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Ética Cristã
e Aborto
tema do aborto implica diretamente a dignidade
humana e na inviolabilidade do direito à vida. Posições contrárias e favoráveis
ao aborto sempre estiveram presentes na história da humanidade. As civilizações
dos sumérios, os babilônios, os assírios, os hititas e os israelitas
consideravam o aborto como um crime de maior gravidade. Em contrapartida, a
cultura espartana (séculos V e IV a.C.), que era centrada na formação do
“hoplita” — o soldado perfeito — os recém-nascidos que apresentassem alguma
doença, má formação ou sinais de debilidade eram jogados do precipício a fim de
serem descartados (GARCIA, 2011, p. 25). Os filósofos Platão e Aristóteles
também consideravam o aborto e o infanticídio como instrumento de eliminação
dos fracos e inválidos, que, segundo eles, eram um estorvo e nada podiam
acrescentar ao bem comum. Em seu livro A República, Platão também defendeu a
interrupção da gestação em todas as mulheres que engravidassem após os 40 anos
(PLATÃO, 2000). Andrade registra que, em certa ocasião, Aristóteles aconselhou
desabridamente: “Quanto a saber quais os filhos que se devem abandonar, ou
educar,
deve haver uma lei que proíba alimentar toda a criança disforme” (2015,
p. 60).
I. ABORTO: CONCEITO GERAL E BÍBLICO
Em termos
gerais, a prática do aborto é a interrupção da gravidez. Tal procedimento
continua sendo um polêmico debate. Uma parcela da sociedade contemporânea o
considera como um direito da mulher. As opiniões divergem em duas vertentes: os
“Pró-Vida”, que são contrários ao aborto, e os militantes “Pró-Escolha”, que
são favoráveis. Diante da problematização ética e moral que envolve esses
grupos, apresentamos o conceito geral e bíblico do aborto.
1. Conceito Geral de Aborto
Conceitualmente,
o aborto é a interrupção do nascimento por meio da morte do embrião ou do feto.
Algumas literaturas identificam o aborto como feticídio cujo significado é a
“morte do feto”. A palavra latina fetus significa “pequenino” e representa o
ser que se presume vivo.
Sob essa perspectiva, o ato de “abortar”
é caracterizado pela descontinuidade do processo natural de gestação do ser
vivo. O termo gestação é originário da palavra em latim gestacione, que faz
referência ao tempo em que o embrião fica no útero, desde a concepção até o
nascimento. Portanto, esse termo pode ser aplicado a todos os animais que
possuem um útero, que é parte integrante e mais importante do aparelho
reprodutor feminino, nesse caso, dos mamíferos. Contudo, a aplicação do termo
“descontinuidade da gestação” quando relacionado com a ética e a moral cristã
refere-se à interrupção da gravidez da mulher. A essa interrupção dá-se o nome
de aborto, que pode ser involuntário ou provocado com ou sem a expulsão do
feto, resultando na morte do nascituro.
2. O Aborto no Contexto Legal
Considerado
um dos mais antigos diplomas jurídicos, o código do rei Hamurabi (1810-1750
a.C.) apresentava severas punições contra o aborto. O código foi criado na
Mesopotâmia por ocasião da primeira dinastia babilônica. Trata-se de um
conjunto de 218 leis escritas em caracteres cuneiformes em uma coluna de
basalto negro. O código previa indenizações à mulher no caso de aborto
provocado. Os valores sofriam variações a depender se a mulher era livre ou
escrava. No caso de a mulher vir a morrer como consequência do aborto provocado,
o culpado era punido com a pena de morte. No Código Criminal do Império no
Brasil (1830), o aborto e o infanticídio eram punidos com prisão e trabalho
forçado. Se a mãe matasse o filho recémnascido, a pena era de um a três anos de
prisão e trabalho forçado (Art. 198). Mas no caso de aborto com o consentimento
da mãe, a pena era ainda maior, de um a cinco anos de trabalhos forçados no
sistema prisional da época (Art. 199).
Também no célebre juramento de
Hipócrates, do século V a.C., que influenciou toda a história da medicina
ocidental, estava incluso um voto específico em que o médico se comprometia a
não realizar nem a eutanásia nem o aborto (PALLISTER, 2005, p. 141). O
juramento era recitado pelos médicos no dia da formatura nos seguintes termos:
“Não darei a nenhuma mulher um pessário1 para provocar um aborto” (KAISER JR,
2016, p. 138). Em 1949, a Declaração de Genebra ratificou esse compromisso, mas
não como juramento. Na década de 1960, a Associação Médica Mundial reformulou a
declaração e deixou margem para a prática do aborto em algumas circunstâncias.
Na legislação brasileira atual, o
aborto é permitido nos casos de risco de morte à mulher e estupro (Art. 128,
CP). Também é permitido a prática do aborto nos casos de anencefalia, conforme
decisão do Supremo Tribunal Federal — ADPF n. 54. Nos demais casos o aborto
ainda é crime (Art. 124, CP). Contudo, em novembro de 2016, a 1ª Turma do
Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que aborto até os três meses não é
crime, abrindo um precedente para a descriminalização. Eles julgaram uma ação
movida pelo Ministério Público envolvendo pessoas de Duque de Caxias (RJ) com a
prática do crime de aborto consentido pela mãe. Durante a leitura de seu voto,
o ministro Luís Roberto Barroso esboçou com clareza que está alinhado e
concorde com a ideologia de que “a mulher tem direito sobre o próprio corpo” e,
portanto, tem o direito de interromper a gravidez indesejada:
A criminalização antes do terceiro
mês de gestação viola a autonomia da mulher, o direito à integridade física e
psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero,
além de provocar discriminação social e um impacto desproporcional desta
criminalização sobre as mulheres pobres.2
Embora essa
decisão teve efeito inter partes, ou seja, exclusivamente para o caso de Duque
de Caxias, no dia 7 de março de 2017, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol)
protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.
442, questionando os artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro, que pune com
até três anos de detenção a mulher que praticar aborto e até com quatro anos de
prisão ao profissional que realizar o procedimento. Nessa ADPF, o pedido é de
que o aborto deixe de ser crime até a 12a semana de gestação. O PSOL argumenta
que o embrião não tem status de pessoa constitucional, baseado em decisões do
próprio STF, que já arbitrou sobre a morte de embriões para as pesquisas com
células troncoembrionárias e já autorizou o aborto de anencéfalos.
3. Conceito Bíblico de Aborto
Na lei
mosaica, provocar a interrupção da gravidez de uma mulher era tratado como ato
criminoso. A legislação prescrevia o pagamento de multa a quem provocasse a
descontinuidade da gestação em alguma mulher. O valor dessa multa deveria ser
estipulado pelo pai da criança com a aquiescência dos magistrados (Êx
21.22-25). No sexto mandamento, o homem foi proibido de matar (Êx 20.13), o que
significa literalmente “não assassinar”. Os intérpretes do Decálogo concordam
que o aborto está incluso nesse mandamento. Assim, quem mata um embrião ou feto
peca contra Deus e contra o próximo. Os preceitos divinos consideram
injustificada e digna de punição a morte de inocentes (Êx 23.7). Todavia, os
defensores da posição Pró-Escolha apelam que o texto de Êxodo 21.22-25 acima
referenciado não considera o aborto como sendo a morte de uma pessoa. O
preceito bíblico diz textualmente:
Se alguns homens pelejarem, e um
ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro
dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e
julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida, olho por
olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura,
ferida por ferida, golpe por golpe. (Êx 21.22-25)
O argumento
considera que a legislação estipula a Lex Talionis “lei de talião ou lei da
retribuição” (vida por vida) no caso de morte como resultado de luta corporal
entre homens envolvendo mulher grávida. Os militantes PróEscolha disputam que a
frase “não havendo outro dano” — apenas o aborto — significa dizer que a única
penalidade deve ser uma multa. Isso implica afirmar que o aborto não é
considerado morte; por isso, requer-se somente a multa, e não a “vida por
vida”. Arrazoam também que a expressão “se houver morte” refere-se à morte da
mulher que sofreu o aborto, e não a morte do feto. E, nesse caso, na morte da
mulher, a lei de talião é requerida. A respeito desse questionamento, a falácia
está na tradução do verbo “abortar” da versão de João Ferreira de Almeida. O
verbo hebraico shakal, que normalmente tem o sentido de “abortar”, não aparece
aqui, ao contrário, o verbo utilizado pelo autor bíblico é yasa, que se refere
ao nascimento de uma criança viva. Desse modo, a tradução da Nova Versão
Internacional (NVI) está mais explicativa, onde se pode ler: “Se homens
brigarem e ferirem uma mulher grávida, e ela der à luz prematuramente, não
havendo, porém, nenhum dano sério, o ofensor pagará a indenização”. Assim, no
caso de uma mulher grávida ferida em uma briga antecipar o parto, e a criança
viver, os causadores do parto prematuro pagam somente a indenização pelos danos
causados, mas se a criança não sobreviver e ainda até a mãe morrer, paga-se
“vida por vida”. Portanto, o uso desse texto para justificar a prática do
aborto não se sustenta por ser um argumento inválido.
4. O Aborto na História da Igreja
“O ensino dos dez apóstolos” chamado de
Didaquê (século I d.C.) condena o aborto e o infanticídio. Esse documento
cristão foi escrito entre 60 e 90 d.C., provavelmente na região da Palestina ou
na Síria. Dividido em quatro partes, contendo dezesseis capítulos, é a mais
antiga fonte de legislação eclesiástica extrabíblica disponível aos cristãos do
período pós-apostólico. Retrata a tradição das primeiras comunidades cristãs e
a sua mensagem permanece válida para os dias de hoje. Entre outros preceitos, o
documento estabelece: “Não mate, não cometa adultério, não corrompa os jovens,
não fornique, não roube, não pratique a magia nem a feitiçaria. Não mate a
criança no seio de sua mãe e nem depois que ela tenha nascido” (Didaquê II,2).
O apologista da igreja Tertuliano (viveu
por volta de 150 a 220 d.C.), nascido em Cartago de família pagã abastada,
ensinou que a morte de um embrião tem a mesma gravidade do assassinato de uma
pessoa já nascida e que impedir o nascimento é um homicídio antecipado. Entre
os anos de 197 e 220 d.C., Tertuliano, considerado o pai da teologia latina,
dedicou-se a carreira de escrever e produzir obras em defesa do cristianismo.
Sua escrita era vívida, satírica e fácil de ler. Seu método assemelha-se ao de
um advogado expondo seus argumentos em um tribunal. Ao se dirigir aos romanos
acerca da interrupção da gravidez, explicou assim:
Em nosso caso, já que proibimos o
homicídio em qualquer forma, não podemos destruir nem sequer ao menino na
matriz […] Impedir que nasça um menino é somente uma forma de matar. Não há
diferença em se matar a vida do que já nasceu, ou se matar a vida do que não
nasceu ainda. (BERCOT, 2012, p. 31, 32)
O polemista
Agostinho de Hipona e os teólogos Jerônimo de Estridão e Tomás de Aquino
consideravam pecado grave interromper a gestação e o desenvolvimento da vida
humana. Embora a compreensão de Agostinho, quanto ao início da vida, divergisse
de Tertuliano, o bispo africano “chegou a chamar de prostitutas as mulheres
que, para escapar às consequências de sua vida imoral […] matavam o filho que
traziam no ventre” (ANDRADE, 2015, p. 58). Jerônimo, autor da vulgata latina,
considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como
culpadas de triplo crime: adultério, suicídio e assassinato dos filhos. Aquino,
autor da Suma Teológica, afirmava que a vida e o ser humano são inseparáveis,
e, portanto, ambos são também invioláveis. Percebe-se, desse modo, que a
valorização da dignidade humana, o direito à vida e o cuidado à pessoa
vulnerável são princípios e doutrinas imutáveis da igreja cristã.
II. O EMBRIÃO E O FETO SÃO UM SER
HUMANO
Fecundação, embrião e feto são os nomes
das três etapas da gestação. O período gestacional é composto de 40 semanas que
são fundamentais para a formação do bebê. Após o ato sexual, o espermatozoide
sobrevive, em média, 72 horas (ou seja, cerca de 3 dias) dentro do corpo da
mulher à espera que um óvulo seja liberado pelo ovário. O óvulo, depois de
liberado, está disponível para ser fecundado apenas entre 12 e no máximo 24
horas. A fecundação ocorre na união entre o óvulo e o espermatozoide — que dá
origem ao zigoto e que se instala no útero após uma série de divisões
celulares. O termo embrião é usado para definir um organismo que está nos
primeiros estágios de desenvolvimento. Ele é formado 24 horas após a
fecundação. O período de desenvolvimento do feto decorre desde a 8ª semana até
ao nascimento, e é um tempo de crescimento e desenvolvimento. Neste tópico,
analisaremos em qual dessas três fases se dá o início da vida.
1. Quando Começa a Vida
No IV século a.C., o filósofo Aristóteles
ensinava que a vida iniciava com o primeiro movimento do feto no útero materno.
Segundo sua teoria, no caso do feto masculino, essa manifestação aconteceria no
40º dia de gestação, e no feto feminino, apenas no 90º dia. Aristóteles
inferiorizava as mulheres, e por isso acreditava que o feto feminino se
desenvolvia mais lentamente. Obviamente que essas suposições do filósofo eram
descabidas e arbitrárias, e foram cientificamente descartadas.
Quanto aos cientistas, muitos
concordam que a vida tem início na fecundação, quando o espermatozoide (gâmeta
masculino) e o óvulo (gâmeta feminino) se fundem gerando a nova célula chamada
“zigoto”. Essa nova célula possui uma identidade genética própria, diferente da
que pertence aos que lhe transmitiram a vida, e a capacidade de regular o seu
próprio desenvolvimento.
Outros pesquisadores defendem que a vida
inicia com a fixação do óvulo fecundado no útero, onde recebe o nome de embrião
— o que ocorre entre o 7º e o 10º dia de gestação. Outras correntes estabelecem
que a vida humana se origina na gastrulação — estágio que ocorre no início da
3ª semana de gravidez. Nesse ponto, o embrião, que é menor que uma cabeça de
alfinete, é um indivíduo único e a partir desse momento ele seria um ser
humano. Outros apontam o começo da vida por volta do 14º dia, quando ocorre a
formação do sistema nervoso. E isso pelo fato de que países como o Brasil e os
Estados Unidos definem a morte como a ausência de ondas cerebrais.3 A vida
começaria, portanto, com o aparecimento dos primeiros sinais de atividade
cerebral. Tem ainda aqueles que indicam o começo da vida quando o feto tem
condições de viver fora do útero, por volta da 25ª semana de gestação. E também
os que defendem que a vida só tem início por ocasião do nascimento do bebê.
2. O que Diz a Bíblia?
Para a
polêmica que envolve o aborto, definir quando o embrião ou o feto se torna
humano, se na fecundação (concepção), no nascimento ou em um ponto
intermediário, é uma questão de suprema importância. Como as respostas humanas
têm sido controversas, o cristão deve buscar a verdade na revelação divina. A
Palavra de Deus é incisiva ao ensinar que a vida tem início na fecundação.
Acerca disso, registrou o profeta Jeremias: “Antes que te formasse no ventre te
conheci, e antes que saísses da madre, te santifiquei; as nações te dei por
profeta” (Jr 1.5). Esse texto indica que, antes de qualquer desenvolvimento do
embrião, ou seja, na concepção e ainda antes do nascimento do feto, Deus já
considerava o profeta como um ser humano.
Nessa mesma sequência interpretativa, o
rei Davi descreve sua existência como ser vivo desde o início da concepção: “Os
teus olhos viram o meu corpo ainda informe, e no teu livro todas estas coisas
foram escritas, as quais iam sendo dia a dia formadas, quando nem ainda uma delas
havia” (Sl 139.16). Por conseguinte, de acordo com as Escrituras, a vida começa
quando ocorre a união do gameta masculino ao feminino. Essa nova célula é um
ser humano e possui identidade própria e, portanto, o seu direito de nascer não
pode ser interrompido por vontade, desejos ou caprichos do homem.
A presença das virtudes divinas pode ser
observada em cada uma das etapas de formação do ser vivo. Os versos do Salmo
139 focalizam as virtudes da onisciência, onipresença e onipotência divina. O
salmo reconhece que é Deus quem cria o íntimo de nosso ser. As pessoas são
conhecidas e cuidadas pelo Senhor desde a concepção (Sl 139.13a). Deus é quem
forma o ser dentro do ventre da mãe. O ser vivo é formado de modo “assombroso”
e “maravilhoso” (Sl 139.13b-14). O salmista afirma que Deus vê o embrião ainda
informe, e o ama em todos os processos formativos, desde a fecundação,
nascimento e por toda a sua vida (Sl 139.15-16). Para Deus, o embrião não é “só
um punhado de tecidos”; ao contrário, Deus já sentia afeto e amor por nós
quando estávamos sendo tecidos dentro do ventre de nossa mãe (KAISER JR, 2005,
p. 146).
3. Qual a Posição da Igreja?
Na igreja
protestante, por meio da reforma efetivada por Lutero e apoiada nas Escrituras,
os cristãos que mantêm os princípios teológicos e a ortodoxia defendem a
dignidade humana desde a sua concepção, ou seja, que o começo da vida acontece
na fecundação. Ratificam o ensino de que a vida humana é sagrada em todas as
etapas do desenvolvimento do ser vivo e que não pode ser violada pelo homem (1
Sm 2.6). Divulgam que toda ideologia que seculariza os princípios bíblicos deve
ser combatida (2 Tm 3.8). Nesse aspecto, a posição oficial das Assembleias de
Deus no Brasil foi assim exarada: “A CGADB é contrária a essa medida [aborto],
por resultar numa licença ao direito de matar seres humanos indefesos, na
sacralidade do útero materno, em qualquer fase da gestação, por ser um atentado
contra o direito natural à vida” (Carta de Brasília, 41ª AGO, 2013).
III. TIPOS DE ABORTOS E SUAS
IMPLICAÇÕES ÉTICAS
Como já
mencionado acima, a legislação brasileira autoriza a interrupção da gravidez em
duas situações: aborto em caso de estupro e aborto terapêutico. Assim como nos
casos de anencefalia do feto, estabelecida pela Suprema Corte brasileira. Já
foi dito também que tramita no STF uma Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) para que o aborto deixe de ser crime até a 12a semana de
gestação.
Neste
tópico, apresentamos as principais implicações éticas para esses tipos de aborto,
os que já estão legalizados e aqueles que poderão ser descriminalizados. Quando
a Igreja se posiciona eticamente contrária a essas decisões legais, não
significa dizer que somos retrógrados ou que somos insensíveis às dificuldades
e à complexidade de uma gravidez indesejada:
Qualquer escolha nesta área da vida
compreende muito mais do que apenas cálculos humanos definíveis [...] Mas
indica, sim, que Deus ainda é Senhor da história e que ele pode transtornar os
cálculos humanos, e muitas vezes o faz. Portanto, maior peso deve ser colocado
sobre o respeito pelos princípios teológicos básicos apresentados na revelação
bíblica. (HENRY, 2007, p. 22)
A despeito
das decisões humanas, a verdade bíblica quanto ao aborto não pode ser
relativizada. O princípio de defesa da vida humana não pode conter exceções. Em
uma sociedade secularizada, o cristão precisa tomar cuidado com o relativismo,
não fazer concessões e estar alerta quanto às ações de manipulação de sua
consciência e o desrespeito à vida humana (1 Tm 4.1,2).
1. Aborto de Anencéfalo
Em abril de
2012, o STF permitiu a interrupção da gravidez de feto anencéfalo (sem cérebro
ou com má formação cerebral), bastando para isso o diagnóstico médico que
ateste anencefalia. A principal implicação ética dessa decisão está no descarte
de um ser humano por apresentar uma má formação. Trata-se de uma ideologia
racista chamada “eugenia”, que defende a sobrevivência apenas dos seres
saudáveis e fortes. A eugenia alcançou níveis extremos com o nazismo e o holocausto.
Hitler e seus seguidores almejavam atingir a pureza racial e, para isso,
eliminaram os inválidos, velhos, doentes e os considerados fracos.
2. Aborto em
Caso de Estupro Segundo o Código Penal, em vigor desde 1940, somente as
situações previstas nas alíneas do Art. 128 autorizam a eliminação da vida
intrauterina, ou seja, a prática do aborto. O artigo preconiza textualmente:
Art. 128. Não se pune o aborto
praticado por médico (Vide ADPF 54) Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a
vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o
aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.
Diante do previsto
do artigo acima referenciado, analisaremos neste tópico, o inciso II, que trata
da gravidez resultante de estupro. Precisamente, no que tange às questões
éticas e seus desdobramentos. Conforme preconiza a Norma Técnica do Ministério
da Saúde sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência
Sexual contra Mulheres e Adolescentes, não se exige qualquer documento que
comprove o abuso sexual, basta a versão da vítima e o consentimento da mulher
para que o aborto seja realizado. Ou seja, a mulher vítima de violência sexual
não tem o dever legal de notificar o fato à polícia. A palavra da mulher que
buscar o aborto sob a alegação de ter sofrido estupro deve ser entendida como
presunção de veracidade. Como não é necessária a comprovação do crime de
estupro e nem autorização judicial para o aborto, a lei é permissiva e
complacente com a interrupção da gravidez mesmo que o estupro não tenha
ocorrido. Os que fazem objeção a essas questões éticas argumentam que vítima já
sofreu o suficiente e que não deve ser submetida a outros constrangimentos.
A
Bíblia Sagrada, porém nos adverte: “Enganoso é o coração, mais do que todas as
coisas, e perverso; quem o conhecerá?” (Jr 17.9). E acrescenta:
“Porque do
interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as
prostituições, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a
dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura” (Mc 7.21,22). Outra
questão a se discutir refere-se ao Código de Ética Médica (CEM).
O
Código assegura ao médico:
Exercer sua profissão com autonomia,
não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua
consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro
médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer
danos à saúde do paciente. (Código de Ética, Inciso VII, Cap. I)
De acordo
com essa redação, o direito de recusa por causa da consciência é algo utópico,
pois o Código, de modo conflitante, veda ao médico “descumprir legislação
específica nos casos de transplante de órgãos ou tecidos, esterilização,
fecundação artificial e abortamento” (Art. 15, Cap. III). Assim, ao mesmo tempo
que se garante ao médico a objeção de consciência, o profissional está obrigado
a realizar o abortamento, juridicamente permitido, na ausência de outro médico
que o faça (Código de Ética Médica, 2010). De outro lado, discute-se também a
inviolabilidade do direito à vida do nascituro. A Constituição Federal
promulgada em 1988 assegura que “todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade” (Art. 5º, Caput). O Código Civil, em
vigor desde 2002, ao tratar da “personalidade e da capacidade”, protege a vida
desde a concepção ao legislar que “a personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro” (Art. 2º do CC). Esse dispositivo é interpretado por diversos
civilistas do seguinte modo: “Embora a vida se inicie com a fecundação, e a
vida viável com a gravidez, que se dá com a nidação, entendemos que na verdade
o início legal da consideração jurídica da personalidade é o momento da
penetração do espermatozoide no óvulo” (DINIZ, 2012, p. 102). Pode-se, então,
com esse dispositivo legal, considerar o início da vida na concepção e assim
caracterizar o aborto como atentado à vida.
Outra questão ética a ser levantada
relaciona-se ao fato de que um crime não pode justificar outro crime. O crime
de estupro não pode ser justiçado com a morte do feto que não tem culpa alguma
da violência praticada. A lei de talião foi abolida e reinterpretada por
Cristo: “Ouvistes o que foi dito: Olho por olho, dente por dente? Eu, porém,
vos digo: não resistais ao homem mau; antes, àquele que te fere na face direita
oferece-lhe também à esquerda” (Mt 5.38,39). Apesar de reconhecer o trauma, a
dor, os problemas psicológicos e sociais que podem resultar da gravidez
indesejada, a ética cristã não pode ser relativizada. Outras soluções podem ser
encontradas a fim de ajudar a mãe sem que seja necessária a morte de um ser
vivo.
3. Aborto Terapêutico
Como está
redigida a legislação brasileira, explicitada no Código Penal, não se considera
crime ou não aplica pena no aborto praticado para salvar a vida da gestante
(Inciso I, Art. 128). Esse dispositivo, motivo de exclusão da punição, está
previsto no código vigente com o nome de “aborto necessário”, situação em que
está enquadrada a interrupção voluntária da gravidez. No entanto, o preceito
legal não explica em que situações o aborto é necessário, apenas enuncia “se
não há outro meio de salvar a vida da gestante”. Diante dessa brecha legal,
juristas e penalistas consideram a vida da mãe superior à vida da criança.
Desse modo,
o problema ético se sobressai e coloca em conflito o “direito à vida da mãe” e
o “direito à vida de seu filho”. Assim, por meio do diagnóstico médico, que se
pressupõe ser apto para julgar a qualidade da vida humana, pode-se decidir
entre “ter os filhos que se quer e não ter os que não se quer”. Quanto a essa
imprecisão legal, renomados médicos se posicionaram contra o “aborto
necessário”.
Sob outra ótica, como efeito colateral
no tratamento da saúde, uma gestante pode correr o risco de abortar, porém,
nesse caso, não existe intenção de provocar o aborto, e sim de tratar a doença.
No entanto, a situação é diferente quando o médico age intencionalmente para matar
a criança a fim de preservar a mãe. Essa ação é justificada, como vimos, com a
alegação de que a vida de um adulto tem maior valor que a vida de um ser em
gestação. Daí surgem questões éticas quanto à valoração da vida humana. Uma
pessoa merece viver e outra não? Outra questão é acerca do poder sobre a vida.
Podemos decidir quem deve viver ou morrer? Não afirmam as Escrituras que a vida
e a morte são, unicamente, da alçada divina? (1 Sm 2.6; Fp 1.21-24)
1 Pequeno
dispositivo flexível que é inserido no órgão genital feminino.
2 Habeas
Corpus 124306 — Supremo Tribunal Federal. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf>.
Acessado em 07 de outubro de 2017.
3 Determina a legislação brasileira que para a
constatação da morte de uma pessoa é necessário a realização de exames
clínico-neurológicos, a fim de testar possíveis reflexos cerebrais. No caso de
pacientes acima de 2 anos, é imprescritível que, ao mínimo, dois médicos
atestem o óbito, com o intervalo de seis horas.
VALORES
CRISTÃOS
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