen diz corretamente que Romanos 9.4 se refere a muito mais que o culto no templo, ou ainda o culto público em geral. Provavelmente Paulo estava pensando no culto ou serviço verdadeiro do único Deus e na maneira pela qual tal homenagem é prestada.

g. As promessas (9.4). Essas “promessas” são aquelas relativas ao Messias, e foi pela fé nessas promessas que os santos da antiga dispensação obtiveram a vida eterna.

h. Os patriarcas (9.5). Os “patriarcas” se referem a Abraão, Isaque e Jacó, os pais da fé de quem eles descendiam e podiam orgulhar-se (Ex 3.6; Lc 20.37).

i. A descendência de Cristo, segundo a carne (9.5). A maior glória de Israel consiste no fato de Cristo, que é “sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém”, ter consentido em ser seu compatriota “segundo a carne”. Paulo afirma ambas as naturezas de Cristo: a divina e a humana. Os eruditos ao longo dos séculos têm discutido se essa doxologia se refere a Deus Pai ou a Deus Filho. Concordo com a ideia de Geoffrey Wilson de que esta é uma doxologia a Deus [Pai] anulada pelo contexto. O que torna a tristeza de Paulo tão forte é o fato de que Israel, mesmo tão favorecido por Deus, tenha fracassado em reconhecer Cristo como seu Salvador. Assim, se Paulo inserisse uma doxologia a Deus [Pai] neste ponto, ela estaria fora de lugar e a incongruência seria evidente. Entretanto, é altamente apropriado Paulo mostrar que o Cristo que os judeus rejeitaram e crucificaram é aquele que é “sobre todos, Deus bendito eternamente”.795

A eleição divina, a Palavra que não pode falhar (9.6-13)

Em face da incredulidade de muitos judeus, alguns começaram a duvidar da credibilidade da Palavra e da veracidade das promessas. Alguns escritores acreditam que Paulo escreveu a carta aos Romanos com o propósito de mostrar a solução ao dilema dos judeus: ou as promessas de Deus eram falsas, ou os judeus não podiam perder-se porque eram judeus. Ou o evangelho de Paulo era falso, ou as promessas de Deus não eram verdade.796 Paulo responde aessas objeções citando a soberana eleição divina. Destacamos aqui dois pontos:

Em primeiro lugar, a eleição não é genética, mas espiritual(9.6-9). Nem todos os descendentes físicos de Abraão são filhos espirituais de Abraão. Os verdadeiros filhos de Abraão não são os que têm o sangue de Abraão correndo nas veias, mas os que têm a fé de Abraão em seu coração. O puritano John Flavel é ainda mais claro: “Se a fé de Abraão não estiver em seus corações, de nada lhes adiantará ter o sangue de Abraão em suas veias”.797 Geoffrey Wilson está certo quando diz que a descendência natural de Abraão não é garantia de um parentesco espiritual com Abraão.798 Adolf Pohl esclarece esse ponto: “O nascimento judaico não é por natureza uma ligação com Deus. Nenhum poder salvífico lhe é inerente. Deus não se deixa enquadrar como um deus nacionalista”.799
John Stott diz que sempre houve dois tipos de “Israel”: de um lado, os que o eram por descenderem fisicamente de Israel (Jacó) e, de outro lado, os que constituíam sua descendência espiritual; e a promessa de Deus destinava-se aos últimos, os que a receberam.800 John Murray afirma que existe um “Israel” dentro do Israel étnico. Assim, não sao judeus todos os que são judeus, nem são circuncisos todos os que são da circuncisão (2.28,29). O Israel distinguido do Israel de descendência natural é o verdadeiro Israel,801 Na linguagem de Paulo, este é o Israel segundo o Espírito (G1 4.29). Desta maneira, os verdadeiros filhos de Abraão são aqueles que “também andam nas pisadas da fé que teve Abraão” (4.12). A promessa da aliança estabelecida por Deus não foi promulgada para incluir todo o Israel étnico,

Em segundo lugar, a eleição divina não é meritória,mas incondicional (9.10-13). Paulo exemplifica isso com dois exemplos da escolha divina dentro do Israel étnico: Isaque e Jacó. Tanto a escolha de Isaque em vez de Ismael quanto a de Jacó em vez de Esaú ilustram a mesma verdade fundamental do propósito de Deus conforme a eleição. Desta forma, a promessa de Deus não falhou, apenas se cumpriu no Israel espiritual dentro do Israel físico.802 Este ponto é elucidado por E E Bruce:

Abraão foi pai de um bom número de filhos, mas somente por meio de um deles, Isaque, o filho da promessa, é que a linha da promessa de Deus devia ser traçada. Isaque, por sua vez, teve dois filhos, mas somente por um deles, Jacó, é que a semente santa foi transmitida. E a escolha que Deus fez de Jacó e a omissão do seu irmão Esaú não dependeram nem um pouco da conduta ou do caráter dos irmãos gêmeos: Deus o declarara previamente - antes do nascimento deles.803

Geoffrey Wilson tem razão quando diz que não existia nenhuma tal disparidade entre Esaú e Jacó, quer de nascimento, quer de obras; ambos tinham a mesma mãe; Rebeca os concebeu no mesmo momento, e de ninguém além de nosso pai Isaque; e assim mesmo um deles é escolhido, e o outro recusado.804 Jacó não foi amado por causa de suas virtudes, nem Esaú foi rejeitado por causa de seus deméritos. A escolha divina foi feita antes que pudesse haver qualquer manifestação de seus caracteres.

Tanto Esaú como Jacó mereciam repúdio, por causa do pecado de Adão, de modo que, na realidade, é mais fácil explicar a rejeição de Deus por Esaú que seu amor por Jacó (Ml 1.2). Quando todos merecem a morte, é um milagre de pura graça se alguns recebem vida. Certamente Jacó não merecia essa misericórdia mais que Esaú. No entanto, Deus soberanamente escolheu Jacó, enquanto também soberanamente deixou de lado Esaú. Cranfield tem razão quando diz que tanto “amar” como “aborrecer” devem ser entendidos como designando eleição e rejeição, respectivamente. Deus escolheu Jacó e seus descendentes para serem seu povo peculiar e deixou Esaú e Edom fora desse relacionamento.805

A eleição de Israel aqui tratada pelo apóstolo não é apenas nacional, coletiva e teocrática, como pensava Leenhardt, mas pessoal.806 Presto apoio ao que diz John Murray: “Nem todos os que são da nação eleita de Israel são eleitos. Há uma distinção entre Israel e o verdadeiro Israel, entre os filhos e os filhos verdadeiros, entre os descendentes e os verdadeiros descendentes. Precisamos distinguir entre os eleitos de Israel e a nação eleita de Israel”.807

A misericórdia divina, uma decisão de sua livre e soberana escolha (9.14-18)

Alguns opositores insinuavam que o ensino de Paulo acerca da soberania de Deus na salvação tornava Deus injusto por conceder a uns a sua misericórdia e ignorar outros, aplicando a eles sua santa ira. Paulo responde a esses

Em primeiro lugar, a misericórdia divina nao é merecimento humano (9.14-16). Paulo defende a justiça de Deus proclamando sua misericórdia, mostrando que aqueles que acusam Deus de cometer injustiça estão rotundamente equivocados, uma vez que, quando se trata de salvar pecadores, Deus não se baseia em justiça, mas em misericórdia.Deus não deve misericórdia a nenhum homem. As palavras divinas ditas a Moisés revelam misericórdia (9.15), enquanto as dirigidas a Faraó apontam para o seu poder julgador (9.17). Deus é glorificado tanto em sua misericórdia como escolha (9.14-18).
Como todos não merecem nada além de ira, ninguém pode reivindicar a misericórdia como direito. Assim, Deus não é injusto quando deixa que alguns recebam a justa recompensa por seus atos. Pois, embora ele deva punir o pecado, não está sob nenhuma obrigação de exercer misericórdia. Não há base justa para se reclamar de Deus. “Não me é lícito fazer o que quero do que é meu?”
A eleição de Deus não provém da vontade ou do esforço de Jacó, nem de homem algum, isto é, não vem de seus bons desejos ou ações, suas boas inclinações e obras, nem da previsão destas coisas; vem puramente da misericórdia e

Em segundo lugar, dar ao homem o que seus pecados merecem nao é arbitrariedade divina (9.17). A escolha de alguns para a vida eterna inevitavelmente implica a rejeição de outros, e isto se confirma pelo exemplo de Faraó (Ex 9.16).810 As mesmas Escrituras que anunciam misericórdia a Moisés (9.15) anunciam o poder de juízo a Faraó (9.17). Com respeito à salvação, Deus deu a Moisés o que ele não merecia e, quanto ao juízo, Deus deu a Faraó o que ele merecia. Nisso não há injustiça da parte de Deus, pois ele ignora alguns enquanto concede sua graça a outros. Ele tem o direito de fazer isso porque não deve sua graça a nenhum homem. John Stott está coberto de razão quando diz que, se há algo de surpreendente nisso tudo, não é que uns sejam salvos e outros não, mas que pelo menos alguém se salve; afinal de contas, perante Deus, nenhum de nós merece coisa alguma a não ser o juízo. Quer recebamos o que merecíamos (ou seja, juízo), quer recebamos o que não merecíamos (isto é, misericórdia), em nenhum dos casos Deus estará sendo injusto. Se, portanto, alguém se perder, a culpa é sua; mas se alguém for salvo, o crédito é de Deus.

Em terceiro lugar, Deus endurece os endurecidos e dá a eles o que merecem (9.18). Deus endurece os endurecidos. Jamais haverá o caso de um indivíduo desejoso de ir a Cristo mesmo sendo rejeitado. Os réprobos são aqueles que deliberadamente rejeitam a graça. Por isso, a doutrina de rejeição é a contrapartida da doutrina da eleição, pois a eleição de alguns implica inevitavelmente a rejeição de outros (Mt 11.25,26; lPe 2.8; Jd 4). As duas doutrinas permanecem em pé ou caem juntas.812 Louis Berkhof define com clareza a doutrina da rejeição: “A reprovação pode definir-se como aquele decreto eterno de Deus, por meio do qual ele determina passar por alto a alguns homens com a operação de sua graça especial e castigá-los por seus pecados para manifestar assim sua justiça”.813 A causa eficiente da salvação é a graça, mas a causa eficiente

William Hendriksen está certo quando diz: “Ainda que o pecado seja de fato a causa meritória da reprovação, a fé não é a causa meritória da eleição”.814 O espantoso não é o fato de Deus condenar o pecador por sua justiça, mas de Deus salvá-lo por sua graça. As Confissões Reformadas (Confissão Belga, Catecismo de Heidelberg, Confissão Helvética e Confissão de Westminster e Catecismos Breve e Maior) são unânimes em ensinar tanto a eleição pela graça como a reprovação dos impenitentes.815 Concordo com William Hendriksen quando ele diz que os nossos credos procedem da posição infralapsariana, segundo a qual as pessoas destinadas à glória foram escolhidas do estado de pecado e destruição no qual estavam submersas; e as destinadas à perdição foram, por decreto divino, deixadasnesse estado.816 Assim, o homem entra no céu inteiramente pela graça e vai para o inferno inteiramente por causa do seu pecado.
Leon Morris complementa: “Nem aqui, nem em nenhum lugar, se vê que Deus endurece alguém que já nao tenha endurecido a si mesmo”.Sl7 Está meridianamente claro nas Escrituras que Faraó endureceu seu coração contra Deus e reiteradas vezes recusou arrepender-se (Ex 7.13,14,22; 8.15,19,32; 9.7,17,27,34; 10.3,16; 11.9; 13.15; 14.5). Consequentemente, o gesto de Deus ao endurecê-lo foi um ato de juízo, abandonando-o a própria obstinação (Êx 4.21; 7.3; 9.12; 10.1,20,27; 11.10; 14.4,8,17), da mesma forma que a ira de Deus contra os ímpios se expressa em “entregá-los” à própria depravação(1.24,26,28).818 Nessa mesma linha de pensamento, Leenhardt diz que o endurecimento é uma reação de Deus à dureza do coração humano. Deus confirma e sela uma situação que não foi ele quem criou; o endurecimento é um juízo de Deus sobre o pecado, e não uma decisão arbitrária de Deus em relação a um indivíduo com vistas a excluí-lo da salvação e da condenação.814

A queixa humana, uma atitude insolente contra Deus ( 9: 19-29)

Paulo trata agora de cinco verdades importantes:

Em primeiro lugar, Deus tem o direito de fazer o que lhe apraz com suas criaturas (9.19-21). Deus é o criador, e nós somos criaturas. Deus é santo, e nós somos pecadores. Deus é soberano, e nós somos limitados. Deus é o oleiro, e nós somos o barro. Queixar-se de Deus é o cúmulo da petulância, o máximo da arrogância. Assim como o barro não pode querer colocar-se no lugar do oleiro nem questioná-lo,também nao podemos colocar-nos no lugar de Deus nem pôr em xeque seu direito absoluto e inalienável de dispor das suas criaturas como lhe apraz.
John Stott argumenta que Deus tem pleno direito de lidar com a humanidade caída conforme queira, seja de acordo com sua ira ou sua misericórdia. Deus não é apenas o criador, é também o governador moral do universo. Em lugar algum sugere-se que Deus teria o direito de “criar seres pecadores a fim de puni-los”, mas que ele tem o direito de “lidar com os pecadores conforme ele queira”, perdoando-os

Existe uma justa e natural diferença entre a vontade preceptiva de Deus e sua vontade determinadora. Era da vontade preceptiva de Deus que os judeus não crucificassem o Senhor Jesus Cristo. Eles agiram dessa forma, contrariamente ao mandamento divino, e eram portanto culpados; apesar disso, era da vontade determinadora de Deus que o Salvador fosse crucificado, pois os judeus e os soldados romanos fizeram apenas o que “sua mão e seu conselho de antemão determinaram que fosse feito” (At 2.23). Embora a traição de Judas contra Cristo estivesse preordenada desde a eternidade como o meio de efetuar a redenção, foi Judas, e não Deus, quem traiu a Cristo. As causas históricas secundárias não são eliminadas pela causalidade divina, mas antes se tornam certas. A vontade preceptiva de Deus é a regra de conduta para nós, ou seja, sua vontade revelada nas Escrituras, enquanto a vontade determinadora é o plano de operações para si mesmo, ou seja, sua vontade secreta.821

Em segundo lugar, Deus tem o controle da vida do homem,e nao o homem da vida de Deus (9.20,21). Paulo usa a figura do oleiro e do barro para ilustrar a autoridade de Deus sobre suas criaturas (Is 29.15,16; 64.8,9; Jr 18.1-6). William Hendriksen escreve:

Se até mesmo um oleiro tem direito, da mesma massa de barro, de fazer um vaso para honra e outro para desonra, então com certeza Deus, nosso Criador, tem direito, da mesma massa de seres humanos que por sua própria culpa precipitou-se no poço de miséria, eleger alguns para a vida eterna e permitir que os demais permaneçam no abismo da degradação.!í”

A autoridade de Deus sobre a criatura é maior que a do oleiro sobre o barro. O oleiro nao faz seu barro; mas tanto o barro quanto o oleiro foram feitos por Deus.823 Vivemos numa geração homocêntrica e antropolátrica, que busca sofregamente substituir o criador pela criatura. O homem besuntado de tola soberba quer destronar a Deus e ascender a seu trono. Aquele que não passa de pó e cinza quer arvorar-se contra o Criador e colocá-lo no banco dos réus para julgá-lo. E Deus, contudo, quem está no controle de todas as coisas, e não o homem. Não é o homem quem manipula a Deus; é Deus quem molda o homem como o oleiro faz com o barro.

Em terceiro lugar, Deus é glorificado tanto na salvação dos eleitos quanto na condenação dos réprobos (9.22,23). Os vasos de ira sao os impenitentes, aqueles que se endureceram e foram endurecidos, aqueles que rejeitaram e foram rejeitados, aqueles a quem Deus suportou com paciência e em quem manifestou o poder do seu juízo.
Os vasos de misericórida são aqueles a quem Deus escolheu por sua graça para sobre eles derramar sua misericórdia e dar-lhes a riqueza da sua glória. John Murray é absolutamente oportuno ao alertar para o fato de que na ira divina não existe malícia, perversidade, vingança, rancor ou amargura profanos. O tipo de ira assim caracterizada é condenada nas Escrituras, e seria uma blasfêmia atribuí-la

Warren Wiersbe destaca que o termo “preparados” em Romanos 9.22 não dá a entender que Deus tornou Faraó um “vaso de ira”. Esse verbo é o que os gramáticos gregos chamam de voz média e indica uma ação reflexiva. Assim, a frase deve ser traduzida por “prepararam a si mesmos para a perdição”. Deus prepara os homens para a glória (9.23), mas os pecadores se preparam para o julgamento.82S John Murray defende que é o próprio Deus quem prepara os vasos de ira para a perdição, porém a perdição imposta aos vasos de ira é algo para o que sua anterior condição os torna adequados. Há uma correspondência exata entre o que eles foram na vida presente e a perdição à qual estão destinados. Assim, os vasos de ira capacitam a si mesmos para a perdição; são os agentes do mérito que resulta em perdição. No entanto, somente Deus prepara para a glória.826

Em quarto lugar, Deus por sua graça nos dá o que não merecemos (9.24-26). A graça não é concedida por critério étnico, cultural ou religioso, pois Deus chama seus eleitos não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios (9.24). Mesmo vivendo sem Deus no mundo, ele nos tornou seu povo. Mesmo sendo inimigos de Deus, ele nos fez amados (9.25). Mesmo vivendo sem esperança e sem Deus no mundo, mortos nos nossos delitos e pecados, Deus nos transformou em seus filhos, membros de sua bendita família (9.26). Concordo com Cranfield quando ele diz que a presença dos gentios na igreja é o sinal e o penhor de que a esfera de rejeição de Ismael, Esaú, Faraó e dos próprios judeus incrédulos não está finalmente excluída da misericórdia de Deus.827

Em quinto lugar, Deus escolhe por sua graça para asalvação um remanescente fiel (9.27-29). A eleição da graça é para o remanescente. A salvação não é endereçada a todos os filhos de sangue de Abraão, mas aos filhos da promessa; não aos que são israelitas por nascimento, mas aos que são crentes pelo novo nascimento. Stott escreve: “Apenas um remanescente seria salvo, o Israel dentro de Israel (9.6). Semelhantemente, conforme o versículo 29, em meio à total destruição de Sodoma e Gomorra, somente alguns seriam poupados - ou melhor, apenas Ló e suas duas e suas duas filhas”.828

Solano Portela, ilustre escritor evangélico presbiteriano, faz uma importante síntese acerca da doutrina da eleição, que passo aqui a mencionar. Essa gloriosa doutrina foi ensinada por Jesus (Jo 5.21; 6.65; 10.27; 15.16), explanada por Paulo (Rm 9.1-16; Ef 1.4,5-11), registrada por João, Lucas e outros (Jo 1.12,13; At 13.48), aceita pelos patriarcas da igreja, por exemplo Policarpo, Irineu e Eusébio. Foi, porém, contestada pelos ramos heréticos da igreja, dos quais o maior expoente nos primeiros séculos foi Pelágio, defensor do livre-arbítrio irrestrito, em oposição a Agostinho, que defendia e enaltecia a soberania de Deus em todas as esferas, principalmente na salvação de almas. Foi esquecida pela igreja católica, na medida em que sua formação se deu entrelaçada ao Estado, após a regência do imperador Constantino. Este esquecimento foi paralelo ao de outras doutrinas cardeais da Bíblia, sufocadas e suplantadas pelas tradições e conveniências da igreja, concretizando-se no humanismo pragmático de Tomás de Aquino. Reapareceu em todos os movimentos pré-Reforma que desabrocharam na Idade Média, sendo uma constante, paralelamente às outras doutrinas chaves da Bíblia, entreos valdenses (seguidores de Waldo), os hussitas (seguidores de João Huss) os lolardos (seguidores de Wycliff). Lutero a reviveu na Reforma do século 16, que, despertando para as doutrinas fundamentais que haviam sido mumificadas pela igreja católica, a defende e a proclama, principalmente em seu livro De servo arbitrio (A prisão do arbítrio), escrito em resposta a Erasmo de Roterdã. Constante em todos os movimentos pós-Reforma, por exemplo nos escritos e tratados de Melanchton, Zuínglio e João Knox, teve seus ensinamentos sistematizados por Calvino, que reapresenta e organiza a posição de Paulo e de Agostinho em seu tratado Institutas da religião cristã e em outros livros e comentários bíblicos, fundamentando a posição da igreja protestante contra os arminianos. Nessa ocasião, sofre ataques apenas de Jacobus Armínius e seus seguidores, que assumiram a posição de Pelágio, levando ao posicionamento contrário, oficial, conhecido como os Cânones de Dort (Dordrecht) - o qual resume a doutrina reformada sobre a soberania de Deus na salvação, refletindo igualmente a interpretação bíblica dessas doutrinas contidas no Catecismo de Heidelberg e na Confissão de Fé Belga. Constituiu-se no posicionamento oficial de quase todas as denominações que se afirmaram após a Reforma.s29

A justificação pela fé, o único meio de salvação (9.30-33)

John Stott vê nesse último parágrafo de Romanos 9 três verdades importantes sobre a justificação: começa com uma descrição, continua com uma explicação e termina com uma confirmação.830

Em primeiro lugar, uma descrição (9.30,31). Paulo afirma que os judeus buscaram a justificação pelos méritos das obras, mediante a observância da lei, e não alcançaram essa justiça, ao passo que os gentios que não a buscavam, encontram-na, ou seja, a justiça que decorre da fé.

Em segundo lugar, uma explicação (9.32,33a). Depois de descrever como os gentios encontraram a justificação pela fé e os judeus não alcançaram a justificação pelas obras, Paulo oferece uma explicação importante. A justiça que os judeus buscavam não decorria da fé, mas das obras. Assim, eles tropeçaram em Cristo e desprezaram seu sacrifício. Cristo tornou-se para eles pedra de tropeço e rocha de escândalo. Citando Charles Hodge, Geoffrey Wilson faz um solene alerta: “Que nenhum homem pense que o erro doutrinário é apenas um pequeno mal. Nenhum caminho que conduz para a perdição já se encontrou mais cheio de gente do que o da falsa doutrina. O erro é um escudo para a consciência;

Em terceiro lugar, uma confirmação (9.33b). Paulo conclui sua argumentação confirmando a essência da doutrina da justificação: “... aquele que nela [rocha de escândalo] crê não será confundido” (9.33b). Os judeus buscaram a justificação pelas obras e foram confundidos, mas os que se voltam das obras para Cristo não serão confundidos. Os judeus, que buscavam a justiça nunca a alcançaram; os gentios, que não a buscavam, dela se apossaram.

O Cristo crucificado era “escândalo” para os judeus (lCo 1.23). Eles tropeçaram na pedra de tropeço (9.33). O verbo grego prosekopsan, “tropeçou”, não significa “tropeçar por descuido”, mas “ficar aborrecido com”. Para os judeus, a cruz do Messias era um “escândalo” que os irritava e os levava à indignação.832 A grande questão é: Por que as pessoas tropeçam na cruz? Porque ela corrói os alicerces da nossa justiça própria. Pois se a justiça vem pela lei, Cristo morreu em vão (G1 2.21). Só há duas atitudes em relação a Jesus: ele é pedra de esquina ou pedra de tropeço; é o rochedo da nossa salvação ou a rocha de escândalo. Israel fracassou em reconhecer Cristo como seu Salvador. Enquanto confiasse nas obras, Israel não poderia abraçar a Cristo. Tinha de ser um ou outro. Não havia como ser ambos.833

John Stott tem razão quando diz que só existem duas possibilidades: uma é colocar nossa confiança em Cristo, fazer dele o alicerce de nossa vida e construir sobre esse fundamento. A outra é esfolar as canelas na pedra, tropeçar e cair.834 Um encontro com Jesus, o grande divisor da humanidade, não pode ser evitado. Aqueles que não encontrarem em Cristo sua rocha de refúgio se arruinarão ao tropeçar na pedra de tropeço (Jo 16.9).835


Por : Hernandes D. Lopes


Nenhum comentário:

Postar um comentário