a Graça e o
Destronamento
do “Eu”
Romanos 7.1-6
Não sabeis vós, irmãos (pois que falo aos que sabem a lei),
que a lei tem domínio sobre o homem por todo o tempo que vive? Porque a mulher
que está sujeita ao marido, enquanto ele viver, está-lhe ligada pela lei, mas,
morto o marido, está livre da lei do marido. De sorte que, vivendo o marido,
será chamada adúltera se for doutro marido; mas, morto o marido, livre está da
lei e assim não será adúltera se for doutro marido. Assim, meus irmãos, também
vós estais mortos para a lei pelo corpo de Cristo, para que sejais doutro,
daquele que ressuscitou de entre os mortos, a fim de que demos fruto para Deus.
Porque, quando estávamos na carne, as paixões dos pecados, que são pela lei,
operavam em nossos membros para darem fruto para a morte. Mas, agora, estamos
livres da lei, pois morremos para aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos
em novidade de espírito, e não na velhice da letra.
Luz sobre Roma
Os
intérpretes da Bíblia reconhecem que a interpretação de Romanos 7 deve ser
analisada por mais de uma perspectiva teológica. E preciso, portanto , termos
conhecimento do pano de fundo dessa carta para podermos fazer uma análise mais
precisa daquilo que Paulo estava ensinando aqui. De grande ajuda são as
observações do doutor Bob Utley, professor de hermenêutica na Universidade
Batista do Oeste, Estados Unidos da América . Utley enumera alguns passos, que
acho importante resumir aqui.
1. Romanos 7
deve ser interpretado à luz de Romanos 6, especialmente 7 .12 -14 (também 3 .20
,21 -31 ; 4 .13 -16 ; 5.20).
2. E preciso
também levar em conta atenção na igreja de Roma entre os crentes judeus e os
crentes gentios, a qual é mostrada em Romanos 9— 11
. A natureza
do problema, como observa Utley, é incerta, mas pode ter sido:
a. legalismo
baseado na lei mosaica;
b. ênfase
judaizante sobre Moisés em vez de Cristo ;
c.
incompreensão de como o evangelho se aplica aos judeus;
.
incompreensão da relação entre a Antiga e a Nova Aliança;
e. ciúme por
parte dos crentes judeus da liderança dos gentios depois do edito imperial
expulsando os judeus de Roma.
3. Deve ser observado
que Romanos 7.1-6 contém linguagem figurada de Romanos 6 acerca da relação dos
cristãos com a sua velha vida. As metáforas usadas são:
a. morte e
libertação da escravidão para pertencer a outro (R m 6);
b. morte e
libertação da obrigação matrimonial (Rm 7)
4. De vemos
observar também que Romanos 6 e 7 são literaturas paralelas. Romanos 6 detalha
como é a relação dos crentes com o pecado e Romanos 7 como é o relacionamento
dos crentes com a lei. A analogia da libertação da escravidão da morte (6.12-23)
é paralela à analogia da libertação do marido que morreu (7.1-6). Utley ainda
destaca o paralelo de alguns termos e expressões existentes entre Romanos 6 e
Romanos 7.
5. A lei com
seus preceitos foi a sentença de morte. Todos os homens estavam condenados sob
ela (R m 6 .1 4 ; 7.4; G1 3 .1 3 ; E f 2 .1 5 ; C l 2.14). A lei mosaica se tornou
maldição !
Nova Aliança, Novo Relacionamento
‘Não sabeis vós, irmãos (pois que falo aos que
sabem a lei), que a lei tem domínio sobre 0 homem por todo 0 tempo que vivei (7.1). Alguns intérpretes veem aqui
uma referência à lei romana, enquanto outros enxergam a lei como um princípio
universal. Todavia, o contexto parece deixar claro que Paulo estaria se
referindo à lei mosaica. A expressão “ falo aos que conhecem a lei” pode ser
aplicada a toda a igreja romana, mas especialmente os judeus. A discussão feita
pelo apóstolo em Romanos 6 poderia ter gerado mal-entendidos sobre o papel da
lei em relação aos cristãos. Não devemos esquecer que Paulo havia enfrentado,
conforme mostra o livro de Atos e especialmente a Epístola aos Gálatas,
conflitos com judeus que o acusavam de estar pregando rebelião contra a lei.
Não há
dúvida de que o apóstolo sabia que esse mal-entendido sobre o seu pensamento já
havia chegado a Roma. A ideia que perpassava era que Paulo era um antinomista,
isto é, pregava a não observação da lei. Esse equívoco deveria ser esclarecido
p ara que o ensino d a justificação pela fé somente fosse compreendido em toda
a sua extensão . O elo é estabelecido entre os capítulos 6 e 8 p elo argumento
do apóstolo.
Recorrendo
novamente ao método de diatribe, Paulo quer desfazer essa imagem negativa que
alguns estariam fazendo sobre ele em relação à lei. Por que Paulo se mostrava
tão negativo em relação à lei? Paulo mostrará que, ao contrário do que muitos
pensavam , ele tem um grande apreço pela lei de Deus; todavia, não vê nela um
instrumento capaz de produzir salvação. E nesse ponto que percebemos que o
conceito das duas alianças está bem presente no pensamento do apóstolo. Na
Antiga Aliança, a lei teve uma função principal, mesmo que fosse apenas para
apontar os pecados e produzir a ira divina, porém na Nova Aliança essa função
não existe mais. E por que não? Porque a lei apontava para Cristo, e Ele havia
chegado !
É exatamente aqui que Paulo fará a analogia do
casamento . Era de conhecimento dos crentes romanos que enquanto o marido fosse
vivo, a lei proibia que a esposa contraísse novas núpcias. Se assim fizesse,
estaria caindo em adultério . Todavia, se o marido morresse, ela estaria livre
para casar com quem quisesse. Paulo então mostra que é exatamente isso o que o
correu em relação à lei. Aqui o crente morre para a lei para pertencer a outro,
Jesus Cristo. “Assim , meus irmãos, também vós estais mortos para a lei pelo
corpo de Cristo , para que sejais doutro , daquele que ressuscitou de entre os
mortos, a fim de que demos fruto para Deus” (Rm 7 .4 ).2 O expositor bíblico F.
F. Bruced estaca que “como a morte desfaz o laço que une marido e mulher, assim
a morte — a morte do crente com Cristo — desfaz o laço que o prendia ao jugo da
lei, e agora está livre para entrar em união com Cristo. Sua anterior
associação com a lei não o ajudava a produzir os frutos da justiça, mas esses
frutos são produzidos com abundância, agora que ele está unido a Cristo. O
pecado e a morte foram o resultado de sua associação com a lei; a justiça e a
vida são o produto de sua nova associação ; pois (como Paulo o coloca em outro
lugar), ‘a letra mata, mas o Espírito vivifica’ (2 C o 3 .6 )” .
3 Não se
tratava, portanto , de um antinomismo ou rebelião contra a lei, mas assumir a
nova posição que a Nova Aliança em Cristo proporcionou. Os cristãos são
chamados para pertencer a “outro ”, Cristo , e dessa forma frutificarem para Deus.
“Porque, quando estávamos na carne, as paixões
dos pecados, que são pela lei, operavam em nossos membros para darem fruto para
a morte” (7.5).
Paulo fundamenta seu comentário mostrando a antiga
relação da lei com aquele que a observa. Paulo já havia mostrado no capítulo 5
que o pecado não é levado em conta quando não há lei. Ali a transgressão
aparece como a quebrado mandamento da lei. Deus deu então o código do Sinai.
Essa lei dada a seu antigo povo é justa e boa, mas em vez de produzir vida,
trouxe morte. Havia algum problema com a lei? Não, o problema estava com os
homens, corrompidos pelo pecado, que se mostraram incapazes de obedecer aos
preceitos da lei. A lei trouxe a consciência do pecado e esse pecado ,
alimentado pela cobiça, frutificou para a morte. Esse argumento receberá ênfase
novamente em Romanos 7.7.
“Mas, agora,
estamos livres da lei, pois morremos para aquilo em que estávamos retidos;para
que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra” (7.6). João
Calvino, em seu comentário da Epístola aos Romanos, destaca que Paulo “dá seguimento
a seu argumento a partir de opostos. Se a coibição da lei surtiu tão pouco
efeito em subjugar a carne que nos despertava antes a pecar, então devemos nos
desvencilhar da lei para que deixemos de pecar. Se somos libertos da servidão
da lei a fim de podermos servir a Deus [livremente], então aqueles que derivam
deste fato sua licença para pecar, e aqueles que nos ensinam que devem os soltar
as rédeas e nos entregarmos a luxúria, também estão equivocados. Note-se, pois,
quando Deus nos livra de suas rígidas exigências e de sua maldição, dotando-nos
com o Espírito Santo a fim de trilharmos seus santos caminhos” .
Paulo esboça aqui o que tratará em detalhes no
capítulo 8. O crente foi liberto da lei para viver debaixo de outra lei — a lei
do Espírito de vida. Sem dúvida esse é o sentido de “servirem novidade de
vida”. Andar de acordo com a lei, vivendo na era do Espírito, é uma anomalia a
qual o cristão nascido de novo não podemais aceitar.
Romanos 7.7-13 Que diremos, pois? E a lei pecado? De modo
nenhum! Mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a
concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando
ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda a concupiscência; porquanto, sem
a lei, estava morto o pecado. E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o
mandamento, reviveu o pecado, e eu morri; e o mandamento que era para vida,
achei eu que me era para morte. Porque o pecado, tomando ocasião pelo
mandamento, me enganou e, por ele, me matou. Assim, a lei é santa; e o
mandamento, santo, justo e bom. Logo, tornou-se-me o bom em morte? De modo
nenhum! Mas o pecado, para que se mostrasse pecado, operou em mim a morte pelo
bem, a fim de que pelo mandamento o pecado se fizesse excessivamente maligno.
De Volta ao Paraíso
“Que
diremos, pois? E a lei pecado? De modo nenhum! Mas eu não conheci 0 pecado
senão pela lei;porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não
dissesse: Não cobiçarás” (7.7). A partir desse ponto , Paulo introduz a figura
do “eu ” na sua argumentação . Quem seria, portanto , esse “ eu ” ? Alguns
intérpretes, a exemplo de Dale Moody e Leon Morris, acreditam que ele estaria
falando de uma experiência pré-cristã. Por outro lado, intérpretes com o John
Stott e Charles Swindoll põe em aqui em destaque os conflitos internos do
cristão . À propósito , Swindoll comenta: “ Romanos 7 é o autor retrato de Paulo,
no qual ele usa utiliza o verbo na primeira pessoa do singular 30 vezes. Perto
do final do autor retrato ele exclama: ‘Sou um pobre miserável’. A expressão
‘pobre miserável’ é a tradução de uma palavra grega que quer dizer ‘sofredor,
afligido, miserável”’.
Não há
dúvida, portanto , de que o “eu ” aparece em Romanos 7 com um sentido
individualizante. Todav ia, como observou acertadamente Giuseppe Barbaglio,
aqui ele não se limita apenas a esse sentido. Ele ganha também um sentido
supraindividual. Em outras palavras, ele possui um sentido individualizante,
mas também um sentido representativo . Esse sentido mais universal é usado para
mostrar a vida dos que vivem sem lei, dos que vivem sob a lei e dos que estão
livres da lei. Barbaglio elenca alguns fatos que contribuem para esse
entendimento :
1. Paulo
contra põe a bondade intrínseca da lei e do mandamento divino ao “eu” , que
dela fez um a experiência negativa, encontrando aí a morte eterna (w . 7-13).
2. O “ eu ”
é apresentado como um sujeito que carrega uma história dividida nitidamente em
duas fases: ausência da lei e “vinda do mandamento (w. 9,10). No tem -se as
séries dos verbos no passado, que caracterizam os versículos 7-13.
3. No trecho de 1 4-25, ao contrário , os
verbos são conjugados no presente. Seria, portanto, errado deduzir que Paulo
deseje aí apresentar a condição atual do “eu ’, em antítese ao passado de
perdição. Na realidade, ele descreve o estado de dissociação existencial do “
eu ” com o resultado de sua história. Testemunha-o o versículo 14: “mas eu sou
‘carnal’, fui vendido com o escravo ao pecado”. A confirmação nos vem do grito
conclusivo : “Pobre de mim ! Quem me poderá libertar deste corpo destinado à
morte?” Pecado e morte, portanto, são o âmbito em que o “eu ” se acha encerrado
, por efeito de seu passado d e submissão.
4. O “eu” é
um ser perdido sem possibilidade autônoma de libertação (v. 24).
5. O “eu ”
dirige um canto de ações de graças a Deus, por meio de Jesus Cristo, nosso
Senhor! Pela g raça, portanto , experimentou a salvação.
“A conclusão ” , diz Barbaglio , “parece
bastante fundamenta da. O discurso de Paulo revela um a estrutura de fundo de
caráter histórico - salvífico: abarca a caminhada de toda a humanidade a partir
do jardim do Éden , evocado claramente nos versículos 9 a 11, até a iniciativa
salvífica de Deus, mediada por Jesus Cristo. A semelhança com 5.12-21 é
inegável. Mas não se trata de uma descrição feita de fora, própria de um
observador externo. E, ao contrário, uma retrospectiva que envolve a ele próprio
e a todos os fiéis, que olhando para trás avaliam à luz da fé a terrível
perdição da qual escaparam . Portanto , o ‘eu ’ de 7.7-25 representa os cristãos,
por aquilo que eram , em estreita solidariedade com a humanidade adâmica
pecadora, e agora não mais o são, por graça. O capítulo descreve sua história
passada, que se radica na pré-história mais longínqua: ambas à imagem de Adão ,
que cedeu à tentação de ser com o Deus” .
“... porque eu não conheceria a concupiscência,
se a lei não dissesse: Não cobiçarás” (7.7). Não devemos limitar aqui o termo “
cobiça ” como se fosse um mero sinônimo de desejos sexuais. O expositor bíblico
Mark A . Seifrid observa que Paulo faz uma descrição das obras da lei em termos
de um encontro com a proibição da cobiça, do desejo legítimo de possuir aquilo
que pertence a outra pessoa. Dessa forma, Paulo tem em mente a cobiça em seu
sentido mais amplo . O quadro de Gênesis 3 .6 , onde narra o desejo de Eva,
evidentemente está presente na argumentação do apóstolo. Seifrid sublinha que
“Paulo vê no encontro do ser humano com o mandamento a recapitulação da
transgressão de Adão. Ao contrário da situação da Queda, o pecado já está
presente no ser humano que ouve a Lei; o mandamento fornece apenas a oportunidade
para o pecado produzir ‘todo tipo de cobiça’ (7.8)” .
Romanos 7.14-25 Porque bem sabemos que a lei é espiritual;
mas eu sou carnal, vendido sob o pecado. Porque o que faço, não o aprovo, pois
o que quero, isso não faço; mas o que aborreço, isso faço. E, se faço o que não
quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que, agora, já não sou eu faço
isto, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na
minha carne, não habita bem algum; e, com efeito, o querer está em mim, mas não
consigo realizar e bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não
quero, esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o
pecado que habita em mim. Acho, então, esta lei em mim: que, quando quero fazer
o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei
de Deus. Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu
entendimento e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros.
Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Dou graças a
Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. Assim que eu mesmo, com o entendimento,
sirvo à lei de Deus, mas, com a carne, à lei do pecado.
O “Eu”
Destronado
“Porque bem
sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado”
(7.14). A natureza boa da lei em contraste com a natureza maligna do pecado é
apresentada aqui por Paulo. A lei aparece aqui como um espelho que reflete a
imagem de quem o contempla, mas aquele que é contemplado nada pode fazer pela
melhoria dessa imagem . Ele apenas se torna consciente diante desse espelho dos
seus inúmeros defeito s. John Wesley, em 1754, comentou essa passagem : “Eu sou
carnal— São Paulo, depois de ter comparado juntos o estado passado e presente
dos crentes, ‘na carne’ (Romanos 7.5) e ‘no espírito’ (Romanos 7.6), procura
responder a duas acusações (é então a lei pecado ?, Roman o s 7.7, e é a lei
morte?, Romanos 7.13) e entrelaça todo o processo do arrazoamento de um homem ,
lutando e procurando escapar do estado legal para o evangélico. Isso ele faz em
Romanos 7.7, até o fim neste capítulo”.11 Joseph A. Fitzmyer destaca que “ a
explicação de Paulo não é ainda completa; na presente passagem trata de
esclarecer a questão. Como pôde o pecado usar algo bom em si mesmo (a lei) para
destruir os seres humanos? O problema não está na lei, mas nos seres humanos com
o tais. A lei é espiritual. Devido à sua origem divina e o seu propósito de
conduzir os seres humanos até Deus. Dessa forma, ela não pertencia ao mundo da
humanidade terrena, natural. Enquanto pneumáticos, ela pertencia à esfera de
Deus; se opõe ao que é sarkinos, “ canal” , “pertencente à esfera da carne” .
‘Porque o
que faço, não o aprovo, pois o que quero, isso não faço; mas o que aborreço,
isso faço ” (7.15). Paulo retrata aqui o dilema não apenas dele, mas de todos
os cristãos. Desejar fazer o certo, todavia realizando o que é errado ! Antes
de apresentar a explicação para esse fenômeno , Paulo maximiza a sua argumentação
nesse paradoxo — querer fazer o bem , mas sendo levado a fazer o mal. Alguns
intérpretes acreditam e, concordo com eles, que alguns crentes romanos,
principalmente os de origem judaica, ainda alimentavam a esperança de conciliar
a lei com a graça. Por que não recorrer a uma “ ajudinha ” da lei para viver retamente
? Paulo vai mostrar então que isso simplesmente é impossível. O problema, com o
já havia sublinhado em outro lugar, não estava com a Lei, que em si era de
origem divina e boa. A questão era outra. O problema estava dentro de cada
crente — uma natureza pecaminosa que em vez de se sentir freada pela lei era
estimulada ainda mais por ela.
Esse é um
argumento usado por Paulo para combater
o legalismo . Nenhuma prática cristã pode ser usada para ajudar a graça. A graça
é suficiente! A s disciplinas cristãs, com o oração, jejum , prática de leitura
da Bíblia, etc., não devem ser praticadas, portanto , com o objetivo de nos
tornar aceitáveis diante de Deus. Deu s nos aceita do jeito que somos. Essas
disciplinas não devem ser praticadas como objetivo de produzir um salvo mais
espiritual, mas para ajustar o relacionamento com Deus de quem já é salvo. Não
é uma salvação pelas obras, mas é o resultado de um fruto de quem já foi salvo
para praticar boas obras (E f 2.8). Essas práticas não mudam a Deus, mas mudam
a nós mesmos. Se são praticadas com a atitude correta, então elas com certeza
agradam a Deus.
“Miserável
homem que sou!Quem me livrará do corpo desta morte?” (7.24). Eis o grito angustiante
de Paulo na luta contra o pecado ! Neste ponto, o apóstolo, como todo cristão,
mostra-se consciente da natureza humana que possui. A luta não é exterior, mas
com ele mesmo. O cantor e poeta Sérgio Lopes conseguiu expressar por meio da música
Natureza Humana:
Ninguém é
tão perfeito que consiga/
Fugir dos
olhos vivos do Senhor/
Que v ê
além do mais profundo abismo/
E até
segredos que eu nunca falei/
Ele sabe
cada um dos meus desejos/
O que
faço, onde ando, quem procuro /
Conhece o
meu passado e o meu presente/
E quer
fazer feliz o meu futuro/
E u luto é
contra a minha própria alma/
A natureza
humana que há em mim /
Eu quero
sepultar o velho homem /
E andar em
comunhão com Cristo/
Viver,
cantar só para Ele/
Morrer
pro mundo e reviver pra Deus.
Stanley
Clark comenta: “O grito da primeira parte do versículo 24 e a pergunta que o
apóstolo faz em seguida devem ser entendidas como um a expressão de angústia, e
não de desespero . A referência a libertação na pergunta pode ser uma expressão
do anelo fervente do que ele sabe com segurança do que o aguarda (8.23). A
expressão ‘este corpo de morte ’ bem como a expressão ‘meus membros’ no versículo
anterior deve ser uma referência à natureza humana em sua condição de sujeição
à lei do pecado . O apóstolo quer ser libertado da condição de vida no qual o
corpo está sujeito ao pecado , como descreveu em todo o parágrafo ‘Quem me
livrará deste meu ser, instrumento de morte ?’” .14 Paulo encerra essa seção mostrando
quem de fato destronou o “eu ” : “Dou graças a Deus por Jesus Cristo , nosso
Senhor” . Ele é a graça de Deus. Ele é nossa vitória!
Maravilhosa
Graça
13. A libertação da lei
(Rm 7.1-25)
Romanos 7 é
um dos textos mais complexos e difíceis desta carta, talvez um dos mais densos
de todo o Novo Testamento. Há uma gama enorme de opiniões dos estudiosos acerca
da sua real interpretação. Não há unanimidade entre os exegetas quanto a seu
significado primário. Qual é a identidade desse homem desventurado que clama
por libertação? Será um impenitente ou um crente? E, se for um crente, será um
crente fraco ou um crente maduro?Tendo provado que o crente morreu para o
pecado (capítulo 6), Paulo agora explica a forma pela qual ele se torna morto
para a lei (capítulo 7). No texto em apreço, Paulo trata do propósito da lei de
Deus.
Qual é o
lugar da lei na vida do cristão?
Ela é a
causa do pecado?
E a causa da
morte?
Absolutamente
não! “A lei é santa; e o mandamento, santo e justo, e bom” (7.12). A lei de
Deus proíbe o pecado, prescreve a justiça ainda protege contra a transgressão
(SI 119.165). Davi proclama:
“A lei do S e n h o r é perfeita e restaura a
alma” (SI 19.7). Concordo com E F. Bruce quando ele diz:
“O que está em foco é
o conceito errado de que pela penosa conformidade com um código de leis é
possível adquirir mérito diante de Deus.
John Stott
menciona três grupos que lidam com a lei de formas diferentes:
Em primeiro lugar, os legalistas. Estes procuravam
observar os preceitos da lei com o propósito de ser salvos (Lv 18.5). Uma vez
que não conseguiam cumprir as exigências da lei, os legalistas acabavam
ostentando uma religiosidade apenas de aparência. Viviam debaixo de um jugo
pesado e queriam colocar essa mesma canga sobre os demais. Para Warren Wiersbe,
a deficiência do legalismo é que ele vê os pecados, mas não o pecado (a raiz do
problema). O legalismo nos julga de acordo com elementos exteriores, e não com
os interiores. Mede a espiritualidade de acordo com o que se deve ou não fazer.
O legalista torna-se um fariseu, cujas ações exteriores são aceitáveis, mas
cujas atitudes interiores são desprezíveis.
Em segundo lugar, os libertinos. De forma diametralmente
oposta, estes olhavam para a lei como a causadora de todos os seus problemas.
Queriam sacudir o seu jugo para viver sem freios e sem limites. Assim, a graça
de Deus é transformada em libertinagem. Esse ainda é o modo de agir da chamada
“nova moralidade”. Seus seguidores sacudiram de sobre si o jugo divino e
anularam a lei moral de Deus. Contudo, certamente esse não é o significado que
Paulo quis dar quando disse que não estamos mais debaixo da lei e sim da graça
(6.14). Aqui a antítese é entre a lei e a graça como forma de justificação, e
não entre a lei e o Espírito (G1 5.18) como forma de santificação. De tal forma
que, quanto à justificação não estamos mais debaixo da lei, e sim da graça; e,
para sermos santificados, não dependemos da lei, mas somos guiados pelo
Espírito.616
Em terceiro lugar, os cristãos. Esses se regozijam
tanto em sua libertação da lei, que lhes traz justificação e santificação, como
em sua liberdade para cumpri-la. Deleitam-se na lei por ser a revelação da
vontade de Deus (7.22), mas reconhecem que a força para cumpri-la não provém da
lei, mas do Espírito.
Em síntese,
o legalista teme a lei e está debaixo de sua servidão; o libertino detesta a
lei e a lança fora; o cristão respeita a lei, à qual ama e obedece.
Tendo
considerado essas três vertentes hermenêuticas, analisaremos agora o texto de Romanos 7.1-25.
A libertação da lei (7.1-6)
John Stott
elucida essa passagem mostrando que Paulo nos oferece primeiro um princípio
(7.1), depois nos dá uma ilustração (7.2,3) e finalmente nos apresenta uma
aplicação (7.4-6).619 Algumas verdades devem ser aqui destacadas:
Em primeiro lugar, o domínio da lei (7.1). A lei tem
domínio sobre o homem durante toda a sua vida. A palavra grega kyrieuo
significa “ter domínio ou autoridade sobre”. Essa autoridade limita-se à
duração da nossa vida. Apenas a morte pode interromper o domínio da lei sobre
nós. Se a morte sobrevêm, os relacionamentos estabelecidos e protegidos pela
lei são dados por terminados. A lei é válida para quem vive; não tem poder
sobre um morto. Esse éum axioma legal, universalmente aceito e imutável.620
Enquanto vivermos, estaremos sujeitos às demandas e penalidades da lei.
Em segundo lugar, a analogia do casamento (7.2,3).
Paulo compara a lei com um marido e os crentes com uma esposa. Esse casamento é
turbulento e conflituoso. A culpa não é do marido. Ele é perfeito. E santo,
justo e bom. E espiritual. O problema é que essa esposa nunca consegue
agradá-lo, pois é imperfeita, carnal, rendida ao pecado e sempre frustra as
expectativas do marido. A lei é como um marido perfeccionista; esse marido
condena a esposa por sua menor falha.
Essa mulher
(que somos nós) não pode divorciar-se desse marido. O contrato é claro: a lei a
prende ao marido enquanto ele viver. Só a morte do marido pode tirar essa
mulher desse jugo conjugal, pois a morte muda não apenas as obrigações da
pessoa morta, mas também as obrigações dos sobreviventes que com ela mantinham
algum contrato. Geoffrey Wilson diz que a ideia central é que essa morte não
apenas encerra um relacionamento, mas abre caminho legal para que a mulher
inicie outra união.621 Isso porque, ainda que o casamento seja para toda a
vida, não se estende para além da vida.
A única possibilidade de a mulher ficar livre
do marido para unir-se a outro marido é a morte dele. Nas palavras de Adolf
Pohl, a morte divorcia um matrimônio.623
Na metáfora
do casamento, o marido morre e a esposa casa-se novamente. No caso em apreço,
contudo, não é o marido quem morre (a lei), mas a esposa (o crente). O crente
morre ao identificar-se com Cristo na sua morte. Assim como a morte do marido
liberta a esposa do vínculo matrimonial, existe uma morte por meio da qual
somos libertados da lei. Pois pela morte de Cristo recebemos nossa libertação
de todas as exigências da lei. John Murray corretamente que, enquanto a lei nos
governa, não há a para
quem vive; não tem poder sobre um morto. Esse é um axioma legal, universalmente
aceito e imutável.620
Enquanto
vivermos, estaremos sujeitos às demandas e penalidades da lei.
Em segundo lugar, a analogia do casamento (7.2,3).
Paulo compara a lei com um marido e os crentes com uma esposa. Esse casamento é
turbulento e conflituoso. A culpa não é do marido. Ele é perfeito. E santo,
justo e bom. E espiritual. O problema é que essa esposa nunca consegue
agradá-lo, pois é imperfeita, carnal, rendida ao pecado e sempre frustra as
expectativas do marido. A lei é como um marido perfeccionista; esse marido
condena a esposa por sua menor falha.
Essa mulher
(que somos nós) não pode divorciar-se desse marido. O contrato é claro: a lei a
prende ao marido enquanto ele viver. Só a morte do marido pode tirar essa
mulher desse jugo conjugal, pois a morte muda não apenas as obrigações da
pessoa morta, mas também as obrigações dos sobreviventes que com ela mantinham
algum contrato.Geoffrey Wilson diz que a ideia central é que essa morte não
apenas encerra um relacionamento, mas abre caminho legal para que a mulher
inicie outra união.621 Isso porque, ainda que o casamento seja para toda a
vida, não se estende para além da vida.622
A única
possibilidade de a mulher ficar livre do marido para unir-se a outro marido é a
morte dele. Nas palavras de Adolf Pohl, a morte divorcia um matrimônio.623
Na metáfora
do casamento, o marido morre e a esposa casa-se novamente. No caso em apreço,
contudo, não é o marido quem morre (a lei), mas a esposa (o crente). O crente
morre ao identificar-se com Cristo na sua morte. Assim como a morte do marido
liberta a esposa do vínculo matrimonial, existe uma morte por meio da qual
somos libertados da lei. Pois pela morte de Cristo recebemos nossa libertação
de todas as exigências da lei. John Murray diz corretamente que, enquanto a lei
nos governa, não há menor possibilidade de sermos libertados da escravidão ao pecado.
A única alternativa é sermos desobrigados da lei. Isso ocorre em nossa união com
Cristo, em sua morte, pois toda a virtude da morte de Cristo, ao satisfazer as
reivindicações da lei, torna-se nossa, e somos livres da escravidão e do poder
do pecado a que estávamos consignados pela lei.
Em terceiro lugar, a legitimidade do novo casamento
(7.4). O segundo casamento é moralmente legítimo porque a morte pôs fim ao
primeiro casamento. Somente a morte pode garantir a libertação da lei do
casamento e, portanto, o direito de casar-se de novo.625
Uma vez que
a mulher morreu, o vínculo conjugal com o primeiro marido acabou. Ela está
morta em relação a esse marido. Uma vez que ela ressuscitou, está livre para
pertencer a outro marido.
Desde que
Cristo ressuscitou dentre os mortos, não morre mais (6.9). Portanto, essa nova
relação matrimonial não será desfeita pela morte, como aconteceu com a antiga
relação.626
E agora,
nesse novo relacionamento, a mulher (o crente) pode frutificar para Deus. Uma vez que
morremos com Cristo, fomos libertados da lei. Agora, podemos unir-nos a Cristo,
pertencer a ele e frutificar para Deus. Isso implica uma mudança total de
relação e lealdade. Adolf Pohl expressa isso de forma magistral: “Qual abismo
profundo estende-se, pois, entre nosso outrora e nosso agora, a sepultura de
Jesus. Do lado de lá dominava a lei, na margem de cá Cristo nos estende a mão
para novas núpcias”.627
John Stott
destaca que estar emancipado da lei não quer dizer estar livre para fazer o que
quiser. Ao contrário, a libertação da lei traz não a liberdade de pecar, mas
outra classe de servidão (7.6). Somos livres para servir, e não para pecar.628
Em quarto lugar, o contraste entre os dois
casamentos (7.5,6). No primeiro casamento, vivíamos segundo a carne. Naquele
tempo, a perfeição do nosso primeiro marido realçava ainda mais nossos erros e
paixões pecaminosos. Os frutos que produzimos nesse primeiro casamento foram
frutos de morte. Porém, agora, no segundo casamento, libertados desse primeiro
marido perfeccionista, morremos para aquilo a que estávamos sujeitos. A força
que nos move agora não é mais a caducidade da letra, mas a novidade de
espírito. Na velha ordem estávamos casados com a lei, éramos controlados pela
carne e produzíamos fruto para a morte, enquanto como membros da nova ordem
estamos casados com o Cristo ressurreto, fomos libertados da lei e produzimos
fruto para Deus.
F. F. Bruce
diz que a nossa anterior associação com a lei não nos ajudava a produzir os
frutos da justiça, mas esses frutos são produzidos com abundância agora que
estamos unidos a Cristo. O pecado e a morte foram o resultado de nossa
associação com a lei; a justiça e a vida são o produto de nossa nova
associação.630
A santidade da lei (7.7,13)
Paulo dá uma resposta aos legalistas nos
versículos 1-6,mostrando que, por meio
da morte de Cristo, ficamos livres do domínio da lei; dá uma resposta aos
libertinos nos versículos 7-13 ao rebater as críticas injustas daqueles que
culpam a lei como responsável pelo pecado (7.7) e pela 1-6,mostrando que, por meio da morte
de Cristo, ficamos livres do domínio da lei; dá uma resposta aos libertinos nos
versículos 7-13 ao rebater as críticas injustas daqueles que culpam a lei como
responsável pelo pecado (7.7) e pela 1-6,mostrando que, por meio da morte de Cristo, ficamos
livres do domínio da lei; dá uma resposta aos libertinos nos versículos 7-13 ao
rebater as críticas injustas daqueles que culpam a lei como responsável pelo
pecado (7.7) e pela morte (7.13), mostrando que o problema não é a lei (7.12),
mas nossa natureza pecaminosa (7.8). Já nos versículos 14 25 Paulo descreve o
conflito interior do crente e o segredo da vitória em Cristo.631
O apóstolo
levanta duas perguntas importantes sobre o caráter da lei: A lei é pecado?
(7.7). E a causadora da morte? (7.13). Ambas as perguntas têm a mesma resposta:
“De modo nenhum!” (7.7,13). Diante do exposto, levantamos dois pontos:
Em primeiro
lugar, as virtudes da lei (7.12). A lei é santa e o mandamento, santo, justo e
bom. Em si mesma a lei é valiosa e esplêndida. É santa. Isso significa que é a
própria voz de Deus. O significado básico do termo hagios, “santo”,é diferente.
Descreve o que provém de uma esfera alheia a este mundo, algo que pertence a um
campo que está mais além da vida e da existência humana. A lei é também justa.
E ela que estabelece todas as relações, humanas e divinas. Finalmente, Paulo
diz que a lei é boa, ou seja, foi promulgada para promover o supremo bem.632
Nessa mesma
linha, John Murray afirma que, na qualidade de santa, justa e boa, a lei
reflete o caráter de Deus, sendo a cópia de suas perfeições. Ela traz as
impressões de seu autor. Na qualidade de
“santo”, o mandamento reflete a
transcendência e a pureza de Deus, exigindo de nós consagração e pureza
correspondentes. Na qualidade de “justo”, o mandamento reflete a equidade de
Deus e requer de nós, em suas exigências e sanções, nada aquém do que é
equitativo. E, na qualidade de “bom”, o mandamento promove o mais elevado
bem-estar do homem, expressando, desse modo, a bondade de Deus.633
O problema
não é a lei; somos nós. O primeiro casamento fracassou não pelas falhas do
marido, mas pelas fraquezas da esposa. Se pudéssemos viver de acordo com o
padrão da lei, o faríamos.
Em segundo lugar, a malignidade do pecado (7.13). A
lei não é a causadora da morte, mas sim o pecado, assim como o problema de um
criminoso não é a lei, mas sua transgressão. Ao exigir de mim o que não faço, a
lei me condena e me leva à morte. A lei não me deu poder para fazer o que era
certo nem para evitar o que era errado.634
Mas não há
falha na lei; a falha está em mim que não consigo obedecer. Desta forma, a lei
revela a gravidade do meu pecado, que produz a morte. Sendo santa, a lei mostra
o caráter maligníssimo do meu pecado. O pecado não é apenas maligno. E maligno
em grau superlativo. E maligníssimo, a maior de todas as tragédias. E pior que
a pobreza, a fome, a doença e a própria morte, pois esses males, embora graves,
não nos podem afastar de Deus. O pecado, contudo, nos afasta de Deus agora e
por toda a eternidade.
O ministério da lei (7.7-13)
Se a lei não
é pecado (7.7) nem provoca a morte(7.13), qual é seu papel? Qual é seu
ministério? Qual é seu propósito? Paulo oferece três respostas:
Em primeiro
lugar, o propósito da lei é revelar o pecado(7.7). O pleno conhecimento do
pecado vem pela lei (3.20). A lei é um espelho que revela o ser interior e
mostra como somos imundos (Tg 1.22-25). E como um prumo que mostra a
sinuosidade da nossa vida. E como um raio-X que diagnostica os tumores infectos
da nossa alma. A lei detecta as coisas ocultas na escuridão e as arrasta à luz
do dia. É a lei que destampa o fosso do nosso coração e traz à tona a
malignidade do nosso pecado.Digno de nota é o fato de Paulo mencionar o décimo
mandamento do decálogo como aquele que o tornou cônscio do seu pecado e abriu
seus olhos para a própria devassidão: “Não cobiçarás” (7.7) Os nove primeiros
mandamentos da lei são objetivos:
“Não terás outros deuses diante de mim”;
“Não
farás para ti imagem de escultura”;
“Não tomarás
o nome do Senhor teu Deus em vão”;
“Lembra-te
do dia do sábado para o santificar”;
“Honra a teu pai e a tua mãe”;
“Não
matarás”;
“Não adulterarás”;
“Não
furtarás”;
“Não dirás
falso testemunho”.
Todos esses mandamentos
são objetivos, e qualquer tribunal da terra pode legislar sobre eles,
fiscalizá-los e condená-los. Mas o décimo mandamento (“Nao cobiçarás”) é
subjetivo, pertence à jurisdição do foro íntimo, e nenhum tribunal da terra tem
competência para julgar foro íntimo. A lei de Deus, porém, penetra como uma
câmara de raio-X e faz uma leitura dos propósitos mais secretos do nosso
coração, trazendo à luz seus desejos pervertidos.
William
Greathouse escreve oportunamente: “A lei não é um simples reagente pelo qual se
pode detectar a presença do pecado; é também um catalisador que ajuda e até mesmo
inicia a ação do pecado sobre o homem. A lei insufla o desejo ilícito”.635
A cobiça, do grego epithymia, é algo que se
expressa internamente — é um desejo, um impulso, uma concupiscência. Na
verdade, inclui todo tipo de desejo ilícito, sendo em si mesma uma forma de
idolatria, uma vez que põe o objeto do desejo no lugar de Deus.636
Segundo F. F. Bruce, epithymia pode ser tanto
um desejo ilícito como um desejo lícito em si, mas de tão egocêntrica
intensidade que usurpa o lugar que somente Deus deve ocupar na alma humana.637
Em segundo
lugar, o propósito da lei é despertar o pecado (7.8). A lei nao só expõe o
pecado, mas também o estimula e o desperta. Tudo o que é proibido desperta em
nós desejo imediato. O pecado encontra no mandamento uma cabeça-de-ponte e uma
base para despertar em nós toda sorte de desejos. A palavra grega aphorme,
“oportunidade”, era usada com referência a uma base para operações militares,
“o ponto de partida ou base de operações para uma expedição”, um trampolim para
o próximo ataque. É assim que o pecado estabelece dentro de nós uma base ou
ponto de apoio, valendo-se dos mandamentos para nos provocar.639
A lógica de
Paulo é irrefutável: sem lei, está morto o pecado (7.8). Onde não há proibição,
não há transgressão. Sem lei, o pecado não pode ser caracterizado juridicamente
(5.13). Unicamente pelo encontro com a lei o pecado se torna passível de ação
judicial.640
No entanto,
pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Uma vez que a lei diz
“Não
cobiçarás”, pela cobiça quebramos a lei, e a quebra dessa lei é a perversão do
amor, este sim o cumprimento da lei (13.10).641
Em terceiro
lugar, o propósito da lei é condenar o pecado (7.9-11). Onde não há lei, também
não há transgressão. Por isso, sem lei o homem tem a sensação de que está vivo.
John Murray comenta a expressão de Paulo: “Sem a lei, eu vivia”. A palavra
“vivia” não pode ter o sentido de vida eterna ou de vida para Deus. Paulo
falava sobre a vida baseada na justiça própria, sem perturbações e
autocomplacente, que ele levava antes de agirem sobre ele as comoções
turbulentas e a convicção de pecado descritas nos versículos anteriores.642
William
Hendriksen acrescenta que nesse tempo a lei ainda não havia sido gravada em sua
consciência nem chegara ser ainda um fardo insuportável para o seu coração.
Nesse tempo Paulo pensava que, no campo moral e espiritual, estava fazendo tudo
corretamente bem.643
Porém,
quando o preceito chega, o pecado revive e o homem morre. O propósito da lei
nao é matar, mas dar vida. Contudo, aquilo que era destinado a nos dar vida nos
matou, porque o pecado, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo mandamento
nos enganou e nos matou. Assim, o propósito da lei nao é apenas revelar e
despertar o pecado, mas também condená-lo.
O verbo
grego exapatao, “enganou”, é o mesmo usado em 2Coríntios 11.3, “a serpente
enganou a Eva”, e em 1 Timóteo 2.14, “a mulher, sendo enganada, caiu em
transgressão”.644 Paulo diz que o pecado seduz, engana e mata. William Barclay
esclarece que o engano do pecado pode ser visto sob três aspectos:645
1) Enganamo-nos ao considerar a satisfação que
encontraremos no pecado. O pecado é doce ao paladar, mas amargo no estômago. É
um embusteiro, pois promete alegria e paga com a tristeza; proclama liberdade e
escraviza; faz propaganda da vida, mas seu salário é a morte.
2)
Enganamo-nos ao considerar a desculpa que podemos dar por ele. Todo homem pensa
que pode estadear sua defesa por ter praticado este ou aquele pecado, mas toda
escusa do pecado torna-se nula sob o escrutínio de Deus.
3)
Enganamo-nos ao considerar a probabilidade de escapar das conseqüências do
pecado. Ninguém peca sem a esperança de que sairá ileso das conseqüências do
pecado. A realidade inegável, porém, é que cedo ou tarde o nosso pecado nos
achará.
Quando um
criminoso é apanhado no flagrante de seu delito, a lei exige que ele pague por
seu crime. Ele é preso e a lei o condena. Esse transgressor, porém, nao pode
culpar a lei de ser responsável pelos seus problemas. Ele está preso por causa
de seu crime e não por causa da lei. A lei estálivre de qualquer culpa. O vilão
da história é o pecado. Calvino ressalta que o pecado reside em nós, e não na
lei, uma vez que a perversa concupiscência de nossa carne é a sua causa.646 E
certo que a lei expõe, provoca e condena o pecado, mas nao é responsável por
nossos pecados nem por nossa morte.647
Assim, a lei não pode salvar-nos porque não
podemos cumpri-la, e não podemos cumpri-la por causa do pecado que habita em
nós.648
A fraqueza da lei (7.14-25)
John Stott
tem razão quando diz que a lei é boa, mas também é fraca. Em si, ela é santa;
contudo, é incapaz de tornar-nos santos.649 A fraqueza da lei não está em si
mesma, mas em nossa carne (8.4).
Duas coisas
merecem atenção neste último parágrafo do capítulo 7 de Romanos:
a. A mudança
do tempo verbal. Até aqui, Paulo vinha falando no tempo passado; doravante
usará o tempo presente. Isso significa que o apóstolo tratará de um conflito
pessoal que está enfrentando como crente, e não de um conflito vivido antes de
sua conversão. A partir do versículo 14, a linguagem de Paulo é de um homem
convertido. No versículo 18, ele reconhece que não há bem nenhum em si mesmo.
No versículo 24, solta um lancinante gemido da alma, gritando:
“Desventurado
homem que sou!” Só uma pessoa convertida tem convicção do pecado. Só um crente
maduro lamenta por seus pecados. William Barclay aponta que neste texto Paulo
nos dá a própria autobiografia espiritual e desnuda o próprio coração e
alma.650
b. A mudança
de situação. Paulo não escrevera sobre uma tese impessoal, mas sobre uma
experiência pessoal. Apresentara o próprio dilema, o próprio conflito, a
guerracivil instalada em seu peito. Aqui a autobiografia de Paulo é a biografia
de todo homem.651 Vemos o autorretrato de um homem consciente da presença e do
poder do pecado em sua vida. O pecado é um tirano cujas ordens ele odeia e
despreza, mas contra cujo poder luta em vão.
F. F. Bruce
diz que Paulo é um homem que vive simultaneamente em dois planos, ardentemente
ansioso por levar uma vida mantida no plano superior, mas tristemente ciente da
força do pecado que nele habita e persiste em empurrá-lo para baixo, para o
plano inferior.652 Por um lado ele reconhece que bem nenhum habita nele (v.
18), mas, por outro, tem prazer na lei de Deus (7.22).
Concordo com
John Murray quando ele diz que a pessoa retratada em Romanos 7.14-25 é alguém
cuja vontade se volta para aquilo que é bom (7.15,18,19,21), e o mal que ela
comete é uma violação daquilo que quer e prefere (7.16,19,20). O homem de
Romanos 7.14-25 faz coisas más, no entanto as abomina. O homem não regenerado
aborrece o bem; e o homem de Romanos 7.14-25 odeia o mal.653Reafirmamos nossa
convicção de que só um crente pode deleitar-se na lei de Deus. Essa
interpretação tornou-se aceita na igreja desde Agostinho.654 Os reformadores a
subscreveram. Os principais exegetas cristãos ainda a sustentam. Hoje, contudo,
alguns não apenas a rejeitam, mas falam dela como “relegada ao museu dos
absurdos exegéticos”.6Sl Manifesto apoio, porém, à posição de William
Hendriksen: “Segundo a Escritura, é precisamente o cristão que mais progrediu,
o crente maduro, que mais profundamente se preocupa com seu pecado. Quanto mais
uma pessoa faz progresso na santificação, tanto mais também sentirá aversão
pela sua pecaminosidade (Jó 42.6; Dn 9.4,5,8; Is 6.5).656
Cinco
verdades devem ser aqui destacadas:
Em primeiro
lugar, os conflitos de um salvo (7.14-17).
Alguns
pontos devem ser enfatizados:
a. O
conflito entre a natureza da lei e a nossa natureza(7.14). A lei é espiritual
{pneumatikos), mas eu sou carnal (.sarkinos), feito de carne e sangue (lC o
3.1) e, como tal, moralmente impotente perante as tentações.657 Essa é a
batalha cristã entre a carne e o Espírito (G1 5.17). Quando Paulo diz que é
carnal, não está declarando que não é convertido.
Essa mesma expressão foi usada para referir-se
aos crentes de Corinto (lCo 3.1-3) e Paulo jamais insinuou que eles não fossem
convertidos.Essa batalha interior não é um argumento abstrato usado pelo
apóstolo, mas o eco da experiência pessoal de uma alma angustiada.658 Duas
forças antagônicas nos arrastam para direções opostas. Na justificação fomos
libertados da culpa do pecado; na santificação estamos sendo libertados do
poder do pecado, mas só na glorificação seremos salvos da presença do pecado.
Ainda lidamos contra o pecado que tenazmente nos assedia. Temos de reconhecer
que os cristãos vivem na tensão entre o “já” do reino inaugurado e o “ainda
não” da consumação.659
A análise que Paulo faz da lei aqui tem um
propósito prático. Ele argumenta que a lei não pode justificar nem santificar.
A lei é poderosa para condenar, mas incapaz de salvar o pecador (7.7-13). E
rápida para detectar, mas impotente para remover o pecado que permanece no
crente (7.14-25).660
b. O
conflito entre o saber e o fazer (7.15). Não compreendemos nosso modo de agir,
pois não fazemos o que preferimos e sim o que detestamos. Somos seres ambíguos
e contraditórios. Há uma esquizofrenia embutida em nosso ser. Sabemos uma coisa
e fazemos outra. Ovídio, o poetaromano, escreveu a famosa máxima: “Eu vejo as coisas
melhores e as aprovo; mas sigo as piores”.661
Concordo com
Charles Erdman no sentido de que nao há humana criatura que nao tenha
consciência de que forças conflitantes do bem e do mal contendem furiosamente
para assenhorear-se da alma.662
O
positivismo de Augusto Comte estava equivocado quando afirmou que a maior
necessidade do homem é a educação. O conhecimento não é suficiente para mudar a
vida do homem. Não basta informação, é preciso transformação. Não somos o que
sabemos; somos o que fazemos.
c. O
conflito entre a liberdade e a escravidão (7.16,17). Não basta decidir fazer
algo, é preciso fazê-lo. Intenção não eqüivale a realização. O pecado gera em
nós tal conflito que acabamos fazendo o que nao queremos e deixando de fazer o
que desejamos. Somos livres em Cristo, mas ao mesmo tempo o pecado ainda está
em nós, de modo que fazemos o que não queremos. Assim, não há conflito entre a
lei e o crente; o conflito é entre a lei e aquilo que o próprio crente
condena.663 Existe uma diferença total entre o pecado que sobrevive e o pecado
que reina, entre o regenerado em conflito com o pecado e o não regenerado
complacente com o pecado. Uma coisa é o fato de o pecado viver em nós; outra é
o fato de vivermos em pecado.664
Em segundo
lugar, a impotência do velho homem (7.1820). Destaco aqui três verdades:
a. A
consciência da fraqueza (7.18). Paulo confessa sua fraqueza. Ele sabe que
nenhum bem habita em sua carne, uma vez que não há nele poder para fazer o bem
que deseja. O velho homem não é aniquilado na conversão. Ele ainda habita em
nós. Embora não tenha poder legal de nos dominar, muitas vezes ele revela quão
fracos somos.
b. A
consciência da contradição (7.19). Somos criaturas ambíguas, paradoxais e
contraditórias. Não fazemos o bem que preferimos e sim o mal que não queremos.
Em cada pessoa há duas naturezas, duas tendências, dois impulsos.
c. A
consciência da escravidão (7.20). Quando fazemos o que não queremos e deixamos
de fazer o que desejamos, admitimos que o agente em nós operante não é nossa
vontade, mas o pecado que habita em nós.
Em terceiro
lugar, a guerra interior do crente (7.21-23). O crente é uma guerra civil
ambulante. Há em seu interior o novo homem, guiado pelo Espírito, que tem
prazer na lei de Deus, e há também o velho homem, agarrado ao mal(7.21). Esse
homem interior, o novo homem, tem prazer na lei de Deus (7.22), enquanto o
pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus
nem mesmo pode estar (8.7). Robert Lee diz que a consciência dessa guerra interior
é uma das maiores evidências de que somos filhos de Deus.665
Em quarto
lugar, o clamor de um remido (7.24). Concordo com o uso que E E Bruce faz das
palavras de MacFarlane, ao afirmar que os crentes em Cristo são perfeitos
quanto à justificação, mas sua santificação apenas começou. Esta é uma obra
progressiva. Quando creram em Cristo, sabiam pouco da fonte de corrupção que
neles há. Quando Cristo se fez conhecido como seu Salvador, o Bem-amado de sua
alma, a mente carnal parecia ter morrido, mas logo eles viram que não estava
morta.
Assim, alguns vieram a experimentar mais aflições da alma depois da sua
conversão do que quando foram despertados para o sentimento de sua condição de
perdidos. “Desventurado homem que sou! quem me livrará do corpo desta morte?” é
o clamor deles, até que sejam aperfeiçoados em santidade. No entanto,aquele que
começou boa obra neles a realizará até o dia de Cristo Jesus.666
O grito
“desventurado homem que sou”, portanto, não é o desabafo de dor de uma alma
perdida, nem o apelo desnorteado de alguém que está sob convicção de pecado,
sem esperança. E a linguagem de um homem que está ansioso e quase desmaiando,
porque não vê ajuda suficientemente próxima.667
O que Paulo
quis dizer com a expressão “o corpo desta morte”? Os gregos acreditavam que o
corpo é o cárcere da alma, aquela composição de barro, aquela estátua modelada,
aquela tão cerrada casa da alma que esta nunca põe de lado, mas carrega
penosamente como a um cadáver, do berço ao túmulo. Epíteto chegou a falar de si
como “uma pobre alma algemada num cadáver. Alguns comentaristas pensam que
Paulo está usando uma figura emprestada do relato que Virgílio fez do costume
que Mezêncio, rei dos etruscos, tinha de amarrar seus prisioneiros vivos a
cadáveres em decomposição.668
Certamente,
Paulo não está falando que o mal está arraigado no corpo físico. O cristianismo
não subscreve o pensamento grego. Não cremos nesse dualismo maniqueísta do
espírito bom e matéria má. O mal está arraigado mais profundamente. Esse corpo
da morte (7.24) tem o mesmo significado do “corpo do pecado” (6.6). Trata-se
daquela herança da natureza humana sujeita à lei do pecado e da morte a que
todos os filhos de Adão estão submetidos.669
Em quinto
lugar, a exultação de um remido (7.25). Tanto o clamor quanto a exultação
procedem da mesma pessoa: um crente convertido que lamenta sua corrupção e que
anseia por uma libertação final no dia da ressurreição; ele sabe que a lei é
incapaz de resgatá-lo, mas exulta em Deus por meio de Cristo como o único
Salvador.
O grande reformador Melanchton escreveu sobre a força do velho homem e a gloriosa libertação que temos em Cristo: “O velho Adão é muito forte para o jovem Melanchton, mas graças a Deus ele não é suficientemente forte para Cristo. Jesus Cristo, nosso Senhor, nos dará a vitória, dia-a-dia e durante todos os dias”.671
O grande reformador Melanchton escreveu sobre a força do velho homem e a gloriosa libertação que temos em Cristo: “O velho Adão é muito forte para o jovem Melanchton, mas graças a Deus ele não é suficientemente forte para Cristo. Jesus Cristo, nosso Senhor, nos dará a vitória, dia-a-dia e durante todos os dias”.671
Hernandes
Dias lopes
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