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Graça e o Problema da Culpa
Romanos
5.1-4
Sendo,
pois, justificados pela fé, temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo;
pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes; e
nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também
nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência; e a
paciência, a experiência; e a experiência, a esperança.
Um Olhar em duas Direções “Sendo, pois, justificados pela
fé... ” (5.1a). Há um consenso entre os comentaristas que a seção que começa no
capítulo cinco de Romanos é uma transição entre Romanos 1.18 — 4.25 e Romanos
5.1 — 8.39. Ela é, portanto ,o elo que liga o que vem antes o que vem depois. Retrospectivamente, Romanos
5.1 mostra o fato do que seja a justificação em Cristo Jesus. Por outro lado ,
olhando prospectivamente, Romanos 5.1 também enxerga aquilo que vem como
resultado dessa justificação . É um olhar para a frente. Stanley Clark destaca
que “ a diferença de opinião a respeito de se associar o capítulo 5 com os
capítulos anteriores(3 .2 1 — 4 .2 5 ) ou depois (6.1— 8.39) sugere que seu
papel é transitório ; isto é, espec ialmente verdadeiro para os primeiros 11
versos. Em alguns aspectos, Romanos 5 olha para trás, para a gloriosa verdade
da justificação do homem pela fé. No entanto , os conceitos vertidos têm mais
em comum com 6 .1 — 8 .39 com 3 .21 — 4 .25 . O tema da seção inteira(5.1—
8.39) que é ‘justificou a nova vida do homem ’” .
Temos Paz! “ .. temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus
Cristo ” (5.1b). O efeito imediato da justificação é a paz com Deus. Os
manuscritos gregos pertencentes ao texto crítico do Novo Testam ento trazem a
palavra “tenhamos” em lugar de “temos” . Todavia, os eruditos em Novo
Testamento observam que a evidência interna do contexto dessa passagem exige o
sentido presente do verbo. Nesse caso, a tradução “temos” é preferível.
A paz com Deus é, portanto, uma realidade presente na vida
do crente. Ela é a coroação ou resultado imediato da justificação. Não é algo
que vamos ter somente no futuro, mas é algo que o crente já desfruta agora.
Toda a argumentação de Paulo aponta na direção do aqui e agora na vida do
crente.
Andrew Murray, antigo expositor bíblico, comenta: “A paz com Deus é uma
bênção coordenada à justificação, que se realiza sob circunstâncias de condenação
e de sujeição à ira de Deus; e a justificação contempla nossa aceitação diante
de Deus, como justos. E o pano de fundo é a nossa alienação diante de Deus; a
paz com Deus contempla nossa restauração ao favor e à luz do rosto divino. O
fato de que a paz com Deus recebeu a preeminência dentre as bênçãos
provenientes da justificação é coerente com o status que a justificação nos
assegura. ‘Paz com Deus’ denota relacionamento com Deus. Não se trata apenas de
serenidade e tranquilidade de nossas mentes e corações; mas refere-se ao estado
de paz que flui da reconciliação (w . 10,11) e reflete-se, primeiramente, sobre
nossa alienação de Deus e nossa restauração ao favor divino. A paz da mente e
do coração procedem da ‘paz com Deus’, sendo o reflexo em nossa consciência do
relacionamento estabelecido pela justificação ” .
A Porta da Graça! ‘pelo qual também temos entrada pela fé a
esta graça, na qual estamos firmes; e nos gloriamos na esperança da glória de
Deus” (5.2).
A graça de Deus é o coração da Carta aos Romanos. Tudo gira
em torno dela. O expositor bíblico William Barclay, perito em grego neo
testamentário , captou muito bem o sentido desse texto no o riginal. Aquio
quadro pintado por Paulo mostra a grande porta que a justificação pela fé nos
abriu .
Quando essa porta se abre e entram os por ela, encontramo -nos com a
graça . Não como julgamento , recriminação ou condenação , mas com a gloriosa
gra ça de Deus. Nos últimos anos tem havido um verdadeiro desp ertar da graça .
Mas é preciso olhar com cuidado para esse despertamento . Nem tudo que se passa
por graça tem realmente graça. Na verdade, há uma graça sendo pregada e ensinada
por aí que não tem graça alguma! A graça que justifica o pecado em vez do
pecador, observ ou Dietrich Bonhoeffer, é uma graça barata . A graça de Deus é
justificadora e perdoadora, mas também é responsabilizadora.
"... e nos gloriamos na esperança da glória de Deus”
(5.2). Os comentaristas Sanday e Headlam destacam que “é a glória da presença
divina (Shekinah) que é comunicada aos homens (parcialmente aqui, mas) em plena
medida, quando ele entrar por completo na sua presença; então o homem por inteiro
será transfigurad o por Ele” . O apóstolo via aqui, com o destacou o expositor
bíblico Frédéric L. Godet, o elevado sentimento de segurança pela alegria
antecipada do nosso triunfo . Essa esperança, portanto , tem uma dimensão
escatológica. Os crentes se regozijam pela esperança de um futuro que, embora
ainda não desfrutado em toda a sua plenitude aqui, mas que já está construído
por Deus.
"... nos gloriamos nas tribulações” (5.3). A imagem que
temos quando lemos essas palavras de Paulo nos dá a impressão de que ele parece
subir degraus com seu argumento. Primeiramente ele fala da graça como uma
grande porta aberta que nos conduz até a presença da majestade divina. A nossa
caminhada até lá é um andar movido pela esperança. Mas nesse caminho existem
pedras! Enfrentamo lutas, angústias, tribulações. Mas não é motivo para
desânimo , pois isso é parte natural desse caminhar. O sofrimento ou
tribulações são usados por Deus para
moldar nossa vida. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento
destaca que o termo tblipsesin, traduzido aqui como “tribulação ” , quer dizer
pressão? Nada disso serv e de motivo para o desânimo , nem mesmo as pressões,
porque elas conduzem à perseverança.
"... a tribulação produz a paciência” (5.3). A
tribulação produz a paciência. “Nunca poderíamos desenvolver ‘paciência’ se
nossas vidas estiv essem isentas de problemas” , destaca William Mc donald .
“... e a paciência, a experiência; e a experiência, a
esperança” (5.4). Paulo chega agora ao estágio em que o cristão , provado pela fornalha
da vida, cresceu em maturidade. Agora ele tem experiência nessa caminhada. Essa
experiência lhe dá a certez a de que a sua jornada é alicerçada na esperança da
vida do Reino. Não é uma esp erança que olha o vazio, mas uma esperança
escatológica, eterna, que se plenifica em Deus.
Romanos 5.5-11
E a esperança não traz confusão, porquanto o
amor de Deus está derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi
dado. Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios.
Porque apenas alguém morrerá por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém
ouse morrer. Mas Deus prova o seu amor para conosco em que Cristo morreu por
nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo
seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque, se nós, sendo inimigos,
fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já
reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E não somente isto, mas também nos
gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a
reconciliação.
Ninguém nunca Fez isso! A nossa esperança, observa o
apóstolo Paulo, não pode ser confundida porque se fundamenta na certeza. A c
erteza que vem com o amor de Deus que é derramado em nosso coração pelo
Espírito Santo. Passamos então a experimentar o grande amor de Deus que o levou
justificar ímpios pecadores. O teólogo suíço Karl Barth assim se expressou
sobre essa passagem : “ Gloriamo -nos, pois, na esperança, porque ela não está
fundamentada em ação de nosso espírito de criaturas, mas no Espírito Santo que
nos foi outorg ado , mediante o derra mamento do amor de Deus em nossos
corações. O Espírito Santo é a obra de Deus, na fé; é o poder criador e
redentor do Reino de Deus que está próximo e que, pela fé, tange o mundo dos
homens e o faz ressoar com o o cristal às vibrações do diapasão. O Espírito
Santo é o eterno ‘Sim ’ da fé que, vista do lado humano , apenas pode ser
descrita com o negação e vácuo ; ele é o milagre inicial e criativo desta fé. O
Espírito Santo é igual a Deus e por ele Deus tributa justiça ao que crer” .
“Mas Deus prova o seu amorpara conosco em que Cristo morreu
por nós, sendo nós ainda pecadores” (5.8). Martinho Lutero (1 4 8 3 -1 5 4 6 ),
reformador alemão, colocou em destaque o amor de Deus pelos pecadores quando
resumiu o capítulo 5 em seu prefácio da Carta aos Romanos. “No quinto capítulo
, ele fala dos frutos e das obras da fé, quais sejam : paz, alegria, amor a Deus
e a todos, além de segurança, confiança, ânimo e esp erança em tristeza e
sofrimento. Pois, onde a fé for verdadeira, tudo isso resulta do bem
superabundante que D eus nos demonstra em C risto : de tê-lo feito morrer por
nós antes mesmo de lho podermos pedir quando ainda éramos inimigos. Temos,
portanto , que a fé justifica sem quaisquer obras e, mesm o assim , não sucede
daí que não se deveria fazer boa obra, e sim , que as obras justas não ficam
ausentes; destas, porém , os santos por nada saberem [19] inventam para si
mesmos obras próprias, que não contêm nem paz, nem alegria, nem segurança, nem
amor, nem esperança, nem porfia, tampouco qualquer tipo de obra e fé cristã
direta” .
Romanos 5.12-21
Pelo que, como por um homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens,
por isso que todos pecaram. Porque até à lei estava o pecado no mundo, mas o
pecado não é imputado não havendo lei. No entanto, a morte reinou desde Adão
até Moisés, até sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de
Adão, o qual é a figura daquele que havia de vir. Mas não é assim o dom
gratuito como a ofensa; porque, se, pela ofensa de um, morreram muitos, muito
mais a graça de Deus e o dom pela graça, que é de um só homem, Jesus Cristo,
abundou sobre muitos. E não foi assim o dom como a ofensa, por um só que pecou;
porque o juízo veio de uma só ofensa, na verdade, para condenação, mas o dom
gratuito veio de muitas ofensas para justificação. Porque, se, pela ofensa de
um só, a morte reinou por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça
e do dom da justiça reinarão em vida por um só, Jesus Cristo. Pois assim como
por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim
também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para
justificação de vida. Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos
foram feitos pecadores, assim, pela obediência de um, muitos serão feitos
justos. Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado
abundou, superabundou a graça; para que, assim como o pecado reinou na morte,
também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo,
nosso Senhor.
A Culpa não Foi só de Adão
“Pelo que, como p or
um homem entrou 0 pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim tamhém a morte
passou a todos os homens, por isso que todos pecaram” (5.12).
Esta mos diante de um dos textos que centrais na doutrina da
justificação pela fé. Todavia, um dos mais controvertidos dessa carta. Como outras
passagens de Romanos, essa Escritura está su jeita a calorosos debates. Há pelo
menos uma meia dú ia de interpretações sobre essa porção da Escritura; todavia,
o debate em torno desse texto não é novo. Em parte , esse debate tem sido
motivado pela disputa em torno da expressã o grega eph’hoipantes hemarton, que
aparec e no final do versículo 12 do
capítulo 5 de Romanos.
Como é de se esperar, as versões bíblicas não são unânimes
na tradução dessa passagem . Porém , as controvérsias começaram quando
Agostinho (35 4-430 d .C .), bispo de Hipona, que não era versado em grego
bíblico , seguiu a versão latina “in quo”, traduzindo erradamente a preposição
grega epb’hoi (porque) como sentido de “em quem”.u A sentença grega “porquanto
todos pecaram ” , ou “porque todos pecaram ” , no texto de Agostinho ganhou o sentido
apenas de “em quem todos pecaram”. Isso
significa que todos os homens estão ligados seminalmente ao seu antepassado
Adão . Essa crença do bispo de Hipona conduziu -o a acreditar que “os homens
estavam maculados pelo pecado original, que lhes foi transmitido de geração em
geração , e que por isso não mereciam ser salvos” . E sse fato, segundo
Agostinho , levou Deus a arbitrar a salvação para alguns e a condenação para outros.
Na teologia do bispo de Hipona, a faculdade humana do
livre-arbítrio também foi afetada. Ele não negou que o homem possuísse
livre-arbítrio depois d a Queda. Pelo contrário, até mesmo achou que se tratava
de um b em necessário. T odavia, p o r cau sa do p ecad o original, ele
acreditava que o homem ficou incapacitado de escolher aquilo que é bom . Nesse
aspecto, o mal moral devia-se ao livre-arbítrio humano. Agostinho confirma sua
concepção radical do cativeiro do livre-arbítrio quando escreve: “Quando o
homem pecou por seu próprio
livre-arbítrio, nesse caso, tendo o pecado sido vitorioso sobre ele, a liberdade
da sua vontade foi perdida”. Em outra obra, o Livre-Arbítrio, Agostinho ,
escreveu : “Mas quanto a esse mesmo livre-arbítrio , o qual estamos convencidos
de ter o poder de no s levar a pecar, pergunto-m e se aquele que nos criou fez
bem de no-lo ter dado. Na verdade, parece-me que não pecaríamos se estivéssem
os privados dele” .
A argumentação de Agostinho , como foi demonstrado , ficou
comprometida quando se sabe que a exegese feita por ele partiu deu ma tradução
equivocada do texto de Romanos. O expositor Giuseppe Barbaglio comenta que “ a
versão da Vulgata — ‘no qual (Adão) todos peca ra m ’ — na qual, por exemplo ,
S. Agostinho se apoiou , aduzindo uma prova fácil demais da doutrina do pecado
original, deve ser excluída, porque é errada” . Por sua vez, o teólogo Millard
J. Erickson destaca que Agostinho entendia que “a oração final, no versículo
12, no sentido de que nós estávamos realmente “em Adão ” e, portanto , o pecado
de Adão também era nosso. Mas com o sua interpretação baseou-se numa tradução
inadequada, precisamos analisar melhor a oração gramatical. Devemos perguntar o
que significa “todos os homens pecaram ” . Não significa, evidentemente, a
condenação de uns para o céu e outros para o inferno , nem tampouco a supressão
do livre-arbítrio humano . Erickson destaca, por exemplo , que o Senhor Jesus
não considerou como condenados aqueles que ainda não tinham atingido a idade da
capacidade moral. “Há vários indicadores nas Escrituras de que as pessoas não são moralmente
responsáveis antes de certo ponto , o que às vezes chamamos de ‘idade da
responsabilidade’ (Mt 18.3; 19.14; 2 Sm 12.23; Is 7.15; Jn 4 .1 1 )” . E conclui
que fica “o fato evidente de que, antes d e determinado momento na vida , não
existe responsabilida de mor l, pois não há consciência do certo e do errado ”
. Agostinho , portanto , criou um conceito de depravação no pecado que vai
muito além daquele que é mostrado na Escritura . Uma exegese mais fiel ao texto
confirma a corrupção do pecado e a consequente natureza pecaminosa humana;
todavia, não da forma extremada como ensinou Agostinho .
Uma compreensão adequada do texto de Romanos 5.12 nos conduz
a juntar unidade -universalidade . Giuseppe Barbaglio comenta com muita
precisão que “não se trata, porém , de um esquema mecânico : a solidariedade
que está na base não tem mão única; não envolve, fatal necessariamente, todos os homens na esfera de
ação de um só. Paulo, de fato , se dissociada concepção típica do mitognóstico
, que via a humanidade como uma massa de vítimas inconscientes de um trágico
evento originário .
Ele introduz no esquema um decisivo eleme to de liberdade e
de responsabilidade, afirmando que o influxo de um sobre todos é condicionado
pela adesão destes. Portanto , o destino humano é requerido , escolhido . No
versículo 12, de fato, à causalidade de Adão ele acrescenta a decisão negadv a
de todos os homens: ‘por causa de um só homem o pecado entrou no mundo ...
porque todos pecaram. A humanidade se fez solidaria com seu cabeça ao pecar. O
apóstolo não está muito distante de um significativo texto judaico, que chega a
dizer: ‘Se o primeiro Adão , pecou e trouxe a morte para todos os que ainda não
existiam , todos os que dele nasceram , todavia, prepararam para a própria alma
os suplícios futuros; cada um escolheu as glórias futuras... Porque Adão não
foi a causa única, sozinho ; em relação a nós todos, cada um é, para si mesmo,
Adão. Mas, diferentemente da teologia judaica, ele acentua um fator subjetivo,
atribuindo à lei divina um papel ativo na proliferação dos pecados’ (cf. v. 2 0
)” .
A ideia de uma culpa apenas compulsória, que não leva em
conta as liberdades humanas, com o cria Agostinho , deve ser rejeitada. O
expositor Adolf Pohlcon firma esse entendimento quando diz: “A amplitude do poder
do pecado e da morte soma-se sua profundidade. Nossa escravização também é nutrida
pelo próprio pecado cometido em atos: porque todos pecaram (Rrn 2 .1 2 ; 3 .2 3
). Em últim a análise, a miséria da humanidade consiste em sua culpa. Sem este
adendo de fundamentação , nossas condições de vida seriam entendidas como uma
fatalidade compulsória. Porém , trata-se de história pessoal, na qual as
condições jamais servem de desculp a para o próprio fracasso (Rm 1.21). Também
fora do Paraíso continua em vigor que: ‘a ti cumpre dominá-lo (o pecado )!’ (Gn
4.7). Ainda que não tenhamos de nos responsabilizar pelo fato de estarmos no
mundo, temos de fazê-lo em relação aos nossos pecados de fato ” .
Em uma bela e longa exposição sobre o pecado, a culpa e a
liberdade de escolha , o exposito r Millard J. E rickson , concl i: “ Em
Romanos 5, o paralelismo que Paulo traça entre Adão e Cristo em termos do
relacionamento deles conosco é impressionante . Uma declaração semelhante é
vista em 1 Coríntios 15.22: ‘Pois, assim como em Adão todos morrem , do mesmo
modo em Cristo todos serão vivificados’. Ele afirma que, de forma paralela, o
que os dois fizeram tem influênc ia sobre nós (assim como o pecado de Adão leva
à morte, o ato de justiça de Cristo conduz à vida ). Que paralelo é esse? Se a
condenação e a culpa de Adão nos são atribuídas sem que tenhamos alguma escolha
consciente do ato que ele praticou , a mesma lógica será necessariamen te
válida para a atribuição da justiça de Cristo e de sua obra de redenção . Mas
será que sua morte nos justifica simplesmente por causa de sua identificação com
a humanidade por meio da encarnação , sem depender da aceitação pessoal e
consciente de sua obra? E será que a graça de Cristo é a tribuída ato dos o s
seres humanos assim como pecado de Adão é igualmente a tribuído a todos? A
resposta mais comum dos evangélicos é negativa; há muitos indícios da
existência de duas categorias de pessoa s: as perdidas e as salvas, e de que somente
a decisão de aceitar a obra de Cristo pode to rná -la eficaz em nossa vida
[...] todos nós participamos do pecado de Adão e, portanto , recebemos tanto a
sua natureza corrupta após a Queda quanto a culpa e a condenação vinculadas a
seu pecado . No entanto ,na questão da culpa, assim como na atribuição da
justiça de Cristo, é preciso haver uma decisão voluntária e consciente de nossa
parte. Enquanto isso não ocorre, existe apenas uma atribuição condicional de
culpa . Portanto , não há condenação antes da idade da responsabilidade ” .
Evitando os Extremos
Quando se afirma que
o homem é moralmente responsável por suas escolhas, tendo livre-arbítrio , não
devemos incorrer no erro pelagiano . Pelágio deu ênfase exagerada à responsabilidade
moral e seus resultados, tornando a santidade um mero subproduto do esforço humano
. Parte desse entendimento pelagiano originou -se da sua revolta quando leu as
Confissões de Agostinho e as achou fatalista e derrotista. Agostinho estava em
um extremo e Pelágio foi para o extrem o oposto. O erro de Pelágio, como bem
observou David Pawson , foi d esenvolver uma perspectiva demasiadamente elevada
da força de vontade humana. Dessa form a, todos podem tomar a decisão de fazer
o bem e ser justos, independentemente do concurso da graça. Ao assumir essa
posição, Pelágio negou a doutrina do pecado original (herdado) de Agostinho .
Não havia, portanto , nenhum a corrupçã o herdada nem nenhuma inclinação para o
mal. Cria que as pessoas eram inerentemente boas. Como ele negou a queda, não
havia, portanto , necessidade de expiação ou regeneração .
Lembro -me de uma história que li há algum tempo , que serve
para ilustrar o que está exposto em Romanos 5.12 e que está sendo afirmado
aqui.
Conta-se que um velho lenhador trabalhava em uma fazenda. Seu trabalho era
rachar toras de madeira para uso da fazenda. Certo dia, enquanto passeava pela
fazenda, o proprietário escutou o velho lenhador se lastimar da sorte. Ele
dizia: “Adão , Adão , você me paga ” . Vendo as lamúrias do velho lenhador, o
fazendeiro se aproximou e perg untou a razão que o estava levando a se
lamentar. Ele então disse ao patrão que Adão era o responsável por aquela
situação , pois, se não tivesse pecado, ele não estaria ali. Imediatamente o
fazendeiro mandou -o abandonar o seu machado e se dirigir para a casa na
fazenda.
Chegando ali, o fazendeiro disse: “A partir desse momento
você não precisará mais rachar lenha. Você terá novas atribuições. Seu trabalho
agora é ficar na varanda da casa fazendo o serv iço de vigilância como direito
de beber limonada na hora que quiser!” O velho lenhador foi às lágrimas. Quando
ainda se refazia de suas emoções, o fazendeiro concluiu: “Mas o senhor não pode
abrir aquela caixa fechada que está em cima do peitoril da casa” . O velho
lenhador balançou a cabeça afirmativamente. P ensando com seus botões, ele achou
suas novas atribuições um presente de Deus.
Os dias passaram e o velho lenhador se regozijava de sua
nova situação . Não estav a mais trabalhando de sol a sol, mas na sombra da
casa da fazenda. Passaram -se duas semanas e ele continuava firme em seu
propósito de obedecer ao seu patrão e não tocar na caixa secreta que estava no
peitoril da casa. Na terceira semana, veio -lhe a curiosidade de saber o que
estava dentro daquela caixa. Por que ele não poderia tocá-la? Resolveu então
tocar levemente na caixa. Foi o suficiente para observar por uma abertura que
havia algo dentro da caixa — um pequeno pedaço de papel. Todos os seus instintos
vibraram ! O que poderia estar escrito nele? Passou, então a racionalizar: Por
que ele não poderia abrir a caixa e ler o papel? O que havia de mal nisso?
Ponderou.
Na quarta semana, o velho lenhador não resistiu à tentação e
abriu a caixa! Quando retirou o pequeno papel, o seu conteúdo dizia: “Velho lenhador,
a culpa não foi só de Adão. Volte já para o campo para rachar lenha”
Sim , a culpa não foi
só de Adão. Romanos 5.12 tem um sentido solidário, em que todos nós pa
rticipamos da culpa de Adão , porque todos nós estávamos no lombo de Adão. Todos
nós também somos responsáveis individualmente por nossos pecados e pelas
escolhas que fazemos. O expositor bíblico Joseph A . Fitzmyer sublinha esse
fato quando afirma: “No versículo 12, Paulo atribui a morte a duas causas,
relacionadas entre si: a Adão e a todos os pecadores humanos” .
Comentando Romanos
5.12, o exposito r J. D. G. Dunn escreveu: “O que Paulo parece querer dizer é o
seguinte:
1) Toda humanidade compartilha uma servidão comum ao pecado
e à morte. Não se trata apenas da carnalidade natural, uma mortalidade criada.
O pecado está ligado com isso , uma não correspondência ao melhor intencionado
por Deus. A morte é o resultado de uma ruptura na criação.
2) Há dois lados nesse estado de coisas, envolvendo tanto o
pecado como um dado do tecido social da sociedade e o pecado como uma ação
imputável de responsabilidade individual” .
Alguns intérpretes
insistem na sua fidelidade à interpretação agostiniana, não aceitando o fato de
que o homem é um ser moralmente livre e que pode sim decidir-se pelo bem ou
pelo mal. A meu ver, há muita tinta gasta, sem sucesso, na tentativa de provar,
a partir de Romanos 5.12 (somados com outros tex tos bíblicos), que a crença na
solidariedade da raça na queda de Adão jogou o homem numa total depravação
pecaminosa a ponto de excluir a sua capacidade de livre-escolha. Para esses
intérpretes, o homem “morto no pecado ” não possui nenhum tipo de sensibilidade
espiritual. A afirmação de Robert D. Culver, por exemplo , no sentido de que “ as
Escrituras ensinam a ausência completa de vida espiritual nos homens decaídos”
, apenas perpetua o erro agostiniano . A tentativa de usar E fésios 2.1 com o
texto prova, com o argumento de que esse hom em está morto e não pode escolher
nada, reflete mais uma crença na tradição teológica agostiniana do que o entendimento
bíblico desse texto. Esse entendimento equivocado tem feito com que wesleyanos
e arminianos sejam acusados por Culv er de tender em a “minimizar a
incapacidade total dos irregenerados nas questões espirituais, relacionadas a
Deus, para tanto minimizando a força da linguagem bíblica sobre ela, dizendo
por exemplo que ‘mortos em [...] transgressões e pecados [E f 2.1; cf. cl 2.13]
é apenas uma figura de linguagem ’. O
homem , dizem eles, ‘ainda tem livre -arbítrio ’. Mas Paulo não está usando uma
figura” .
O argumento de Culver é mais dogmático do que ortodoxo, e
não reflete o pensamento bíblico. E impossível não enxergar u m sentido
metafórico na palavra “ morto ” quando observamos que Paulo usou desse tipo de
recurso linguístico em outros textos de suas cartas. “Levanta-te de entre os
mortos” (E f 5.14); “vejam -se como mortos para o pecado ” (Rm 6.11); “o qual
dá vida aos mortos” (Rm 4.17); “sem lei está morto o pecado ” (Rm 7.8); “nós
morremos para o pecado ” (Rm 6.2); “já morremos com Cristo” (Rm 6.8); “vós
estais mortos para a lei” (Rm 7.4). Em todas essas passagens, o apóstolo
atribuiu um sentido figurado a palavra “morto ”; então por que somente em
Efésio s 2.1 ele lhe daria um sentido literal? Parece-me uma aporia difícil de
ser superada. “Morto para o pecado ” , portanto , carrega uma carga metafórica.
Em palavras mais simples, a doutrina da natureza corrompida é bíblica, mas
afirmar que ela deixou os homens totalmente impossibilitados de escolherem o
bem ou o mal não é.
A depravação no pecado ensinada pelas Escrituras afirma sua
dimensão corporativa , sem , con tudo , negar sua dimensão moral e pessoal.
Portanto , a afirmação de Culver de que o homem não regenerado é totalmente
insensível para a realidade espiritual se ajusta mais ao pensamen to de
Agostinho do que ao pensamento de Paulo. Nesse aspecto é preciso destacar que a
expressã o “ morto espiritual” dev e ser e ntendida como “ separado de Deus” ,
e não “insensível para as realidades espirituais” . O homem , mesmo separado de
Deus, não deixou de possuir a capacidade
de escolher o bem ou o mal. Pelo contrário , ele pode sim aceitar ou resistir a
graça que lhe é oferecida. A graça , portanto , não é fatalista nem tampouco
irresistível. Um dos princípios básicos da filosofia do direito é que onde não
houver livre escolha não há também responsabilidade moral.
O segundo Adão
“Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos
os homens para condenação, assim também por um só ato dejustiça veio a graça
sobre todos os homens para a justificação de vida” (5.18). O primeiro Adão
colocou a raça nas sombras do pecado. O quadro realmente era desesperado r. Um
pecou , logo todos pecaram ! Um desobedeceu , logo todos desobedeceram . Paulo não explica com o
isso aconteceu, mas onde aconteceu — na queda do primeiro homem . Passamos a carregar
conosco a natureza adâmica, todavia sem deixarmos de ser resp onsáveis pelos
nossos atos. A queda depravou a raça, mas não lhe tirou o livre-arbítrio. Não
há responsabilidade moral sem livre escolha
O apóstolo agora mostrará que por
intermédio de um homem , Jesus Cristo , o segundo Adão , veio a graça sobre
todos os homens! Adão derrubou o homem . Por outro lado , Jesus veio levantar
esse homem caído: “Veio a graça sobre todos os homens” (5.18). E a vontade de
Deus salvar a todo s (1 Tm 2.4). Stanley Clark fez o seguinte paralelo entre o
primeiro e o segundo Adão : o pecado entrou por Adão , a vida entrou por Cristo
; a morte reinou desde Adão até Moisés, a vida reina mediante Jesu s Cristo ; a
ofensa de um alcanç u a todos, a justiça de um alcançou a todos; pela deso
bediência de um todos foram feitos pecadores, pela obediência de um muitos
serão constituídos justos” .
A Ele toda honra e toda glória.
e) As duas eras: Adão e Cristo (5.12-21).
Aprofunda certeza de que em Cristo somos membros da nova criação de
Deus é a convicção fundamental desta passagem crucial. E essencial que
comecemos onde Paulo começa. Adão é simplesmente a figura (typos,modelo)
daquele que havia de vir (14; tou mellontos, Aquele que viria - o Messias). O apóstolo
não se move de Adão a Cristo, mas sim de Cristo a Adão. Para ele, a verdade é
tão auto-evidente que ele não faz nenhum esforço para prová-la de uma forma
lógica. Devido ao seu encontro com o Cristo ressuscitado, ele sabe que “se
alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que
tudo se fez novo” (2 Co 5.17). Embora a antiga criação esteja destruída, Deus
lhe deu um novo começo em Cristo.
E ao resgate.
Esta, para Paulo, é a mais profunda certeza da vida. “A antiga ordem se
foi, e uma nova ordem já começou” (NEB). A nova era chegou até nós, e todos os
que estão em Cristo foram retirados do domínio da morte que regula a raça de
Adão. “Ele [o Pai] nos tirou da potestade das trevas e nos transportou para o
Reino do Filho do seu amor” (Cl 1.13). No seu Filho, Ele recriou a humanidade
(cf. 8.29). A partir dessa perspectiva podemos ver tudo o que apóstolo escreve
nesta seção.Entretanto, ao falar das duas eras, é necessário que evitemos
pensar simplesmente em termos de eventos com datas fixas na história. De certa
maneira, pode-se dizer que a nova era começou com a morte e ressurreição de
Jesus (em cerca de 30 d.C.). Mas, por outro lado, estamos fixando duas ordens
de existência que se sobrepõem. Todas as pesso-
as estão em Adão (por nascimento) ou em Cristo (pela fé). O ato
justificador de Deus nos remove da antiga ordem de Adão e nos coloca na “nova
criação” (a nova raça) da qual
Cristo é o Cabeça. Ao escrever assim sobre Adão e Cristo, Paulo não
pensa na humanida-
de como uma reunião de indivíduos ao acaso, mas sim como uma unidade
orgânica, um único corpo sob uma única cabeça. Esta cabeça será Cristo ou Adão.
Pelo que, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte,
assim também a morte passou a todos os homens, por isso que todos pecaram...
Assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para
justificação de vida (12,186). Um longo parênteses interrompe estas duas
frases. Nele, vários pensamentos em seqüência perturbam a mente de Paulo. E
difícil estabelecer um esquema gramatical para os versículos 13 a 18. Contudo,
toda a passagem fica clara se nos dispusermos a ouvir atentamente a Paulo e
deixar que ele fale por si mesmo. Pelo que (dia touto) refere-se, pelo menos, a
5.1-11, mas provavelmente retrocede até 1.18. Paulo começa com uma base de
comparação, como por um homem (Adão) entrou o pecado no mundo... Aqui uma nova
palavra aparece na Epístola aos Roma-nos: he hamartia, “o pecado”. Até este
ponto, Paulo tinha lidado principalmente com o problema do pecado como culpa;
agora ele apresenta a idéia do pecado como revolta. Isto está indicado pela
nova frase he hamartia, que aparece 28 vezes entre 5.12 e 8.10.245
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