Graça,
Maravilhosa Graça!
Romanos 6.1-6
Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça
seja mais abundante? De modo nenhum! Nós que estamos mortos para o pecado, como
viveremos ainda nele? Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus
Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo
batismo na morte; para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do
Pai, assim andemos nós também em novidade de vida. Porque, se fomos plantados
juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua
ressurreição; sabendo isto: que o nosso velho homem foi com ele crucificado,
para que o corpo do pecado seja desfeito, a fim de que não sirvamos mais ao
pecado.
Licença para Pecar?
“Que
diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça seja mais abundante?”
(6.1). O pregador inglês Martin Lloyd-Jones destacou que não há teste melhor
para saber se alguém está realmente pregando o verdadeiro evangelho de Cristo
do que observar sua exposição de Romanos 6. Jones destaca que há pessoas que
interpretam e entendem de maneira errada essa passagem e atribuem -lhe o
sentido que querem . Elas imaginam que se você realmente é salvo pela graça,
então não importa o que você faz. Você pode continuar pecando , tanto quanto
goste, porque pensam que tudo isso vai redundar em mais graça ainda. Dessa
forma, Romanos 6 seria uma boa maneira de verificar se uma pessoa de fato está
pregando o evangelho com autenticidade. A pregação para ser verdadeira,
sublinha Lloyd Jones, precisa expor esse mal-entendido porque se assim não o
fizer forçosamente não é o evangelho de Jesus Cristo. Essa forma privativa e
equivocada da pregação só pode ser exposta quando a doutrina da justificação
pela fé for apresentada.
O apóstolo
valia-se do método de diatribe para fazer entender a sua argumentação . O
método consistia em um diálogo comum interlocutor imaginário . Aqui ele
novamente recorre a esse método para interagir com seu interlocutor. A sua
exposição anterior poderia ter gerado mal entendidos. No capítulo 5, ele mostrou
como a graça de Deus, na pessoa bendita de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
, prevaleceu sobre a condenação do pecado . Paulo destacou que o pecado de Adão
atingiu a raça como um todo e também a cada pessoa de forma individual (R m
6.23; 5.12). Adão vendeu a raça para o pecado. Todavia, Jesus Cristo, o segundo
Adão, comprou-a para Deus. A graça prevaleceu sobre o pecado. A dedução lógica
do beneplácito da graça parecia ser: não seria melhor pecar para que a graça
seja mais abundante? O apóstolo vai responder a essa objeção comum contundente
“não ” , “de jeito nenhum ” .
“De modo nenhum! Nós que estamos mortos para o
pecado, como viveremos ainda nele? (6.2). A expressão grega me genoito (de
jeito nenhum ) mostra o grau de convicção do apóstolo a esse respeito . Não ,
não podemos nos valer da graça para validar ações pecaminosas. A razão é que
nós morremos para o pecado. T. S. Watchman Nee observou que não foi o pecado
que morreu para nós, mas nós que morremos para o pecado ! Morrer para o pecado
não significa deixar de sentir sensibilidade alguma quanto a ele, mas se
conscientizar de que ele perdeu seu domínio sobre nós. O pecado continuará
sendo pecado com toda a sua malignidade . Mas a nossa postura quanto a ele não
é mais a mesma que marcava nossas vidas antes de crermos em Jesus.
“Ou não
sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua
morte?” (6.3). O apóstolo , então, apela para o lado prático da vida cristã a
fim de ilustrar o seu pensamento. Por que não devemos continuar no pecado ?
Porque nos identificamos coma morte de Jesus por meio do batismo. Fomos, pois,
batizados na sua morte. O expositor bíblico Warren W. Wiersbe observa que o
termo grego para batismo “tem dois significados:
(1) um literal — mergulhar ou
submergir;
e (2) e um figurativo — ser
identificado .
Um exemplo
do segundo caso é 1 Coríntios 10.2: “Tendo sido batizados, assim na nuvem como
no mar, com respeito a Moisés” . A nação de Israel foi identificada com seu
líder, Moisés, quando cruzou 0 mar Vermelho ” . Wiersb e observa ainda que “ há
um consenso entre os historiadores de que a forma de batismo usada pela Igreja
Primitiva era a imersão. Os cristãos eram ‘sepultados’ na água e trazidos de
volta, retratando a morte, sepultamento e ressurreição . O batismo por imersão
(a ilustração que Paulo usa em Rm 6) retrata a identificação do cristão com
Cristo em sua morte, ressurreição e sepultamento . É um símbolo exterior de uma
experiência interior” .
"... para que, como Cristo ressuscitou
dos mortos pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida”
(6.4). Quando Cristo morreu , nós morremos junto com Ele. Essa identificação do
crente com Cristo é uma doutrina crucial na teologia paulina conforme mostra
Efésios capítulos 1 e 2. Cristo morreu , foi sepultado , todavia não ficou no
túmulo . Ele ressuscitou . Da mesma forma, o cristão , agora identificado com
Cristo, ressurgiu para uma nova vida. O apóstolo rebatia assim o pensamento
antinomiano que procuraria ver na graça de Deus um a oportunidade para
justificar e validar ações erradas.
Não há nada
mais incongruente do que um cristão nascido de novo vivendo sob o domínio do
pecado . Nos últimos anos, o nominalismo evangélico cresceu de uma forma
exponencial. Aumenta a cada dia o número de cristãos que não dão sinal algum de
que vivem em novidade de vida. Para eles, é mais confortável se ajustar ao
modelo secular de viver do que ao padrão exigido pelas Escrituras. Corrompem
-se da mesma forma que o mundo se corrompe; divorciam -se da mesma forma que o
mundo o faz. Disputam o poder da mesma forma que, políticos sem nenhum pudor,
disputam . Enfim , matam para se manterem vivos.
“Sabendo isto:
que o nosso velho homem foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado
seja desfeito, a fim de que não sirvamos mais ao pecado” (6.6). Esse texto me
faz lembrar meus dias de acadêmico no Seminário Batista. O final dos ano s 80 e
o início dos anos 90 foi um período marcado por algumas controvérsias
teológicas. Na nossa turma havia um aluno, muito dedicado , que começou a expor
algumas ideias que destoavam daquilo que estávamos aprendendo ali. Ele passou a
argumentar que o crente nascido de novo não pecava mais! Lembro -me de que um
dos seus textos favoritos usados com o prova era Romanos 6.6. Nesse texto,
argumentava, Paulo dissera que o “corpo do pecado ” havia sido destruído .
Tempos depois, ficamos sabendo que aquela interpretação fora desenvolvida
primeiramente nos Estados Unidos e posteriormente chegou aqui com o um
enlatado. Ali ela foi batizada com o nome de doutrina da “Santificação Plena” .
Essa crença afirmava que o crente debaixo da graça não peca mais. Isso
evidentemente provou uma reação em cadeia tanto por parte do corpo docente com
o discente daquela academia. Meu professor de grego e exegese bíblica produziu
um texto apologético mostrando as falhas teológicas daquela argumentação .
Como todos
os erros doutrinários, esse também se fundamentou em um erro de interpretação
da Escritura. Não é isso que Romanos 6.6 diz. Esse texto não diz que o crente
nascido de novo não peca mais. Nem tampouco esse texto está afirmando que o
pecado não mais existe porque foi destruído . O verbo grego katageo, traduzido
aqui como “destruir” , significa “tornar inefiàentê’, “impotente, A ideia é de
um rei que é destronado. Paulo, em Romanos 6.6, ao se re ferir à crucificação
do velho homem , usa esse verbo no tempo aoristo . Uma ação que aconteceu , de
forma definitiva, no tempo passado. O que o apóstolo quis dizer com isso não é
que o pecado já foi “ destruído ” ou “aniquilado ” e que, portanto , o crente
não terá mais problema com ele. A natureza pecaminosa continua ainda fazendo
parte da vida do cristão. O Senhor destronou a natureza pecaminosa (R m . 6 :6
), mas esse destronar não significa que nós não venhamos a ter problemas com a
velha natureza. Não é isso. O que o Senhor fez foi retirar o seu poder e o
domínio que ela exercia sobre nós. Sim , o pecado perdeu o seu posto de senhor
sobre nossas vidas.
O verbo
grego katargeo (destruir) no tempo aoristo , como sublinhei, significa que a
ação já foi completada de uma vez por todas. Em outras palavras, Paulo está
afirmando que, do ponto de vista de Deus, a questão em relação à antiga
natureza já foi resolvida — Ele a crucificou juntamente com Cristo. Katargeo
(destruir) é a mesma palavra usada em Hebreus 2.14, onde se diz que Cristo, por
meio de sua morte, destruiu (gr. katargeo) o Diabo. Satanás foi de fato
destruído , no sen tido de ser aniquilado ? A resposta é não, pois, o Diabo continua
existindo e tentando (1 Co 7.5, 1 Ts 3.5; 1 Pe 5 .8 ). O que Deus fez em Cristo
Jesus foi destronar, anular o poder do Diabo em relação ao cristão , isto é,
tirar o domínio que ele tinha sobre nós. O domínio de Satanás em relação ao
crente foi katargeo, isto é, anulado. O Diabo não está mais no “trono ” (foi
destronado ) de nossas vidas. No entanto , o Diabo ainda não foi “ destruído ”
, por isso o crente não deve lhe dar lugar (Ef 4 .27). Da mesma forma, o pecado
foi “destruído ” , isto é, destronado de nossas vidas. Em outras palavras, o
texto está dizendo que Cristo destronou o pecado na vida do crente, mas não diz
que ele aboliu nossa natureza pecaminosa.
Romanos
6.7-14
Porque
aquele que está morreu está justificado do pecado. Ora, se já morremos com
Cristo, cremos que também com ele viveremos; sabendo que, havendo Cristo
ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não mais terá domínio sobre ele.
Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o pecado; mas, quanto a
viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos como mortos para o
pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor. Não reine,
portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas
concupiscências; nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por
instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre
mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça. Porque o
pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo
da graça.
Mudança de Atitude
“sabendo
que, havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não mais terá
domínio sobre ele" (6.9). Os comentaristas chamam a atenção para três
verbos usados por Paulo no capítulo 6 de Romanos. O primeiro deles aparece em
6.6, que é “ saber” . “Sabendo que” (v. 6) e “ sabedores” com o um verbo
sinônimo (v. 9, ARA ). Já vimos que na mente de Deus o pecado já é um assunto
resolvido , mas isso só se torna uma realidade prática na vida do crente a
partir do momento que ele se apodera dessa verdade. E , portanto , necessário
uma mudança de atitude. Ele precisa saber, isto é, tomar consciência de que a
sua relação como pecado não deve ser m ais do jeito que sua experiência mostra,
mas do jeito que Deus revelou em sua Palavra. Sem essa mudança de mentalidade,
a batalha contra o pecado está perdida. A palavra traduzida no versículo 6 como
“ sabendo ” deriva do grego ginosko, que é o termo usado para se referir ao
conhecimento. Por outro lado, oida, que ocorre em Romanos 6.9, no grego
significa também saber, toda ia mostrando mais o seu lado metafórico . Qual é,
portanto , o primeiro passo que se deve dar na luta contra o pecado ? E saber o
que a cruz fez em relação a ele. A cruz derrotou o pecado , fez com que ele
perdesse o domínio em nossa vida. A nossa atitude agora é andar de acordo com
aquilo que a cruz exige de nós.
“Assim
também vós considerai-vos como mortos para 0 pecado, mas vivos para Deus, em
Cristo Jesus, nosso Senhor” (6.11). Em segundo lugar, Paulo ensina que o crente
deve “considerar-se ” morto para o pecado , mas vivo para Deus. O termo grego
logiomai, traduzido aqui como considerar, temo sentido também de “reconhecer” .
Esse verbo está no modo imperativo, significando que esse “ considerar” e “
reconhecer” é uma ordem . Em segundo lugar, o verbo está no tempo presente , o
que significa que deve ser uma prática habitual. E em terceiro lugar, o verbo
está na voz média , o que demonstra que é uma ação feita em prol de si mesmo .
Uma tradução mais próxima do original ficaria assim : “ Considerem como um
hábito que vocês estão mortos para o pecado , mas agora estão vivendo para Deus”
.
Mais uma vez
uma mudança de postura e atitude são exigidas do crente em Jesus. E preciso o
reconhecimento do que significa essa nova dimensão da fé na qual ele vive. Neil
Anderson demonstrou que a alta de sabermos de fato quem somos em Cristo é um
dos maiores entraves para o crescimento espiritual.
“nem
tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de
iniquidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos
membros a Deus, como instrumentos de justiça” (6.13). A p alavra-chave nesse
versículo é “oferecer” , que traduz o grego paristemi. Essa palavra era usada
com conotação militar, significando “colocar-se à disposição de alguém ” , isto
é, “ apresentar-se” . Joseph Fitzmeyer chama a atenção para a aplicação dessa
palavra no contexto bíblico. “A expressão é um termo militar, como indica
também a segunda parte do versículo. As armas da retidão aludem ao AT (Is 11.5;
5 9.17). Presume-se que os cristãos são instrumentos a serviço de Deus, não a
serviço do mal.”
Romanos
6.15-23
Pois quê? Pecaremos porque não estamos debaixo
da lei, mas debaixo da graça? De modo nenhum! Não sabeis vós que a quem vos
apresentardes por servos para lhe obedecer, sois servos daquele a quem
obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça? Mas
graças a Deus que, tendo sido servos do pecado, obedecestes de coração à forma
de doutrina a que fostes entregues. E, libertados do pecado, fostes feitos
servos da justiça. Falo como homem, pela fraqueza da vossa carne; pois que,
assim como apresentastes os vossos membros para servirem à imundícia e à
maldade para a maldade, assim apresentai agora os vossos membros para servirem
à justiça para a santificação. Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis
livres da justiça. E que fruto tínheis, então, das coisas de que agora vos
envergonhais? Porque o fim delas é a morte. Mas, agora, libertados do pecado e
feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida
eterna. Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a
vida eterna, por Cristo Jesus, nosso Senhor.
Servos da Justiça
“Mas graças a Deus que, tendo sido servos do
pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues’’
(6.17). A nova vida do cristão exige um a mudança de senhorio. Paulo aqui
agradece a Deus pela receptividade que o evangelho teve em Roma. Eles
anteriormente eram escravizados, possuíam como patrão o pecado . Todavia ,
graças à mensagem do evangelho, haviam sido libertos. Agora eles obedeciam a
uma “nova forma de doutrina’” que lhes foi entregue. E interessante observarmos
que a palavra “ forma” traduzo grego typos, que nesse contexto tem o sentido de
“patrão ” . O apóstolo via na Palavra de Deus, que lhes foi entregue, um novo
patrão. Eles não tinham mais o pecado como chefe ou patrão de suas vidas, mas a
poderosa mensagem do evangelho.
A crise da
igreja hodierna , evidentemente , possui vários fatores. Todavia, não há dúvida
de que primeiramente é uma crise teológica. E uma crise gerada por falta de
Bíblia. Há muita coisa posta nos púlpitos das igrejas, mas essas coisas não são
Bíblia. Não é a Palavra de Deus que está sendo pregada e ensinada.
Consequentemente, o resultado obtido são cristãos fracos e doentes.
“E, libertados do pecado, fostes feitos servos
da justiça” (6.18). O s cristãos romanos haviam sido libertos do pecado e
feitos servos d a justiça. A palavra “libertados” traduz o grego eleutheroó,
que é o mesmo termo usado por Jesus em João 8.36: “Se, pois, o Filho vos
libertar, verdadeiramente, sereis livre s ” . No contexto joanino , Jesus
mostra que os homens se encontravam sob a servidão do pecado. Não podiam se
autolibertar. Aqui, os romanos haviam sido s libertos desse antigo amo e
transformados agora em servo s de Deus.
“Falo como
homem, pela fraqueza da vossa carne;pois que, assim como apresentastes os
vossos membros para servirem à imundícia e à maldade para a maldade, assim
apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para a santificação
” (6.19). Stanley Clark destaca que os crentes devem apresentar seus membros à
justiça da mesma forma que anteriormente haviam se dedicado ao pecado. O fim em
vista é a santificação. A santificação é um processo iniciado por Deus e que
exige do crente corresponder àquilo que o Espírito realiza na sua vida. O
êxito, portanto, está na entrega diária que o cristão faz de suas capacidades a
Deus. E isso que Paulo lembra aos romanos — só podem os servir a um Senhor p o
r vez. Clark observa que “antes de se converterem , os leitores estavam totalmente
a serviço do pecado e não tinham qualquer obrigação no que diz respeito à
justiça (v. 20). Não significa que eles nunca haviam feito nada de bom , senão
que estavam livres no que diz respeito ao dever de fazer o que era certo. Era
uma liberdade de características muito pobres, com demonstra o apóstolo agora”
.
O apóstolo conclui que o pecado
costuma recompensar seus súditos com a morte, mas a graça os recompensa com a
vida eterna, em Cristo Jesus.
( Livro : Maravilhosa graça)
CAPÍTULO 12
O reinado da graça
(Rm 6.1-23)
Romanos
– Hernandes Dias Lopes
O apóstolo
Paulo acabou de apresentar a doutrina da identificação com Cristo. Em Adão toda
a raça caiu em pecado e miséria. Em Cristo, o segundo Adão, porém, fomos
libertados do pecado e da morte. Os que estão em Cristo, sob o reinado da
graça, foram libertados da tirania do pecado, pois onde abundou o pecado,
superabundou a graça (5.20).
Somos livres
em Cristo. Podemos desfraldar as bandeiras da nossa liberdade!
A abolição
da escravatura nos Estados Unidos da América custou alto à nação. Foi
necessária uma guerra civil. Abraão Lincoln, 16° presidente, foi assassinado. A
13a emenda da Constituição que validava a escravidão foi legalmente abolida em
18 de dezembro de 1865. No entanto, a vasta maioria dos escravos do Sul que
haviam sido legalmente libertados continuou vivendo como escravos. Um escravo
do Estado do Alabama disse: “Nada sei sobre Abraão Lincoln e sobre nossa
libertação”. Isso é trágico: uma guerra foi travada, um presidente foi
assassinado, uma emenda à Constituição passa a ser lei, homens, mulheres e
crianças antes escravos foram legalmente alforriados, todavia muitos
continuaram vivendo como escravos por causa da ignorância. Há hoje muitos
crentes vivendo como escravos. Embora Cristo, o emancipador de escravos, tenha
morrido e ressuscitado para a nossa libertação, muitos crentes ainda vivem como
cativos, sem desfrutar plena liberdade.
Muitos
crentes são ignorantes, não conhecem o que Cristo fez por eles; outros são
acomodados, acostumaram a viver como escravos; outros ainda são fracos, vivem
com medo do feitor de escravos e deixam de desfrutar sua liberdade.
Em Romanos
6.1-23, Paulo nos mostra que a doutrina da justificação desemboca na
santificação. Pela justificação fomos libertados da culpa do pecado, mas na
santificação devemos ser salvos do poder do pecado. Vencemos o pecado não sob o
regime da lei, mas sob o reinado da graça. A santificação, não menos que a
justificação, resulta da eficácia da morte de Cristo e da virtude de sua
ressurreição.
A doutrina
do reinado da graça, entretanto, levou os libertinos a distorcer o ensino de
Paulo. Eles ensinavam que a prática do pecado abre largas avenidas para uma
ação mais robusta da graça (6.1).
Assim, esses mestres do engano ensinavam que
devemos pecar a valer para que a graça seja mais abundante. Paulo reage com
firmeza a essa perversão da verdade, dizendo que o reinado da graça nos leva a
morrer para o pecado, em vez de nos incentivar a viver nele e para ele. A graça
nos livrou não apenas da culpa do pecado, mas também do seu poder. John Stott
diz corretamente que o Deus da graça não apenas perdoa pecados, mas também nos
liberta de pecar. Pois a graça, além de justificar, também santifica.
William Barclay tem toda razão ao destacar que
é terrível fazer da misericórdia de Deus uma desculpa para pecar. Seria uma
atitude vil um filho considerar-se livre para pecar apenas por saber que seu pai o perdoaria.
Romanos
6.1-23 é uma resposta àqueles que procuram transformar a graça de Deus em
libertinagem. Paulo usa dois argumentos eloqüentes para desbaratar as vãs
pretensões dos hereges: o primeiro é nossa união com Cristo por meio do batismo
(6.1-14), e o segundo, nossa servidão a Deus pela conversão (6.15-23). Há
profunda conexão entre esses dois argumentos. Em ambos, Paulo mostra as implicações
do reinado da graça.
John Stott
vê cinco pontos comuns nesses dois argumentos: primeiro, em ambos vemos a
supremacia da graça (5.20,21; 6.15); segundo, em ambos vemos a mesma relação
entre o pecado e a graça (6.1,15); terceiro, em ambos Paulo reage à questão com
a mesma indignação (6.2,15); quarto, em ambos a ignorância é apontada como base
do antinomismo (6.3,16); quinto, em ambos Paulo fala da descontinuidade radical
entre a velha e a nova vida (6.2,16).
Consideraremos
a seguir esses dois argumentos de Paulo.
Devemos viver em santidade porque
estamos unidos a Cristo pelo batismo (6:1-14).
A pergunta
que se inicia o capítulo 6 procede da ênfase dada no final do capítulo 5. Se a
graça é superabundante onde o pecado é abundante, se a multiplicação das
transgressões serve para demonstrar o esplendor da graça, então não deveríamos
pecar mais para que Deus seja ainda mais glorificado na magnificência da sua
graça? Esta pergunta retratava tanto a distorção antinomiana como a objeção dos
legalistas à doutrina da justificação pela graça, por meio da fé,independentemente
das obras.
A inferência
licenciosa é imediata e energicamente rejeitada por Paulo (6.2). O apóstolo
responde neste capítulo tanto à distorção dos antinomianos quanto à objeção dos
legalistas.569 Três verbos regem esta primeira parte da argumentação de Paulo:
saber (6.6), considerar (6.11) e oferecer(6:13).
Em primeiro lugar, devemos saber (6.1-10). A fé cristã
está fundamentada sobre o entendimento. Crer é também pensar. A ignorância da
verdade não glorifica a Deus nem nos possibilita crescimento na graça. O
segredo de uma vida santificada está na mente. Consiste em saber (6.6) e
considerar (6.11). O que devemos saber?
a. Nós morremos para o pecado (6.2). Se morremos
para o pecado, como podemos continuar vivendo nele? A morte e a vida não podem
coexistir; não podemos estar mortos e vivos ao mesmo tempo, com relação a coisa
alguma.
A graça nos
salvou do pecado, e não no pecado. O pecado é inadmissível no cristão. Os
antinomianos argumentam que o crente pode persistir no pecado, mas Paulo afirma
que o crente morreu para o pecado. Não podemos viver no pecado se estamos
mortos para ele. Assim como nós morremos pelo pecado em Adão, morremos para o
pecado m Cristo.
Concordo com
John Stott no sentido de que Paulo declara aqui não a impossibilidade literal
da prática do pecado por parte dos crentes, mas a incongruência moral
envolvidaT1 Citando Charles Hodge, Juan Schaal diz que tal é a natureza da
união do crente com Cristo, que seu viver no pecado não é só uma
inconsistência, mas também uma contradição de termos, tanto quanto falar de um
homem morto que vive ou de um homem bom que é mau. A união com Cristo, sendo a
única fonte de santidade, não pode ser a fonte do pecado.
Adolf Pohl
tem razão quando diz que, no exato momento em que a morte acontece, cai por
terra qualquer reivindicação diante do falecido. Ninguém pode exigir nada dele.
Autoridade financeira, credor ou executor penal podem buscar algo somente dos
vivos. Os mortos escapam a todo sistema de compromissos. Morrer muda
radicalmente a posição legal. Morrer é libertação. “Morremos para o pecado!”,
este é um grito de liberdade.
Quero
exemplificar esse conceito. Uma mulher no sul dos Estados Unidos da América
casou-se com um grande fazendeiro. Ela o amava e o servia com devoção. Quando
seu marido morreu, ela mandou embalsamá-lo e colocou-o sentado numa redoma de
vidro na entrada da casa. Todos os dias quando voltava para casa, saudava-o: “Olá,
John, como vai?” Depois de vários anos, resolveu fazer uma viagem à Europa. Por
lá conheceu um homem amável e casou-se com ele. Ao retornarem à América, seu
novo marido tomou um grande susto ao entrar no quintal da casa. Carregando a
noiva nos braços, chegou à porta e deu de cara com o John. “Quem é este?” A
mulher respondeu: “E John. Foi meu primeiro marido, mas é história; ele está
morto”. O novo marido abriu uma cova e sepultou o ex-marido de sua mulher. Foi
exatamente o que Cristo fez. Muitos crentes, porém, colocam o velho homem numa redoma
de vidro e o cumprimentam todos os dias, como se ele estivesse vivo. Você é
livre! Cristo já emancipou você.
b. Fomos batizados na morte de Cristo (6.3). Se o
batismo significa a união com Cristo em sua morte, então os crentes morreram,
com Cristo quando ele morreu. Conforme William Greathouse a morte na qual fomos
batizados é a morte dele, e a nossa morte está ao mesmo tempo incluída na
dele.574 Fomos introduzidos numa relação mística com o novo Adão. Estamos em
Cristo, ligados a ele. Ele é o nosso representante e cabeça. Fomos batizados em
Cristo Jesus na sua morte.
Quando ele
morreu, morremos com ele. Quando ele foi sepultado, fomos sepultados com ele.
Assim como estávamos nos lombos de Adão quando ele pecou, estávamos em Cristo
quando ele morreu. Sua morte foi a nossa morte. John Stott afirma que fomos
unidos a Cristo interiormente pela fé e exteriormente pelo batismo.
Paulo, portanto, não se refere aqui à forma do
batismo, mas a seu significado, nossa identificação com Cristo em sua morte. O
nosso batismo foi uma espécie de funeral. Nessa mesma linha de pensamento,
Charles Erdman diz que não é o modo de batismo o elemento importante nesta
referência. Paulo enfatiza não o rito ou a cerimônia, mas a proclamação e a fé
que acompanham o batismo.
De acordo
com John Stott, o argumento essencial de Paulo é que ser cristão implica uma
identificação vital com Jesus Cristo e essa união é representada por nosso
batismo, como se fosse um drama aimbólico.
c. Ressuscitamos com Cristo (6.4,5). Nossa união com Cristo não
é apenas em sua morte, mas também em sua ressurreição. Assim como ele
ressuscitou, também ressuscitamos nele para vivermos em novidade de vida. O poder
da ressurreição está em nós para vivermos uma vida de poder. O reinado da morte
pelo pecado não tem poder mais sobre nós, uma vez que morremos e ressuscitamos
com Cristo. A morte e a ressurreição de Cristo não são apenas fatos históricos
e doutrinas significativas, mas também experiências pessoais, já que através da
fé-batismo nós mesmos viemos a participar deles.578
d. Fomos crucificados com Cristo (6.6,7). Paulo volta a
enfatizar que o crente precisa ser regido pelo conhecimento. Devemos saber que
fomos crucificados com Cristo. Alguns pontos aqui precisam ser esclarecidos:
- Quem é o
velho homem que fo i crucificado com Cristo? Certamente é a totalidade de quem
éramos antes da nossa conversão. Não se trata apenas da nossa velha natureza,
pois esta ainda está presente em nós, mesmo depois da conversão.
Não se trata
da velha natureza não regenerada, mas da vida anterior não regenerada. Não é
meu “eu interior”, mas meu “eu anterior”. John Murray corretamente diz que “o
nosso velho homem” é o homem não regenerado, em sua inteireza, em contraste com
o novo homem, regenerado em sua inteireza.579 William Hendriksen acrescenta que
o velho homem é a pessoa como éramos outrora, nossa natureza humana considerada
à parte da graça.
Romanos 6.6
não tem o mesmo sentido de Gálatas 5.24.
O nosso
velho homem já foi crucificado com Cristo. Isso é um fato consumado, e o agente
da ação é o próprio Deus.
No entanto,
crucificar a carne com suas paixões refere-se a algo que deve ser feito sempre,
e o agente da ação somos nós mesmos. John Stott diz que a primeira morte é
legal, um morrer à penalidade do pecado; a segunda é uma morte moral, um morrer
ao poder do pecado. A primeira faz parte do passado, é única e não pode ser
repetida; a segunda pertence ao presente e se repete continuamente. Morri para
o pecado (em Cristo) uma vez, definitivamente; morro para o eu (como Cristo)
diariamente.1’81
- O que
significa o corpo do pecado que deve ser destruído?
Certamente
Paulo não está se referindo ao corpo humano, pois este não é em si mesmo
pecaminoso, como pensavam os gnósticos. Trata-se da natureza pecaminosa que se
expressa por meio do corpo (6.12), ou seja, o corpo condicionado e governado
pelo pecado.582 Trata-se do nosso velho eu, isto é, nossa natureza adâmica. O
corpo do pecado é o corpo dominado pelo pecado, o corpo enquanto condicionado e
controlado pelo pecado, já que o pecado usa o nosso corpo para os próprios
propósitos malignos, pervertendo nossos instintos naturais e transformando a
sonolência em preguiça, a fome em glutonaria, e o desejo sexual em luxúria.
- O que
significa ser destruído? O verbo grego katargeo não significa aqui eliminar ou
erradicar, mas derrotar, incapacitar e destituir de poder.584 Destruir aqui não
é desaparecer
(Hb 2.14),
mas ser vencido. Não significa ser aniquilado, mas despojado de poder,
subjugado e dominado. A natureza adâmica não é extirpada na conversão, mas
recebemos poder para subjugá-la e dominá-la. Warren Wiersbe escreve a esse
respeito: “O termo destruído não significa aniquilado', mas sim ‘desativado,
tornado ineficaz’. A mesma palavra grega é traduzida por ‘desobrigada em
Romanos 7.2. Se o marido de uma mulher morre, ela se vê desobrigada dele quanto
à lei e livre para se casar novamente”.
- O que
Paulo quis dizer quando afirmou que aquele que morreu justificado está do
pecado? O único jeito de ser justificado do pecado é receber sua paga, é
cumprir a sentença. Um preso que cumpre sua sentença está quite com a lei. Se
alguém pega trinta anos de cadeia e morre, fica livre da pena. A lei não age
sobre quem já morreu. Para F. F. Bruce, a morte paga todos os débitos, de sorte
que o homem que morreu com Cristo vê apagado seu registro na lousa, e está
pronto para começar vida nova com Cristo, livre do vínculo do passado.586
William Fíendriksen tem razão quando diz que a morte quita todas as dívidas.
Quando nos identificamos com Cristo, morremos
legalmente para o pecado. Não devemos mais nada à lei. Agora nem o pecado nem a
lei têm mais direito legal sobre nós. Concordo com Geoffrey Wilson na seguinte
afirmação: “Como a morte liberta o homem de todas as obrigações, assim ela nos
liberta a nós que morremos com Cristo, da obrigação de nos sujeitarmos ao reino
de nosso velho senhor, o pecado.
Estar
justificado do pecado pode dar-se apenas se alguém pagar o preço do pecado,
seja o pecador, seja um substituto apontado por Deus para pagar a dívida. Não
existe meio de escapar, a menos que alguém assuma a culpa. Um criminoso
sentenciado e condenado à prisão precisa cumprir a pena para ficar livre. Uma
vez cumprida a sentença, poderá deixar a prisão, justificado. Não precisa temer
mais as autoridades, porque as demandas da lei foram cumpridas. O criminoso
está justificado do seu pecado. O mesmo princípio é aplicado se a penalidade
for a morte. A lei não pode punir quem já morreu. Um morto está quite com a
lei. Pois bem, merecíamos morrer por nossos pecados. E morremos, se bem que não
pessoalmente, mas na pessoa de Jesus Cristo, nosso substituto, que morreu em
nosso lugar.
Consequentemente,
se estamos mortos em Cristo, estamos justificados do pecado.
- Viveremos
com Cristo (6.8-10). Já que estamos em Cristo e ele morreu e ressuscitou,
então, nós que morremos com Cristo, também viveremos com ele, e não só no
porvir, mas aqui e agora. Sua morte é nossa morte, e sua ressurreição é nossa
ressurreição. Sua vida é nossa vida. Assim como a morte não tem mais poder
sobre o Cristo ressurreto, assim como Cristo morreu de uma só vez pelo pecado e
para o pecado e fez um sacrifício suficiente e cabal não precisando mais
repeti-lo, assim como Jesus agora vive para Deus, nós também morremos,
ressuscitamos e vivemos para Deus como Cristo
em Cristo.
John Stott
corretamente argumenta que Cristo morreu para o pecado quando sofreu o castigo
do pecado. Ele morreu por nossos pecados, carregando-os em sua própria pessoa
inocente e santa. Carregou nossos pecados e sua justa recompensa. A morte de
Jesus foi o pagamento pelo pecado, pelo nosso pecado: ele cumpriu a sentença,
pagou a pena e aceitou a conseqüência. Tudo isto Cristo fez de uma só vez e
para sempre, e portanto o pecado já não tem direito algum sobre ele. Se é neste
sentido que Cristo morreu para o pecado, nós também, unidos a Cristo, morremos
para o pecado neste mesmo sentido. Isto é, morremos para o pecado porque em
Cristo sofremos o castigo pelo pecado. E a conseqüência é que nossa velha vida
terminou, e começamos uma nova vida.
Em segundo
lugar, devemos considerar (6.11). Conforme William Hendriksen, neste ponto a
doutrina assume o aspecto de exortação.191 O termo considerar é a tradução de
uma palavra grega usada 41 vezes no Novo Testamento — 19 vezes só em Romanos.
Significa “levar em conta, calcular, estimar”. Devemos levar em conta aquilo
que Deus diz em sua Palavra, pois isso vale para a nossa vida.
O verbo
grego “considerar” significa ainda fazer escrituração comercial. E aritmética,
ou seja, algo exato,real, concreto. É verdade absoluta aqui e em todo o mundo.
Deus ordena
que façamos a escrituração, lançando na conta a morte do velho homem. Devemos
tirar o atestado de óbito do velho homem. A consideração é uma questão de fé
que resulta em ação. E como endossar um cheque; se cremos, de fato, que o
cheque tem fundos, colocamos nossa assinatura no verso do cheque e sacamos o
dinheiro. Considerar não é se apropriar de uma promessa, mas agir em função de
um fato. Deus não ordena que morramos para o pecado. Ele diz que estamos mortos
para o pecado e vivos para Deus e, em seguida, ordena que ajamos de acordo. O
fato continuará sendo válido, mesmo que não obedeçamos.
Já que
estamos em Cristo e ele morreu, devemos considerar-nos também mortos para o
pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus. E como se a nossa biografia fosse
escrita em dois volumes. O volume 1 conta a nossa história antes de Cristo; é a
história do velho homem. O volume 1 encerrou-se com a morte legal do antigo eu;
o volume 2 é a história do novo homem. Ele se abriu com a ressurreição. Não
podemos viver mais no volume 1, como se nossa morte e ressurreição com Cristo
nunca tivessem ocorrido.
O primeiro volume terminou em nossa morte com
Cristo. Recebemos o que merecíamos na pessoa do nosso substituto, ou seja, a
morte. O primeiro volume já está concluído e fechado. Vivemos agora no segundo
volume. E incoerente o cristão viver agora no primeiro volume, pois “como
viveremos no pecado, nós os que para ele morremos?” Destacamos, aqui, dois
pontos:
a. Devemos considerar-nos mortos para o pecado
(6.11a). O que isso significa? Não significa que estamos mortos no sentido de
insensíveis ao pecado. Paulo não está aquidefendendo a impecabilidade do
cristão nem pleiteando a tese da santidade total nesta vida. Uma das evidências
da vida é a capacidade de corresponder aos estímulos. Não estamos mortos para o
pecado como um gato morto está insensível ao toque.
A Palavra de
Deus, a História e nossa experiência provam que não estamos mortos nesse
sentido em relação ao pecado. Ainda lutamos contra o pecado, e ele ainda
tenazmente nos assedia. John Stott destaca que as biografias que encontramos
nas Escrituras, como no decorrer da História, aliadas à nossa experiência,
mostram que isso não é verdade. Longe de estar morta, no sentido de inerte,
nossa natureza caída está tão viva e ativa que somos seriamente exortados a não
obedecer a seus desejos, e o Espírito Santo nos é concedido para que possamos
subjugá-los e controlá-los.Wl Não morremos para o pecado no sentido de estarmos
insensíveis a ele, como um morto está insensível aos cinco sentidos (6.12,13;
13.14). Nossas tentações vêm do interior, da carne, e não apenas de fora, do
mundo e do diabo.
Em que
sentido, então, devemos considerar-nos mortos?
Nossa morte
ao pecado é idêntica à de Cristo (6.10). E legal. E moral. Morremos para o
pecado porque em Cristo sofremos o castigo pelo pecado, que é a morte. Morremos
em Cristo. A morte de Cristo foi a nossa morte (2Co 5.14). Devemos
considerar-nos mortos no sentido de que judicialmente estamos mortos em Cristo.
Assim como pelo pecado de Adão morremos no pecado, pela morte de Cristo
morremos para o pecado. Podemos agora, andar com a certidão de óbito no bolso,
dizendo que o pecado não tem mais domínio sobre nós, no sentido de nos
condenar, uma vez que já fomos justificados pela morte de Cristo.
A penalidade
que deveria cair sobre nossa cabeça caiu sobre Cristo. A condenação que nós
deveríamos receber, Cristo recebeu em nosso lugar. O golpe da morte que nós
deveríamos ter sofrido, Cristo sofreu por nós. A morte que nós deveríamos
suportar, Cristo suportou por nós. A sua morte foi a nossa morte. Assim como
Cristo morreu para 0 pecado, nós também morremos para ele. Porque estamos em
Cristo, já sofremos nele a penalidade do pecado, que é a morte. Morremos nele e
por intermédio dele. Ao nos unirmos com ele, sua morte tornou-se a nossa
morte.596
b. Devemos considerar-nos vivos para Deus
(6.11b). Fomos salvos por Cristo a fim de viver para Deus. Não podemos viver
para o pecado nem agradar a nós mesmos. Viver para a glória de Deus é a razão
da nossa vida. Devemos deleitar-nos nele. Devemos fechar de uma vez para
sempre o volume 1 da nossa biografia e viver doravante apenas no volume 2.
Em terceiro lugar, devemos oferecer (6.12-14). O
resultado de saber que estamos crucificados com Cristo(6.6) e considerar-nos
mortos em Cristo (6.11) deve levar-mos a oferecer nosso corpo a Deus (6.12-14).
O corpo do cristão não é apenas morada de Deus, mas também um instrumento nas
mãos de Deus. Paulo dá três ordens claras, duas negativas e uma positiva.
a. Não
permita que o pecado domine seu corpo (6.12).
Onde Cristo
é Senhor, o poder do pecado tornou-se ilegal (6.7). Deus lhe deu o “cartão
vermelho”.59' Paulo não está admitindo que o pecado reina na vida do crente.
Aliás, ele nega isso. A seqüência é esta: o pecado não exerce o domínio;
portanto, não permita que ele reine.
O pecado é intruso e embusteiro. Ele pode usar
o nosso corpo como uma ponte por meio da qual nos consegue governar. Assim
Paulo convoca a rebelar-nos contra o pecado.599 Geoffrey Wilson diz que o
pecado é retratado aqui como um soberano (que reina, v. 12) que exige o serviço
militar de seus súditos (exigindo obediência, v. 12), cobra-lhes um imposto em
armas (armas da iniqüidade, v. 13) e lhes dá seu soldo de morte (o salário, v.
23).600
b. Não
ofereçam os membros do seu corpo ao pecado (6.13a). Os órgãos do nosso corpo
(olhos, ouvidos, mãos, pés) devem estar a serviço de Deus, e não do pecado. A
vida cristã é mais que um credo, é mais que um sentimento. E ação. William
Barclay diz que o sentimento religioso nunca pode ser um substituto do fazer
religioso. O cristianismo não pode ser somente uma experiência de um lugar
secreto; deve ser uma vida numa praça pública.
c.
Ofereçam-se a Deus (6.13b). Essa consagração a Deus deve ser um compromisso
decisivo e deliberado. Paulo trata aqui de dois reinados: o reinado do pecado e
o reinado da graça. No reinado do pecado, as pessoas são escravas, e não
livres. Elas se afundam no atoleiro dos vícios e perversões e usam seu corpo
para atender os ditames do pecado. No reinado da graça, elas são não apenas
livres, mas também chegam a reinar. Uma vez que não estão debaixo do domínio do
pecado, não devem oferecer o seu corpo para servi-lo nem os membros do seu
corpo para fazer sua vontade. Nosso corpo foi comprado por Deus e deve estar a
serviço da glória de Deus. Os membros do nosso corpo não devem ser janelas
abertas para o pecado, mas instrumentos da realização da vontade de Deus. Não
podemos dar uma parte da nossa vida a Deus e outra parte ao mundo. William
Barclay tem razão em dizer: “Para Deus é tudo ou nada”.
Destacamos
aqui dois pontos:
- O reinado
da escravidão. Quando o pecado reina, os homens se tornam capachos de sua
implacável tirania. O reinado do pecado é um domínio de opressão. O pecado escraviza
e mata. Os súditos do pecado vivem prisioneiros de suas paixões e oferecem os
membros do seu corpo à iniquidade.
- O reinado
da liberdade. Quando a graça reina, os homens se tornam livres. A graça
destrona o pecado. Destrói o senhorio do pecado e capacita o crente a
oferecer-se a si mesmo, e a tudo o que lhe pertence, em amorável serviço a
Deus.
Em vez de viver sob a tirania do pecado, eles
podem voluntariamente se consagrar a Deus e oferecer os membros do seu corpo
para a prática da justiça. Estar debaixo da lei é aceitar a obrigação de
guardá-la e assim incorrer em sua maldição e condenação (G1 3.10). Estar
debaixo da graça é reconhecer a nossa dependência da obra de Cristo para a
salvação, e assim ser justificados ao invés de condenados.
Devemos viver em santidade porque nos
tornamos escravos de Deus pela conversão (6.15-23)
O reinado da graça está estribado em dois
fundamentos: nossa união com Cristo pelo batismo e nossa servidão a Deus pela
conversão. Paulo passa do primeiro argumento, nossa união com Cristo em sua
morte, para o segundo argumento, nossa servidão em virtude da conversão. A ênfase
no primeiro argumento encontra-se naquilo que foi feito por nós (fomos unidos a
Cristo), enquanto a ênfase do último está naquilo que nós fazemos
(oferecendo-nos a Deus a fim de obedecer-lhe).605 Em ambos os argumentos Paulo
começa com a mesma indagação de espanto: “Não sabeis?... “ (6.2,16). John Stott
sugere cinco pontos de destaque nessa exposição do apóstolo:
Em primeiro lugar, o princípio: a autorrendição conduz
à escravidão (6.16). A rendição desemboca em servidão.
O homem é
sempre escravo: do pecado ou de Deus. A servidão do pecado torna o homem cativo
das paixões; a servidão a Deus o torna livre. E conhecida a expressão de
Agostinho: “Quanto mais escravo de Cristo sou, tanto mais livre me sinto”. A
escravidão de Deus é liberdade; a liberdade do pecado é escravidão. E
impossível ser escravo de dois senhores ao mesmo tempo (Mt 6.24). Somos servos
de Deus ou do pecado.
Em segundo lugar, a aplicação: a conversão implica
troca de escravidão (6.17,18). Cristo nos arrancou do cativeiro do pecado.
Éramos dominados. Estávamos debaixo de um jugo opressor. Vivíamos na masmorra
da culpa, atormentados pelo látego do medo. Livres desse maldito cativeiro,
fomos feitos servos da justiça. O servo da justiça é verdadeiramente livre.
Pela conversão, saímos de um reino para outro, de um senhor para outro, de um
estilo de vida para outro. Vivíamos no reino das trevas, agora estamos no reino
da luz. Éramos escravos do diabo, agora somos servos de Cristo. Vivíamos
entregues às paixões e iniquidades, agora nos dedicamos à prática da justiça.
O evangelho
apostólico é aqui comparado a uma forma ou molde em que o metal derretido é
derramado para tomar forma. Esse molde é a norma final que molda o pensamento e
a conduta de todos os que são entregues a seu ensino.
Poderíamos esperar
que a doutrina fosse entregue aos ouvintes, em vez de os ouvintes serem
entregues à doutrina.
O cristão,
porém, não é o senhor de uma tradição, como os rabinos, pois é criado pela
Palavra de Deus e permanece em subimissão a ela.
Em terceiro lugar, a analogia: os dois tipos de
escravidão são progressivos (6.19). Sob o reinado do pecado, o homem fazia
provisão para agradá-lo; agora, sob o reinado da graça,deve usar no mínimo o
mesmo empenho para viver em santidade. Não podemos ser menos consagrados a Deus
que um ímpio é dedicado ao pecado. O mundo investe na promoção de suas causas.
O pecador vira noites para satisfazer suas paixões. Dedica sua vida, seu tempo,
seu dinheiro para agradar a seu senhor. Depois de convertidos, libertos e
salvos, teríamos nós uma dedicação inferior quando se trata de agradar ao
Senhor? Será que fomos mais dedicados ao diabo ontem do que somos a Jesus hoje?
Em quarto lugar, o paradoxo: a escravidão é
liberdade e a liberdade é escravidão (6.20-22). Como dissemos anteriormente, a
liberdade do pecado é escravidão; a escravidão de Deus é liberdade. A liberdade
do pecado desemboca na morte; a escravidão a Deus promove vida. O homem que se julga
livre para fazer tudo o que deseja é, na verdade, escravo do pecado. O homem
que serve a Deus, embora possa praticar o pecado, opta por obedecer a Deus. O
escravo do pecado não pode [fazer/agir]; o escravo da justiça pode não
[fazer/agir]. Aquele que é viciado em bebida alcoólica não pode deixar de
beber; foi dominado, é escravo; o convertido a Cristo pode beber, mas pode não
beber. Ele não está debaixo do copo, mas sobre ele. Ele não é escravo, é livre.
Ele não é dominado; tem domínio próprio.
Em quinto lugar, a antítese suprema (6.23). No
reinado do pecado, os homens recebem seu soldo com juros e correção. Além de
todo o tormento que o pecado produz, seu pagamento final é a morte. Salário é
aquilo que merecemos por aquilo que fazemos. O pecador merece a morte; ela é
seu justo salário. Adolf Pohl diz que não apenas havemos de morrer, nós merecemos
morrer, pois o pecado está grávido da morte. Conforme William Barclay, Paulo
usa aqui dois termos militares. A palavra opsonia, “salário”, era a paga do
soldado,algo que ele ganhava arriscando sua vida e com o suor do seu rosto. O
salário era algo devido ao soldado e que dele não podia ser tirado. A palavra
grega charisma, “dádiva”, por sua vez, significa a retribuição totalmente livre
e imerecida que algumas vezes o exército recebia. Geoffrey Wilson destaca três
comentários importantes sobre salários. Primeiro, como o salário era pago para suprir
os custos da vida, o pecado aqui é apresentado como um enganador que promete
vida e paga com a morte.
Segundo,
porque os salários não são limitados a um único pagamento, a sombra da punição
final já paira sobre a vida presente. Pois, da mesma forma que a vida eterna já
é posse do crente, assim o pecado já oferece a seus escravos veneno mortal
tirado do cálice da morte. Terceiro, como “salário” é um termo legal, podemos
concluir que o homem só tem direitos em relação ao pecado, e esses direitos se
tornam sua condenação. Assim, o homem ceifa na forma de corrupção aquilo que
semeou na forma de pecado.
F. F. Bruce
diz que o pecado paga salários a seus servos— e o salário é a morte. Deus nos
dá não salário, mas algo melhor e muito mais generoso: por sua graça, ele nos
dá a vida eterna como livre dom — a vida eterna que nos pertence por nossa
união com Cristo.
No reinado
da graça, os homens recebem não o que merecem, a morte, mas o favor imerecido
de Deus, a vida eterna. A palavra grega charisma é usada para definir uma
dádiva da graça de Deus. A vida eterna não é um prêmio que conquistamos; mas
uma dádiva divina inteiramente gratuita e absolutamente imerecida. A vida
eterna é gratuita; a morte é merecida.
Ao fim, então,
temos duas vidas e dois destinos. Aqueles que seguem pela estrada da
autogratificação terão como destino final a morte espiritual, física e eterna;
mas os que são crucificados com Cristo, morrem com ele, são sepultados e ressuscitam
com ele para uma nova vida, recebem um dom glorioso, ávida eterna.
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